HERCÍLIO ASSOBIADOR
Dr. Elmiro, na sua vocação de rebuscar nossa história, garimpar curiosidades e tipos característicos, falou-me entusiasmado de Hercílio, o último dos magarefes de São Francisco ainda vivo. Ficou sabendo de histórias interessantíssimas, muitas delas já transformadas em folclore, cercadas que são de mistérios e passagens pitorescas. O povo conta que Hercílio tinha uma maneira peculiar para abater uma rês: ele amarrava animal no tronco e fica girando em torno dele, assobiando, assobiando e quando ele aquietava, como que hipnotizado, de longe ele atirava, certeiramente, a faca no ventre do animal, que caía inerte.
Contam ainda que ele parou de matar gado porque teve um sonho muito estranho que o deixou apavorado: ele cumpria o ritual para matar uma vaca numa sexta-feira da paixão. Assobiou, assobiou e quando a vaca quietou, mansinha, ele jogou a faca certeira, mas quando olhou quem estava amarrada no tronco era a sua mãe. Encerrou aí a profissão de magarefe. Há outra história também: num sábado de aleluia, Hercílio levou uma novilha para tronco e se preparou para o ritual do abate, quando ela, espantosamente, arrebentou a corda e investiu contra ele, pegando-o de cheio, restando-lhe muitas escoriações e a cabeça quebrada.
No mês de dezembro de 1997encontramos o Hercílio à frente de sua casinha, construída pelo Padre Vicente, na antiga região da Luzia, hoje área urbana. Em frente da casa tem um umbuzeiro, que diz ele ter sido plantado por seu pai, a enfeitar o caminho e onde ele descansa horas sob sua sobra. Nos recebeu bem e com brincadeiras e, poucas palavras ditas, começou a assobiar e a bater com os dedos na cabeça, produzindo um som forte e ritmado. Assobiou uma música inventada e voltou à conversa. Hercílio é melancólico, reservado, não adiantando muito a conversa, sempre cortada pelo ritual do assobio e o tamborilar de dedos na cabeça. Não confirmou e nem quis render conversa sobre o fatos que andam na boca do povo, falou o que quis e não adiantou volteios para pegá-lo.
O que conta: nasceu no Jenipapo, município de São Francisco,em 1925. Foi aluno da professora Ermita, esposa de José Diamantino e, no Coelho Neto foi colega de escola do Dr. Oscar e José Dourado, que ele lembra com satisfação. Deixou a escola e, aos 16 anos, deu os primeiros passos na profissão “de matar gado” para Evaristo Velho e Augusto Cardoso – e estica, narrando com saudade, sempre parando para assobiar e bater na cabeça, que era um tempo bom, de fartura e de carne saborosa. A carne vinha temperada pela própria rês, com gosto de tipie folha de alho. “Hoje a carne tem gosto de vacina”. Lembra de como a carne era vendida: “o açougueiro fazia furos nos pedaços de carne pesados e passava uma tira de seda (cerda) de buriti, fazendo o armarrio para o freguês carregar. Hoje é tudo dentro de sacola”.
De fato, parou de trabalhar como magarefe porque foi atacado por uma vaca e quebrou a cabeça – levou vinte e cinco pontos. “Do hospital me mandaram para a delegacia, falando que era briga”. Restou-lhe, ainda, a perda de um olho, o que o deixou triste, pois “não pode nem olhar uma moça”. Não vivia só como matador de gado. Nas horas de folga, quebrava pedra na pedreira da Lapinha. Foi lá que, adentrando uma gruta, ele deu de cara com uma ossada humana – “dois corpos secos. Devia ser dos tempos das brigas”. Trabalhou também na prefeitura, “no tempo de Chiquinho Mendonça e Brazinho”.
Hercílio é separado da mulher, com quem teve quatro filhos, morando hoje com um deles, vivendo como aposentando. Espirituoso, chega ser afável, mas muito enigmático. Ele não aprofunda em sua história. Tem-se a impressão de que não gosta de remexer nas coisas passadas, partindo para evasivas, assobios e tamborilar de dedos na cabeça, quando acuado sobre determinados assuntos. Vê-se nele um pouco da nossa história, do árduo trabalho de magarefe (que dizem ser profissão pouco abençoada, cercada de maldições), quando tudo era feito rudimentarmente no antigo matadouro, hoje hospital, e no mato; o homem que viu o florescimento de São Francisco, guardando muitas reminiscências; homem que, malgrado a tristeza estampada no rosto, ainda se ilumina quando fala nas meninas que já não gostam dele porque só tem um olho…
Texto e Foto: João Naves de Melo
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