CAVALINHO BRANCO
Agora, vendo o cavalinho branco na doma, esticando as
pernas para frente, muito alto, tão diferente do comum aos animais de monta, lembrei-me
do Passo do Ganso. O domador o conduziu para o ponto onde eu me encontrava.
Apeou e me entregou o cabresto dizendo:
– Seu menino, esse cavalo não tem jeito, não. Num vai
aprender passo algum, viageiro ou marcha. A mania dele é só jogar as patas para
frente. Desse jeito nenhum cavalo anda.
Lá se foi o meu sonho. O cavalinho branco era meu. Eu o
adquiri de José Braga, um criador de animais da região de Santa Rita, próximo
do Núcleo da Conceição. O danado era muito bonito. Não tinha grande estatura,
mas o físico era bem conformado, clinas compridas, pescoço delgado e empinado.
Era bonito. Assim que ele me foi entregue fiquei feliz e dei-lhe o nome do
primeiro satélite artificial lançado ao espaço, Sputnik pela URSS em 1957 – uma
honraria.
Naquela quadra eu viajava muito pelos gerais urucuianos a
serviço do Núcleo Colonial e da Justiça Eleitoral, inscrevendo eleitores nos
mais perdidos e distantes grotões, lugares quase nunca visitados por gente de
fora. Eu tinha uma pequena tropa à minha disposição – o burro Avião, forte,
resistente e bom de viageiro. As jornadas montado no Avião não me cansavam nem
deixavam com as pernas e o corpo doendo; a mula Ruana, bem menor e também de
bom viageiro; e a Moeda, essa muito arisca, que exigia estratégia para ser
montada e, assim mesmo, com o cavaleiro em cima ela tinha que dar uns pulos. Em
viagens mais curtas eu fazia no cavalo Tarzan, que era meu. Eu gostava do
Tarzan, pois seu viageiro era macio, mas ele não tinha muito estilo, era por
demais comum e até mesmo um pouco feio, pois era muito fino, sempre magro.
Assim, comprei outro cavalo e me veio o cavalinho branco. Eu precisava ter um
cavalo fogoso, que impressionasse, que chamasse atenção quando eu chegasse a um
aglomerado de pessoas. Assim, eu já me imaginava no dorso do Sputnik e ele
sacudindo as compridas clinas, esquipando com graça e eu levado em seu dorso
sem que mexesse qualquer parte do corpo mexia. Em um bom cavalo esquipador o
cavaleiro pode carregar um ovo na colher. Seria um sucesso. Eu moço da cidade
exibindo montaria no sertão. Depois me imaginei nas trilhas dos gerais,
entrando com o Sputnik num largo bordejando uma bela vereda em busca de um
ranchinho daqueles perdidos. Só nós dois naquele mundão de meu Deus, só a
abóboda celeste azulzinha, nuvens de carneirinhos passeando de lado a lado, os
buritis em fileira como numa procissão, com as palmas apontando para o céu de
preces para o Criador de todos. Encostava-se à porta do ranchinho e chamava o
dono. Esperava acomodado no dorso do Sputnik branquinho como a neve
contrastando com o verde dos buritis e embaúbas Saudaria o dono do rancho e
apeava com estilo amarrando o Sputnik no tronco de uma caraibinha forrada de
flores amarelas. E o Sputnik entrava na
encenação, sacudindo o pescoço para realçar as clinas compridas belas e
prateadas. O dono do ranchinho teria que ficar admirado.
Fiz tantos planos, eu e meu cavalinho branco, o meu
Sputnik, senhores de um mundo especial.
Quantas viagens empreendidas, escoteiro, naquele belo
cenário. Horas e horas, dias inteiros, sem encontrar outra viva alma, sem uma
fala senão a voz do cerrado, o canto das palmas dos buritis, um mundo especial
em que se via, nas pequenas coisas, a presença do criador. A arara azul no topo
da palmeira, querendo espaço para o ninho ou somente para saborear o fruto
carnudo. As palmas levemente agitadas pela brisa dos gerais fazendo cantiga,
sonoridade dos ares dos gerais, incomum, inconfundível. De repente daria de ver
veadinhos chegando para bebida da água fresca brotada de ocas nas raízes das
palmeiras – chegam de orelha esticada, abandando como a capitar ruídos estranhos
e o toquinho de rabo rodando como pequeno radar assuntando perigos. Milagres
dos gerais. Ah! Meu Deus grandioso!
Brumas chegam! Brumas passam! E lá foram os meus sonhos
de príncipe dos gerais, das veredas cantantes em um cavalinho branco. Triste,
sem jeito a dar, mandei soltar o cavalinho branco na larga. Seria livre para
correr os campos sem peias e arreios. Iria correr os gerais livre como o
Sputnik corria os céus.
Dizem no Urucuia que de quando em quando surge nos
gerais, saindo de uma vereda, um cavalinho branco jogando as patas para o alto
a modo de querer voar. O Urucuia tem seus mistérios.
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