segunda-feira, 4 de novembro de 2024

MARINA ESCRITORA

 Os lábios da sabedoria estão fechados, exceto para os ouvidos para o entendimento – O Caibalion

 


 

Mariana Naves na introdução do seu trabalho mergulhou nos campos físico/biológico e  da metafísica  ao falar de  um Caroço. Uma dualidade poder-se-ia dizer, mas que perder a razão abstrativa, pode transformar- se em um conceito.
    Nesta edição são apresentados dois títulos: Os Olhos e a Língua.  No caso dos Olhos  Marina passeia por paisagens da cidade revivendo a sua infância reencontrando bucólicos espaços com lirismo e paixão. No outro, a Língua ela passeia pelo universo/cerrado e paisagens da cidade trazendo  aos nossos olhos e alma uma natureza exuberante naquilo que oferece, como uma dádiva, aos homens.

1. OLHOS

sou fruto de uma terra árida, mas úmida
de lágrimas que regam minhas veias
e as veias da Quixabeira e as veias das ruas
de paralelepípedos que foram trocadas pelo concreto
como o quartzo foi pelo rubi

Vi pelo que rememoram seus olhinhos que em sua infância conheceu uma velha árvore em sua cidade ribeirinha. E essa árvore velha existia há muitos e muitos séculos e era anciã há muitos e muitos anos. Sobrevivia a árvore-avó-de-todas-as-outras pela seiva do choro de muitas mulheres. Mulheres que perderam seus amados para a terrível Iara, sereia que levava os homens às profundezas do rio São Francisco e lá os fazia adormecer pela eternidade.
Perguntou um dia ao seu avô o nome daquela árvore enrugada, que ficava na esquina da última rua que ainda não fora tomada pelo progresso, pelo concreto do asfalto que arrancara os paralelepípedos de todas as outras da cidade.
— A Quixabeira. Ele respondeu, certeiro.
E todas as vezes desde então ela se perguntou se quando chorasse por alguém a árvore-avó-de-todas-as-outras se tornaria mais forte e mais anciã por causa da seiva de suas glândulas lacrimais. Quem sabe, então, eu me pergunto por que sei que ela se perguntou, não é centenária a enrugada árvore pois todas as mulheres um dia choraram por alguém naquela cidade ribeirinha?
Chorar quem sabe seja uma forma de regar a terra seca do sertão. O sal é adubo, o suor é adubo, o esforço de existir é também adubo. Isso tudo pensou a menina quando olhava a quixabeira centenária no dia que chorou por alguém. E eu sei disso porque os seus olhos me contaram quando nela, minha hospedeira, comecei a crescer sorrateiro e intruso.

2. LÍNGUA

    As papilas gustativas que residem em sua língua me contaram da joia do cerrado, dourada e carnuda, de cheiro esquisito e chamativo. Em seu quadro da memória, esse que tive acesso pela narrativa de todo o seu corpo fofoqueiro, o pequi, joia do cerrado, tem um lugar especial.
    O alimento de ouro fedido que tinge o arroz e acompanha o frango cozido encheu sua barriga tantas vezes, e foi certeiro em tantos dias quentes numa terra de calor escaldante! Seu paladar me disse que se atiçava na estrada ao ver os ambulantes nas entradas das cidades vendendo os mais diversos estandartes de aromas: o pequi — joia do cerrado — a mexerica e o araticum.
    A língua também se lembrou da secura nos anos de pouca chuva, quando o calor era retado, e o sol brilhava mais do que nunca, a pino, pendurado no topo do céu. Tudo era tão seco, o nariz sangrava, e a sede fazia sua morada na boca, e seu gosto era sentido nas papilas gustativas. Odiava-se o pequi, então, pois dele vinha a maldição da seca, como já dizia o seu avô:
— Ano que dá muito pequi chove pouco!
    Alimentar-se dá sede e lembrar, lembrar demais do que já foi nos dá dor de cabeça e faz tristeza na mente. A fartura do pequi é prelúdio de seca e mal agouro, mesmo quando nos enche a barriga de boa comilança. Há de se lembrar o sertanejo que debaixo da carne da joia do cerrado, fruto dourado e fedido, tem espinho. Se rói feito ratinho não machuca, mas se morde se engasga. E eu sei disso porque a sua língua me contou quando nela, minha hospedeira, comecei a crescer sorrateiro e intruso.

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