João Naves de Melo - Membro da Comissão Mineira de Folclore
A lenda ou décima do Rio Abaixo - I
Assim como a lenda do Famaliá, do Caboclo d´Água, do Romãozinho, algumas ligadas às maquinações do demo para conquistar a alma do homem, tudo lhe dando em vida para arrastar a sua alma, depois, para as trevas, envolta de profundo mistério, antiga, mas pouco conhecida e envolvente, corre nas barrancas do rio São Francisco, guardada nos profundos recônditos da alma de amedrontados violeiros, a lenda ou décima do Rio Abaixo. Violeiros antigos e bons ponteadores conhecem o toque, mas não se atrevem executá-lo. Há sempre uma pronta e seca recusa.
A décima recolhida no município de São Francisco – MG, é cantada em dezesseis estrofes. Ela conta a história de um violeiro misterioso, executando uma música envolvente que seduzia mulheres. Uma canoa deslizando no São Francisco sem canoeiro de se ver – às vezes, melhor olhando, possível seria divisar um sinal de chapéu de abas bem largas. O remo não era visto e a canoa descia como abandonada. Dela propagava um som melodioso de viola, alcançando as barrancas, onde se postavam mulheres no afazer de lavar roupa e vasilhame – somente elas, em especial. Encantadas elas pediam para o remeiro-tocador encostar a canoa no barranco, de onde era convidado para ir até ao rancho tomar café, abrindo caminho para outras coisas que ele queria, sempre tocando e tocando. O terceiro personagem da lenda é um menino que jamais era envolvido pela magia e, assim, sempre quebrava o encanto revelando o mistério: o pé do violeiro era redondo. Antes de se sucumbir ao encanto e entregar sua alma ao tinhoso, salva pela criança, a mulher punha-se a se benzer e começava as rezas do Credo de trás para frente, do Pai-Nosso e tantas outras, das mais fortes. Acuado o tinhoso corria para a canoa gritando: “S´imbora, Gaspar” e tocava a canoa rio abaixo: “Descendo o rio abaixo/ ê, numa canoa furada/ ê, descendo o rio abaixo/ (...) arriscano a minha vida/ ê, numa coisinha de nada..”
Curioso é o registro feito na décima, na parte declamada: o violeiro não fala qualquer palavra relacionada a Deus ou santos. Um diálogo estranho ocorria: - Bom dia, seu moço!. O siô foi Deus qui mandô – dizia a mulher. Não, dona, eu vim porque quis – replicava o violeiro. A viúva continuava sem perceber a aversão do violeiro ao nome da divindade: Nossa Senhora! O siô toca muito bonito. Ao que ele cortava seco: Senhora, eu toco. Ela continuava em seu encantamento: Esse homem é do céu. E ele, seco e direto: Não, eu sou de casa mesmo.
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