sábado, 16 de novembro de 2024

MARINA ESCRITORA

 Os olhos são as janelas da alma, as portas para o infinito, para as veredas por 

onde Maria descobriu nosso sertão; a língua proporciona conhecer o sabor, 

por onde Marina passeou nos caminhos barranqueiros. O assunto deste 

capítulo são as narinas, importante para sentir e absorver o perfume da vida.


Narinas


Crescendo retorcido com seus bracinhos para o céu, o umbuzeiro busca as nuvens carregadas de chuva que correm, escorregadias, para longe dele. Ela pensou, tantas vezes, no tear de sua infância pequenina:

— Por que chove tão pouco aqui? 

Suas narinas me contaram que nada no mundo a encantava mais do que o cheiro de terra molhada em dezembro. Mesmo que a casa se enchesse de insetos que vinham com a chuva, a bênção da água era maior do que tudo. A seiva que fecunda tudo, o sangue das nuvens que desce transparente como lágrima de gente. O cheiro da terra molhada era como o cheiro de um mundo que se restaura.

Mas também o cheiro das folhas do umbuzeiro quando mordidas lhe encantava. Azedinhas e de aroma igualmente azedo, traziam o frescor do sertão mesmo se a chuva resolvesse se esconder por meses. Mesmo que os galhos retorcidos das árvores da mata seca, bioma-transição norte-mineiro, não conseguissem alcançar as nuvens e roubar-lhes a água. Roubava então o umbuzeiro as águas do fundo do chão com suas raízes, artérias-veias, cisterna profunda.

E ela pensou sobre isso:  

pelas raízes-aortas

encontra o poço fundo

onde o chão é todo lodo e manto

cobrindo gentil o sonho que dorme

nos confins do

átrio ventrículo


Tentando também achar a seiva das nuvens n'algum lugar, mas com algum ideal romântico por trás, a flor da caraibinha crescia vigorosa na beira do rio São Francisco. Seu perfume singelo entrava pelas narinas dela e a fazia pensar sobre o amor, sobre a vida e sobre a família. Via seu avô levar buquês da florzinha para cada uma das filhas, e netas, e para a esposa, e pensou sobre a vida e sobre a eternidade das pessoas em suas ações e nas memórias umas das outras.

O cheiro do mundo é como o aroma de um perfume que marca a nostalgia de se saber no mundo. Ela sabe seu lugar no mundo pelo perfume do cerrado, do sertão da mata seca, bioma-transição norte-mineiro. E eu sei disso porque as suas narinas me contaram quando nela, minha hospedeira, comecei a crescer sorrateiro e intruso.





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