Marina Naves avança na digressão de sua viagem em rotas sensoriais e
espirituais revivendo fatos de sua tão jovem vida, mas tão repleta de encantos
e buscas. E assim chegamos a mais capítulo de sua viagem.
OUVIDOS
O ouvido é o caminho do coração. ...
Nas noites de sua infância em que faltava luz, reuniam-se todos da família —pai, mãe, irmã, avó e avô — para ouvir as lendas e causos da cidade banhada pelo Opará, o São Francisco. Seus ouvidos me contaram dos que ela tinha mais medo, e que mais lhe grudaram na memória: surubim de cabelo e o caboclo d'água, criaturas das águas profundas — mas talvez o medo residisse esse tempo todo no medo do rio não mais ter todo esse apelo de ser cheio.
Seu avô era épico em seu contar de estórias, e tudo parecia real para seus tímpanos e sua imaginação de menina pequena. O surubim, cabeludo como um roqueiro metaleiro, viria no fim-dos-tempos, saindo da sua toca nas pedras dos barrancos do rio, para partir a igreja — que fica à beira das águas — ao meio e trazer o apocalipse. O próprio diabo encarnado, o bicho feio. E isso muito lhe incutia medo, pois muito tinha ela medo do fim-do-mundo, do inferno, pois tinha um pavor incorrigível de ser uma pecadora inconfessável.
O caboclo d'água, mais famoso noutras bandas do país, pegaria qualquer canoeiro que fosse que enfrentasse as águas do Opará na Hora Morta, meia-noite, e transformaria em mulher, destino pior, muito pior que a morte. Então, como virar mulher é um destino muito, muito pior que a morte, os canoeiros construíram carrancas, monstros esculpidos em madeira mais assustadores do que o caboclo d'água para afugentar o maldito. Como ela não tinha medo de virar mulher, ela tinha mais medo das carrancas muitas que via por aí.
No entanto, há um frio na barriga em atravessar o rio tarde da noite, ou até mesmo observá-lo, quando tudo é escuro e silencioso. É como olhar para o abismo, para o vazio, e encarar sua própria alma-abismo, alma vazia. As luzes da cidade não são muitas, são como velas nas noites em que a luz falta porque houve tempestade: incapazes de conter a escuridão do sertão. Há somente um véu fino entre o eu pequeno e a imensidão do céu enfeitado de estrelas.
— Talvez seja esse o grande perigo do caboclo d'água. Ela pensou.
E eu sei disso porque os seus ouvidos me contaram quando nela, minha hospedeira, comecei a crescer sorrateiro e intruso.
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