quarta-feira, 24 de julho de 2019

VIVÊNCIAS – CONTOS


CAVALINHO BRANCO

           
Cabeça levantada com pompa, cheio de estilo, jogando as patas exageradamente para frente como ensaio de um balé. Assim que entrou no terreiro levantando as patas, lembrei-me do meu tempo de menino em Belo Horizonte em desfile de Sete de Setembro como requintista da banda de música do Instituto João Pinheiro. Depois passagem da nossa escola postamo-nos ao longo da avenida para assistir ao desfile dos demais participantes. Aí fomos surpreendidos pela entrada dos cadetes de Barbacena com uma cadência quartenária, enquanto nós outros desfilávamos com a cadência tradicional, a binária. Os cadetes entraram com os punhos fechados, levando-os, com os braços esticados, à altura do peito formando um ângulo reto. As pernas, da mesma forma, eram erguidas formando, também um ângulo reto em relação solo e corpo, com a batida forte no solo na cadência das caixas – um, dois, três, quatro. Ficamos boquiabertos com aquele espetáculo marcial impactante e de beleza até. Falaram-nos tratar-se do Passo do Ganso, um estilo de marcha desenvolvido originalmente no século 18 pelo comandante prussiano Leopoldo I, o Príncipe de Anhalt-Desau.
            Agora, vendo o cavalinho branco na doma, esticando as pernas para frente, muito alto, tão diferente do comum aos animais de monta, lembrei-me do Passo do Ganso. O domador o conduziu para o ponto onde eu me encontrava. Apeou e me entregou o cabresto dizendo:
            – Seu menino, esse cavalo não tem jeito, não. Num vai aprender passo algum, viageiro ou marcha. A mania dele é só jogar as patas para frente. Desse jeito nenhum cavalo anda.
            Lá se foi o meu sonho. O cavalinho branco era meu. Eu o adquiri de José Braga, um criador de animais da região de Santa Rita, próximo do Núcleo da Conceição. O danado era muito bonito. Não tinha grande estatura, mas o físico era bem conformado, clinas compridas, pescoço delgado e empinado. Era bonito. Assim que ele me foi entregue fiquei feliz e dei-lhe o nome do primeiro satélite artificial lançado ao espaço, Sputnik pela URSS em 1957 – uma honraria.
            Naquela quadra eu viajava muito pelos gerais urucuianos a serviço do Núcleo Colonial e da Justiça Eleitoral, inscrevendo eleitores nos mais perdidos e distantes grotões, lugares quase nunca visitados por gente de fora. Eu tinha uma pequena tropa à minha disposição – o burro Avião, forte, resistente e bom de viageiro. As jornadas montado no Avião não me cansavam nem deixavam com as pernas e o corpo doendo; a mula Ruana, bem menor e também de bom viageiro; e a Moeda, essa muito arisca, que exigia estratégia para ser montada e, assim mesmo, com o cavaleiro em cima ela tinha que dar uns pulos. Em viagens mais curtas eu fazia no cavalo Tarzan, que era meu. Eu gostava do Tarzan, pois seu viageiro era macio, mas ele não tinha muito estilo, era por demais comum e até mesmo um pouco feio, pois era muito fino, sempre magro. Assim, comprei outro cavalo e me veio o cavalinho branco. Eu precisava ter um cavalo fogoso, que impressionasse, que chamasse atenção quando eu chegasse a um aglomerado de pessoas. Assim, eu já me imaginava no dorso do Sputnik e ele sacudindo as compridas clinas, esquipando com graça e eu levado em seu dorso sem que mexesse qualquer parte do corpo mexia. Em um bom cavalo esquipador o cavaleiro pode carregar um ovo na colher. Seria um sucesso. Eu moço da cidade exibindo montaria no sertão. Depois me imaginei nas trilhas dos gerais, entrando com o Sputnik num largo bordejando uma bela vereda em busca de um ranchinho daqueles perdidos. Só nós dois naquele mundão de meu Deus, só a abóboda celeste azulzinha, nuvens de carneirinhos passeando de lado a lado, os buritis em fileira como numa procissão, com as palmas apontando para o céu de preces para o Criador de todos. Encostava-se à porta do ranchinho e chamava o dono. Esperava acomodado no dorso do Sputnik branquinho como a neve contrastando com o verde dos buritis e embaúbas Saudaria o dono do rancho e apeava com estilo amarrando o Sputnik no tronco de uma caraibinha forrada de flores amarelas.  E o Sputnik entrava na encenação, sacudindo o pescoço para realçar as clinas compridas belas e prateadas. O dono do ranchinho teria que ficar admirado.
            Fiz tantos planos, eu e meu cavalinho branco, o meu Sputnik, senhores de um mundo especial.
            Quantas viagens empreendidas, escoteiro, naquele belo cenário. Horas e horas, dias inteiros, sem encontrar outra viva alma, sem uma fala senão a voz do cerrado, o canto das palmas dos buritis, um mundo especial em que se via, nas pequenas coisas, a presença do criador. A arara azul no topo da palmeira, querendo espaço para o ninho ou somente para saborear o fruto carnudo. As palmas levemente agitadas pela brisa dos gerais fazendo cantiga, sonoridade dos ares dos gerais, incomum, inconfundível. De repente daria de ver veadinhos chegando para bebida da água fresca brotada de ocas nas raízes das palmeiras – chegam de orelha esticada, abandando como a capitar ruídos estranhos e o toquinho de rabo rodando como pequeno radar assuntando perigos. Milagres dos gerais. Ah! Meu Deus grandioso!
         Brumas chegam! Brumas passam! E lá foram os meus sonhos de príncipe dos gerais, das veredas cantantes em um cavalinho branco. Triste, sem jeito a dar, mandei soltar o cavalinho branco na larga. Seria livre para correr os campos sem peias e arreios. Iria correr os gerais livre como o Sputnik corria os céus.
            Dizem no Urucuia que de quando em quando surge nos gerais, saindo de uma vereda, um cavalinho branco jogando as patas para o alto a modo de querer voar. O Urucuia tem seus mistérios.


sábado, 6 de julho de 2019

VIVÊNCIAS – CONTOS


No mês passado vivemos o clima dos festejos juninos. De forma muito especial, grande parte da população são-franciscana participou da romaria de Santo Antônio de Serra das Araras, uma tradição que chega perto do segundo centenário. Neste conto, busco um pouco da beleza, dos mistérios e do tanto que significa a Serra das Araras no campo religioso, cultural e turístico para nós são-franciscanos.




DESVENDANDO O MUNDO DA SERRA


            A Serra das Araras, de qualquer acume – que são poucos em São Francisco – ,  pode ser vista como uma linha destacada no horizonte – ora azulada, ora outra marronzada e até de cor negra, mas sempre  acima do comum. De junto, em especial em tarde de sol nas costas, ela resplandece, brilha como um tesouro, tem  coloração diferente, destacada de tudo que a cerca, por baixo e por cima. Aquele paredão imenso, que sai do vão, atinge os gerais, a grande chapada que vai muito além, tem um manto verde escuro, todo riscado de vermelho e eril, coisas feitas com o tempo pela chuva e o vento, furando gargantas nas escarpas. Tudo muito aprumado de desestimular a subida ao seu tope senão pelas poucas trilhas – essas mais parecem o lombo de um camaleão, um fio só, escorrendo perigosamente para os lados sem maneira de se segurar, nem pedra, nem árvore. Do ponto de mirada, que atraía os aventureiros para ali chegar, ela tinha uma ponta de se mostrar, como serra, quase caindo na vila, ali tão próxima, que recebeu seu nome – Serra das Araras. Em linha na direção pela esquerda aponta para o município de Januária; pela direita estende-se  para o chapadão. Uma parede formidável que segue de linha horizontal, no nível de se ver, até esbarrar nos pequenos picos brancos, que lembram torres de catedrais, são tantos. Ali dá passagem à garganta que desemboca nos Buracos, morada de mineiros tradicionais. A planície, descendo da rodovia – vem ela de mais além, muito longe – é forrada de capim de ano, miúdos arbustos e muito salteados, tão raros que dá para correr de carro sobre eles se por precisão. Encosta de chofre no sopé da rampa e ali acaba. Subindo é outra a vegetação, ou quase nenhum senão o ralo mato.
            A Serra das Araras exerce uma atração muito especial tanto para os romeiros de Santo Antônio como para pessoas que ali chegavam fora de época, só por gostar daquele mundo tão encantado.
Assim aconteceu com um pequeno grupo de jovens de cidade alhures –  Paulo, Cláudia, Luís, Robledo, Helena e Sara, talvez namorados. Queriam mergulhar um pouco naquele universo que vinha de uma lenda ou verdade de quase duzentos anos, quando ali foi encontrada a imagem de Santo Antônio e, depois da história contada, de sua ida para cidade e, logo depois, a misteriosa fuga para voltar ao antigo ninho. Todos mochileiros chegaram à vila com um aparato para caso de acampar em qualquer ponto. Na vila da Serra contrataram Zé Toco como guia, conhecedor que era da região, dos melhores, e de tantos “causos” ali contados.
            Deixando a vila como um ponto para trás, o grupo partiu para escalar a serra pela trilha que tinha pé no barranco da vereda Catirina. Uma  trilha cheia de arestas que, com qualquer descuido, pode causar danos aos pés dos caminhantes. A jornada pelo platô tinha razão de conhecê-lo e, depois, alcançar os “buracos”, do outro lado. De fato, pela falas de Zé Toco, os Buracos tem muitos atrativos, não só pela beleza natural como pela gente que ali montou moradias. Lá no alto tudo muito agreste. Sinal de vida só do vento sacudindo  a vegetação rala, vento, que ia do cicio ao silvo forte.
            Vinte minutos depois estavam na aba da serra, junto às torres brancas e ali montaram acampamento. Esperaram a noite.
            Paulo ajeitou primeiro seu saco de dormir, afastando os râmulos frágeis da quaresmeira que tombavam sobre seu leito permitindo uma boa visão do céu. Porém não ficou ali, foi para junto dos companheiros à beira da improvisada fogueira onde o guia Zé Toco lhes preparava o café. Surpresa: haviam esquecido do coador. Somenos valor, acudiu o próprio Zé Toco, que haveria de cuidar do café a moda antiga: sedimentar o pó na brasa. Isso fez: colocou o pó na água fervente da chocolateira e deitou-lhe alguns pedaços de carvão incandescentes. Ouviu o chiar da brasa ao contato da água e, como imã, o carvão atraindo o pó de café e, aí, foi servir a bebida sem agitar a vasilha.
            Conversavam: Paulo, Cláudia, Robledo, Helena,Luís e Sara, de lado Zé Toco apenas curiando, dando suas pitadas na conversa quando lhe cabia emendar alguma coisa com sua sabedoria sertaneja. De repente um brando sopro, mais um cicio que cortava o vale até esbarrar nos contrafortes da serra, pelo vale afora – raiar da lua cheia. As plantas rasteiras, tantas por ali, balançavam de manso, recebendo os primeiros raios prateados da lua,  que levantava no cume da serra. Um espetáculo de rara beleza: aquela imensa bola branca, tomada de brilho dando parecer estar se sustentando no platô da araras e de lá aspergindo gotas de luz sobre o vale.
            Os jovens falavam de coisas diversas, fixando mais na violência urbana até que Zé Toco interferiu, rodando o paeiro na boca, até ajeitá-lo de lado, quase caindo.
            - Cês tão falano de coisa ruim e tão assustado. Carece não, pois sempre foi assim e nada muda no modo de ser do home. É tudo pior que bicho, memo, que tem mais beleza e até sê capaiz de falá, o que os outro num pode.
            - O que é isso, Zé? Tá amolado com o mundo? – quis saber Luís.
            Zé, impassível, emendou:
            - Assunta só o que matuto qué endendê. A modo de que Caim matou Abel se eram só dois viventes no mundo além do pai e da mãe, Adão e Eva? Pouca gente na terra e já cuidavam de matar uns aos outros. E Adão e Eva num puderam tomém se conter só nos prazer dado pelo Pai? Pra que foi querê mais arrastando o pecado pra todos nóis?
            Zé falava como se perdido no tempo, com os olhos na lua que já subia coisa de um quarto de céu deixando o platô para baixo. Na beira da fogueira, como abobalhados, os companheiros ainda bebiam as palavras de Zé quando ele emendou.
            - Essas histórias me contaram dona Lourdinha, beata da igreja de Santo Antônio, na Serra. Ela falou que é coisa contada no livro sagrado. A bíblia, sabe? Falou ela que é o livro de Deus. Se é de Deus intonce é coisa séria de não se duvidá. Eu num sei muita dessas coisa, pois sou sem letra, male-male escrevo meu nome para podê votá. Aqui se ocê num votá num recebe os favores dos pulítico. Os danados só te dão uma coisinha se ocê dé o voto pr´ele. Mais num é isso não. Quero dize prus cês que o homem é bicho ruim. Intão pregunto: quem foi pió, Antônio Dó ou os soldado da puliça e da Coluna? No sertão, esse mundão de meu Deus, longe de tudo e esquecido de todos, pensa que  cidadão, inté muié e minino tinha sussego? Quale que, os home deles matavam pur achá graça, de pura ruindade e pra se mostrá muito home. O Dó matava fugindo da polícia e vingando dos pulítico. Até que num fazia muito má pros povo da roça não, só quando precisasse, caso de traiança e de disconfiança. Cês imagina, ele que matô tanto gente, tombém teve morte matada, de mão de pilão, justo por parte dos amigo dele. Amigo? E se num fosse o que haverá de sê? E a Coluna que fazia pió. Até hoje os mais antigo, deles conhecido quando aqui trilharo, diz em cantiga de folia: “Quem disse que a Coluna num vem? Ela vem capano os home e as muié tomem?” E contam que matavam tudo, num deixava um bicho vivente nas fazenda pra mode num servir de comida, depois, prus soldado do guverno que envinha no rastro deles. Tinha mais ruindade. Eles chegano numa fazenda, se viam um rapaz de muita força carregava ele pra servir de sordado da Coluna.
            Deu uma paradinha, puxou fundo o paeiro, que ajeitou o fogo com a unha do polegar e emendou:
            - Num é só na cidade qui o home é ruim não e nem é d´hoje, não...
            Falou e quietou em profundo mutismo, hipnotizado pela lua, expurgidos os aivos pensamentos, ainda que homem simples.
            Naquela noite ninguém mais falou, embora tão encantada pela luz cheia, uma bola de prata que já altaneira, esparramava luz sobre todo o vale e deixava os paredões da serra tão claros de se poder ver os buracos, ninhos das araras.
            Da fogueira que, Zé Toco providenciara de acender para passar a noite e, de certo, para espantar os bichos que quisessem visitar o acampamento, restava apenas teimosa fumaça. Logo Paulo chamou os companheiros
– Vamos simbora moçada. Vamos dar uma olhada nas torres brancas.
Sara e Cláudia, esfregando os olhos, animaram-se com o chamamento da Paulo, pois tinham demonstrado muito interesse em conhecer as torres brancas.
- Eba! Então agora vamos conhecer as famosas torres.
Não eram torres e nem famosas. No extremo oeste da serra das Araras a erosão provocada pela chuva e vento, e quiçá, de tempos imemoriais observa-se um conjunto de escarpas. Rasgado o corpo da serra foram surgindo fendas, pequenas cavernas e um trecho de maior concentração calcária, daí a coloração branca. De fato, visto de longe, os picos brilham tão diferentemente das outras áreas da serra coberta pelo mato. As fendas  dilacerando o corpo da serra caprichosamente formam pilares que se assemelham a torres.
O grupo aproximou-se, o quanto pôde do conjunto, não foi possível escalá-lo, pois considerando o aclive do paredão, preciso era equipamento apropriado.
– Estou satisfeita, pessoal – disse Sara. – bati muitas fotos para mostrar aos nossos amigos quando voltarmos.
Seguiram, depois em direção aos Buracos.
            Horas caminhadas seguindo uma trilha que, pelo sinal, parecia ser curraleira, de passagem de tropa. Iniciaram nova subida, sem sacrifício, pois do caminho cuidaram os animais com seus cascos e sequer tinha o obstáculo das pedras.
            – Cheguemo nos Buraco. – anunciou Zé. – Ocês deixa a trilha e me acompanha aqui. – Nisso deu uma guinada para a direita e aprofundou-se no mato. Pouco depois estancou-se.  chegaram à rampa descambando para os buracos.
            Aos olhos do  magnífico panorama, Paulo chamou a atenção do grupo:
            – Ei turma, esse vale me leva a um livro que li há muitos anos – Vale Aprazível, de um escritor americano, Luis Bromfield, um apaixonado pela natureza. Impressionante como faz bem viajar pelo vale aprazível, dá descanso e nos aproxima mais do Criador. Lembrando do livro, eu acho que o nome Buracos não fica bem para este vale aprazível, pois ele não tem nada de buraco, é um vale,  é éden.
Lá embaixo um vale formidável se estendia em rumos distantes, espremido por dois paredões. No distante era azulado de tão longe, um regalo aos olhos ao contemplá-lo.
Zé Toco admirado com a fala de Paulo chamou a turma para os gritos.
– Que gritos? – perguntou Sara.
– Assunta só. Chega aqui na ponta. – falando isso, Zé Toco deu três gritos bem fortes
– Óia gente!
A voz dele correu pelo vale, navegou por cima das águas claras do rio Pardo, trespassou as palmas do buriti e, quando parecia a todos que se perdera, ele voltou com o mesmo vigor – Óia, gente!
A  nitidez do eco é impressionante, chama a atenção. Zé toco até explicou:
– Quando o pessoal passa viajando pela estrada, indo para a Chapada, quando chega na ponta dos Buracos, para só para ficar se divertindo com os gritos.
Do acume, descendo pelos taludes formados por séculos de sopro e chuva corrida, era de se passar por trechos forrados de silte brilhando ao reflexo do sol dando parecer água parada – se fosse noite factível seria de dizer tratar-se de vaga-lumes  piscando. Trechos de tauá desmanchando-se em placas num processo de tantos anos somados no calor e no frio. Descida difícil, perigosa. Medo não havia, pois o estímulo para a aventura os sufocava, antes e sempre, empurrava avante e mesmo, no ponto onde estavam,  tinham que descer. O mais difícil ainda era escolher a dala mais segura pois tantos eram os trilhos, certamente sulcados por reses da solta, porque cabrito ainda não era a preferência de criação local, embora mais conveniente para a região tão árida e de pouca pastagem. Tudo é questão de costume, preferência.
            Arrastavam-se com lentidão pela encosta abaixo, examinando cuidadosamente onde colocar o pé. Demoravam e isso não era bom, pois já prenunciavam sinais da celagem da noite e se o lusco-fusco, que se prenunciava, os alcançasse na descida, teriam problemas sérios, na certa. Aí, uns aos outros, como bando de álacres jandaias se puseram a gritar como maneira de estímulo interior para as forças exteriores. Foi como um estrondo, de certa maneira surpreendente e belo, o refletir o eco, de todas as vozes, lá no fim de vale, para voltar-lhes o mesmo encorajamento gritado. Riram a valer.
            No sopé da serra, entrada do vale, aramaram, outra vez, o acampamento, acenderam a fogueira e esticaram conversa. Zé Toco, enquanto acendia a fogueira, deu início às suas histórias.
            – Ocês já ouviro falá do famaliá? – perguntou olhando para as moças.
            – Sabemos da história, não, seu Zé. Conta pra gente – pediu Cláudia.
            – Pois é. Aqui pras nossa banda acontece coisa. Coisa que até Deus duvida, gente. Aqui, coisa de uns tempo atrás foi conhecido um homem solitário, que ficou conhecido de seu Gaspar. Não tinha grandes posse, só uma tapera. Ninguém dava ligança pra ele. Sabe que, de uma hora pra outra ele foi crescendo. O povo diz que ele não saiu daqui, não catirou nem  mascatiou, num tinha nada, intão acuma podia melhorá de vida? Pois melhorou. Em pouco tempo fez uma fazendona de espichar pasto para toda banda a sumi de vista. Gado e cavalo é que não faltava. De repente já era o coroné Gaspar, home de posse e mais posse, muito respeitado. Deu de muita gente querê sabê daquela mudança. Mistério. Coroné Gaspar tinha um neguinho, tratado de Expedito,  que fazia serviços para ele em casa. Era só ele. O menino num era de andar muito. Vai que um dia ele campeando uns animá bateu os olhos numa menina da região, a Chiquinha, filha de um morador na redondeza da fazenda. Engraçou com ela tanto; e viu e gostou. Sempre arrumava modos de campear só para ver a menina. E assim começaro a se falá. Tempo corrido, confiança adquirida, mais amô chegado, o menino foi se abrindo com a Chiquinha. Foi que num dia ela perguntou intrigada para ele como o patrão dele que num tinha nada, e de um dia para outro ficou ricão. Expedito  ficou no cismejo, mas de tanta Chiquinha, com todo  dengo pedir, ele contou. Falou que o patrão tinha um capetinha preso numa garrafa. Tudo que ele pedia o capetinha dava. O menino falou que o coroné conseguiu o capetinha indo nos galinheiro em busca de ovo de galo, coisa tão difícil, é do tamanho do ovo de juriti. No dia que achou o ovinho ele levou ele pra casa e esperou a Sexta-feira Santa. Intonce foi pra uma encruzilhada, botou o ovo debaixo do suvaco e correu pra casa. Ficou quarenta dias de cama até que nasceu o capetinho. Depressa ele botô ele numa garrafa e arroiô. Contou o menino que já viu a garrafa muitas vezes, mas num tocô nela. E daí, quis saber Chiquinha. Daí, contou Expedito que tinha o lado ruim, e se benzeu com três sinal da cruz. O capetinha leva a alma do patrão. É o trato deles. Num faço isso por dinheiro nenhum, disse o menino para Chiquinha. Zé Toco arrematou a história:
            – Já foi muito falada essa história na região. Nunca vi o tá capetinha, mas que ele existe, existe, e é tratado de Famaliá.
            E a moçada foi dormir espantada. Eta sertão.
            Na manhã seguinte o grupo se despediu do sertão passeando pelo vale aprazível, os Buracos. Desceram acompanhando uma bela vereda, cabeceira do rio Pardo. Uma parte da água vinha de locas da serra de onde escorriam como línguas de prata. Na vereda o córrego tomava mais corpo, era água brotando das raízes dos buritis e, de pouco já volume maior se fazia ganhando nome de rio, rio Pardo. O grupo andou bons quilômetros deslizando na água fresca, pés na areia branca, fina. No alto ouvia a cantiga do vento balançando as palmas dos pés de buritis, tudo juntado com o canto das araras e outros pássaros. Outros bichos vinham mais de longe para saciar a sede na água fresca da vereda.
            Paulo respirou profundo. Chamou os amigos para um abraço
            – Meus amigos, vamos dar um abraço na natureza. Este belo vale persiste, mas até quando? O homem vem por fora, vem rodeando. Aqui e acolá dizima-se o cerrado dando lugar aos pastos, plantio de soja e eucalipto. Sabe-se que os córregos estão secando. Existem poucos daquela exuberância de aguada que foi de tempos atrás. Nesse ritmo alucinante de destruição, o que será das comunidades deste vale aprazível, o que será dos moradores dos Buracos.
            Abraçaram-se comovidos e fizeram uma prece a São Francisco de Assis, amigo das águas.