Bons
tempos esvaídos nas brumas do passado chegam ao desconhecido e inóspito sertão
urucuiano. Um jovem desgarrado viajava
montado em garboso burro ruão de viageiro macio. Não se provia de muitos
apetrechos. Levava apenas uma capoteira com uma capa, uma rede e um cobertor. Indo de lado – e às vezes
disparando na frente do burro – um cão perdigueiro. Burro e cachorro não tinham
nomes. Eram três em um só. O jovem atendia pelo nome de Felipe – Felipe só, não
adiantava o nome da família e lá tinha seus motivos. Viajava escoteiro e isso
não causava espanto, pois na região sempre aparecia cavaleiro solitário – a
serviço ou fugitivo da polícia.
O sol descambava no horizonte
tingindo o céu de suave vermelho esbatendo para o dourado, quando Felipe
despontou em um limpo, que dava entrada a uma vereda. Pouco trotado divisou um
rancho ali aprumado. Era pequeno, mas bem cuidado, de aspecto agradável. O
terreiro da frente era cercado por paus roliços. Não tinha mato nele, apenas um pé de bouganville coberto de flores
vermelhas. No fundo outro cercado com um pequeno mandiocal, alguns pés de
algodão crioulo, dois jiraus tomados
pelo verde da cebolinha de cheiro, coentro e couve; pés de limão rosa, mamão e
touceiras de bananeiras. No meio do mato, algumas galinhas, vigiadas por um
galo, ciscavam em busca de vermes para o bando de pintainhos que a seguiam com
avidez. Nada mais havia.
Felipe chegou-se à beira da cerca e,
sem apear da montaria, chamou sem dar alarde – Ô de casa!
Esperou um pouco e repetiu o
chamado, um pouco mais alto.
Logo depois despontou na portinhola
do rancho, entreaberta, a figura de um homem magro, estatura mediana. Trajava
com simplicidade, mas com decência, tanta a calça quanto a camisa pareciam ser
tecidas de algodão. Factível de ser por obra de sua mulher que cultivava
algodão crioulo no quintal e que, por certo deveria possuir um tear.
–
Pois sim, viajante. Tardes. E quem é o moço?
Felipe adiantou a montaria mais
próxima da cerca sem forçar o contato e se anunciou:
– Sô de fora. Tô de chegada no
sertão e preciso de ter notícia de umas terras da minha gente. Preciso também
de sua serventia de um pouco de água e um breve descanso. E se não incomodar o
senhor, um ponto para esticar a rede e descansar.
O morador, então, ultrapassou a
porta do rancho e se adiantou até a cerca e anunciou ao forasteiro – Eu sou
Mané Tercilo. Moro aqui desde menino. O moço apeia. É bem-vindo. – falando
isso, afastou os paus da tronqueira para dar entrada ao visitante com sua
montaria.
– Prazer, seu Mané Tercilo.
Desculpe-me estar incomodando – disse Felipe apeando do burro.
Mané, muito solícito, como um bom
urucuiano, apressou em convidar Felipe para chegar ao seu rancho: – Vamos
adentrar no rancho, seu Felipe. É pequeno, mas cabe nós dois e mais, pois é de
bom grado receber os amigos.
Dito isso, Mané abriu a porta do
rancho para a entrada de Felipe a uma sala, muito pequena, iluminada apenas
pela luz passada pela porta, sem janelas que era. Uma tosca mesa com três
tamboretes de tálamo de buriti compunha o mobiliário humilde. Em um canto, numa
pequena armação, encontrava-se um pote coberto de pano branco bordado, com dois
copos de alumínio disposto numa travessa. Era só.
À vista do pote, Felipe pediu ao
Mané que o servisse de um gole d´água e foi prontamente atendido.
– Toma, seu Felipe, que é pura e
fresquinha. É da vereda. – Emendou, depois – Então, o que traz o senhor a esse
fim de mundo?
Felipe, com serenidade colocou o
chapéu de lado, alisou os fartos cabelos e fitando seu Mané, relatou:
– Olha, seu Mané, eu viajo meio sem
rumo. Procuro uma fazenda que foi do meu avô. Ela está abandonada há muitos e
muitos anos, nem sei como pode estar nos dias de hoje. Meu avô vivia nela, era
muito rica em criação e produção. Sucedeu que, meu pai viajou para a cidade e
não mais voltou, foi estudar. Depois, tempo depois, minha vó morreu. Meu avô
sozinho naquela fazenda não aguentou a solidão. Deixou a fazenda nas mãos de
empregados e foi atrás de meu pai. Eu era pequeno quando ele chegou em nossa
casa. Lembro da conversa dos dois. Pouca coisa, pois era menino. Vô pedia para
meu pai voltar e tomar conta da fazenda. Meu pai não cedeu ao pedido dele. Vô,
todas as tardes insistia com meu pai dizendo que seu destino era aquela
fazenda, fazenda de raiz da família. E o dois ficaram lá na cidade sempre
repetindo a mesma história. Tempo foi passando até que meu avô se despediu
desse mundo sem ver meu pai atender seu pedido. Morreu guardando tanta
tristeza.
– Ouvindo aquele relato, Mané deu um
suspiro profundo e gemeu – Que história triste, seu Felipe.
– Pois é, seu Mané. Depois chegou a vez do meu pai. Também
ele se foi. Esqueci daquela história até que um dia, bateu em mim um chamado.
Não sei se era em sonho ou se eram vozes mesmos. Dizia que eu tinha de tomar conta
da fazenda e que ela era o encanto da nossa geração. Não entendi. Mas o sonho
se repetia e as vozes também. Resolvi então atender o chamado e aventurar pelo
sertão em procura das terras de meu avô. Pode ser que a encontre, pode ser que
não, pois tem tanta gente invadindo até terra produtiva, imagina uma esquecida.
– Qual é o rumo dessas terras, seu
Felipe? – perguntou Mané.
- Não sei muito bem, seu Mané.
Lembro vagamente do meu pai comentando com um amigo dele que meu avô abandonara
uma grande fazenda na mão de capatazes nas bandas de um rio chamado Vazante,
nas fraldas de uma serra de nome Constantino. Dizia que era um vale muito
bonito, verde-verde de pastagens, um mundo novo.
Nisso, Felipe estancou a fala, ficou a
modo de pensar. De repente, como num estalido, como se achasse uma coisa
preciosa, gritou:
– Seu Mané, é isso, o nome da
fazenda é Mundo Novo!
Mané socorreu-o de imediato – Seu
Felipe, pera aí. Sei donde fica essa fazenda. Não é longe, coisas de 10 e
poucas léguas indo para o rumo de Goiás. Tá lá no Mundo Novo. Sei só que a tal
fazenda é tratada, hoje, como a Tapera. Não foi tomada e ninguém vai lá. Não é que seja assombrada, pelo que sei. Mas
o povo tem medo dela.
Felipe se agitou. A emoção palpitou
em seus olhos e na face ruborizada. Depressa perguntou – Então, onde fica a
terra, seu Mané?
Mané Tercilo, chamou Felipe no
terreiro e fez um desenho no chão, um mapa dando os rumos da viagem para chegar
ao Mundo Novo. – O senhor vai deixar essa chapada e buscar o vão até encontrar
o rio Manso. Vai acompanhar sua descida, sempre margeando. De um lado vai ter,
quase sempre, as encostas da serra Taboão. Não tem de errar. – apontou no chão
o risco dizendo – É aqui o rio Manso.
Oia aqui! Nesse ponto tem um ribeirão entrando no Manso. É o chamado Parado. Aí
o senhor vai subindo por ele, vai ganhar de novo a chapada. Na cabeceira desse
córrego, passado uma grande cachoeira, vai dar numa grande vereda. Segue por
ela, sempre e lá no final, virando para a direita, o senhor vai ver um grande
vale verde. É o Mundo Novo. Lá está sua
fazenda.
No outro dia, ainda com a Estrela D´Alva
no céu, Felipe arreou o ruão, agradeceu o adjutoro do seu Mané, chamou o cão e
ganhou a trilha. Viajou o dia inteiro até chegar ao córrego Parado. Fez pouso
nas suas margens. Peou o ruão deixando-o pastar na verde grama das margens do
córrego e, debaixo de portentoso pau d´óleo, armou a rede, acendeu uma fogueira
e pôs-se a matutar seus rumos. Pensava o que faria, depois de encontrar a
fazenda. Abandonada estava como dizia o seu Mané. Como iria aprumá-la se
recursos não tinha. Nada nadinha mesmo, senão sua coragem. Saiu de casa nas
pressas só para atender um chamado que mal entendia. A noite passou sem dormir
ouvindo o pio das corujas, uivos de lobos e até o canto do urutau, o que lhe
desgostou.
No dia seguinte, bem cedo, retomou a
jornada. Pôs o ruão na estrada subindo pelo Parado. Ganhou a chapada e
encontrou a vereda descrita no mapa do seu Mané. Foi contornando-a com
admiração tanta por sua beleza. Era tão verde com as palmeiras enfileiradas, as
palmas balançando no sopro da brisa dos gerais. Dava para perceber o bando de
araras descendo em suas copas para saborear um fruto vermelho, o buriti. Mais
próximo passando dava de ouvir o murmurar das águas brotando de locas e
dançando no meio da raizama. Eis que, na cabeceira da vereda, virando-se para o
lado direito, deparou com um belo vão, um vale verde, verde como jardim. – É
aqui! – suspirou Felipe, direcionando o
ruão pela trilha que dava rumo ao vale. Em pouco tempo estava na planície. Não
muito cavalgado, meio à entrada de um bosque fechado de aroeiras e pau d´óleo,
encontrou a casa da fazenda – de fato, uma tapera. Seu coração disparou. Eis
que, de repente, ele vislumbrou, na janela, seus avós acenando para ele com
alegria. Assustou-se com a visão. E não foi só ele. O ruão estancou-se e
levantou as orelhas querendo entender algum sinal do que não entendia e o
cachorro ganiu ao invés de latir. Foi uma cena de arrepiar. Felipe não teve
medo. Esporou o ruão que teimava em ficar estancado. Relutante seguiu, mas com
passos medidos. Foram se aproximando... aproximando. Felipe de olhar fito na
janela ainda divisando a sombra de seus avós. Ruão já trotava mais solto e o
cachorro corria de um lado para o outro latindo, latindo como seu buscasse uma
inhambu.
Incrível!
O que parecia ser uma tapera, como atingida por um jato de luz, forte,
fortíssimo, despencado de uma estrela, transformou-se numa casa reluzente. A
casa ganhou vida. Sem medo, Felipe avançou pela porteira até encontrar a
escadaria que levava ao alpendre. Desceu do ruão que não teve cuidado de amarrar
e ele, sequer, aluiu do lugar. Degrau a degrau atingiu o patamar superior da
escada e assim que pisou na varanda a porta da fazenda abriu de par a par. No
interior da sala resplandecia uma luz suave, translúcida. Cristais bailavam no
ar como pirilampos pareciam diamantes. Os janelões da sala abriram-se e mais
luz iluminou o ambiente, mas era uma luz incomum, não do ambiente natural, do
sol... No lado oposto à entrada Felipe divisou um corredor que parecia
chamá-lo. Foi até lá, passo a passo. Atravessou o umbral da porta e adentrou no
corredor e percebeu, então, que ele não tinha fim, como um raio de luz
prolongado se afunilava e, a cada passo que dava, mais longe ele ia.
Felipe avançou, avançou como uma
pena a flutuar, nem sentia o chão sob seus pés. Aí, uma voz muito suave, doce
como uma carícia, balbuciou aos seus ouvidos:
– Você veio, meu filho. Você veio.
Felipe se encantou na casa. Do lado
de fora o ruão e o cachorro não deixaram o local esperando Felipe... esperando.
E a tapera continuou mais tapera que
nunca.
Contaram essa história para o Mané
Tercilo, que havia mencionado para algumas pessoas sobre a passagem do viajante
Felipe em busca da fazenda Mundo Novo. Assim que soube do destino do burro Ruão
e do cachorro, e ninguém falando do Felipe, ele imaginou o que acontecera e se
benzeu:
– Louvado seja o Pai do Céu. A
tapera era o destino do seu Felipe.
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