sábado, 30 de novembro de 2024

MARINA ESCRITORA

 Pele, sensorial físico, que por sensações diversas, leva-se ao 

espírito e a viagens no carrossel das memórias. 

É a viagem que Marina Naves nos leva no capítulo final do seu maravilhoso trabalho. 


PELE


Gostava de ir ver o sol se pôr às margens do rio e era de costume que o fizesse quase todos os dias. A vida era simples e fácil quando a rememora dessa forma. Sua pele me falou que era comum que ela queimasse as coxas desnudas n'alguma pedra que se sentava às margens das águas. O calor ainda se acumulava nelas mesmo quando o sol se recolhia e era engolido pela noite. 

Ao tornar-se mais velha a sensação de sentar suas coxas desnudas num assento de lotação numa tarde quente da capital a fazia lembrar desse tempo de fim-da-infância em que via o crepúsculo e queria tornar-se gente grande e zarpar para o mundo. O mundo então pareceu cada vez menor e pior, pior e menor, e nunca mais houve lugar nele que parecesse ter espaço para ela. 


pobre ser que rasteja o mundo!

seu reflexo é o meu no espelho;

ri em seu porvir, mariposa,

pois para mim não há lugar.


Seus sentimentos se tornaram complexos com o tempo, e eram sentidos em sua pele — eram rasgados em sua pele. Essa casca-derme se tornou um cofre sem chave, blindado em si mesmo para proteger as loucuras de um coração jovem e inconstante. O tato sentiu a si mesmo e o susto de encontrar-se no espelho e enfrentar a própria existência fez acordar o terror da vida adulta quando foi crescendo a menininha em seu tear de infância pequenina, enquanto eu crescia no meu tear de nódulo hepático. 

As memórias da pele são as mais duras como cicatrizes, as mais molengas como espinhas, as mais dolorosas como cortes cirúrgicos, as mais protuberantes como queloides. Tive dificuldade para entendê-las, mas as sei todas, de cor e salteado, e não tem calundu que lágrima tenha gerado, e que na pele tenha escorrido que eu tenha conhecimento. E eu sei disso porque a sua pele me contou quando nela, minha hospedeira, comecei a crescer sorrateiro e intruso.


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Aparelho estranho pelas mãos de um estranho. Minha hospedeira, num exame de rotina, me leva em seu corpo hermético aos confins de uma clínica para submeter-me a ondas ultrassônicas... gelado é o gel que passam sobre a pele e a carne que encobrem o órgão que me abriga. Movimentos fortes, muita pressão, apertados. Eu, intruso, sou visto por outro intrometido como se veem os bebês nas barrigas das mães. Mas não se alegraram em me ver.

Pedidos de ressonância magnética, ó máquina barulhenta! Minha anfitriã a achou senão como uma grande festa de música eletrônica, mas no pior dos maus sentidos. Por muito tempo fui um pesadelo em sua vida, roubei-lhe as noites com a preocupação de algo maior e mais ameaçador. Exames e mais exames, sangue colhido e sangue avaliado. E não tem beijo de pessoa amada, ou abraço de parente que tenha aliviado o sofrimento que ela estava sentindo.

Confesso ter me sentido mal de ter causado tanto transtorno. Só queria um lugar para ser um mero caroço-intruso. Tudo sei sobre ela, e deveria ter me atentado de que seria, sim, um transtorno. Ela borbulha em ansiedade e coça por todo corpo intensamente. Talvez um gole de arnica a ajudasse a afogar essa coceira, esse desespero, esse nervoso insaciável. 

Afinal, no frigir dos ovos, eu nunca fui nada além de um simples caroço. Mas precisou que ela ouvisse da doutora que ela não precisava se preocupar tanto, somente fazer alguns exames com alguma frequência. Conviver comigo como conviver com um vizinho. Talvez devêssemos encarar-nos como novos-velhos conhecidos como se ao espelho estivéssemos olhando pela primeira vez. Ter nossas intimidades reviradas ao avesso, pois se eu sabia tudo antes sobre ela, caroço-intruso, agora sabe tudo ela sobre mim.

FESTIVAL CULTURAL DE SÃO FRANCISCO

 



Um evento de significativa importância está sendo promovido pela  Secretaria Municipal de Cultura: o Festival Cultural de São Francisco com diversas e muito ricas demonstrações da cultura são-franciscana. O festival iniciou-se ontem, 29 e termina hoje, 30, na Praça de Esportes. No primeiro dia, da abertura, houve a participação de dez ternos de folias do município, um espetáculo de rara beleza e significado, especialmente pela proximidade do Natal, quando aparecem as figuras dos Três Reis Magos para adorar o Menino Jesus em seu berço. E mais grupos participaram: Boi de Reis, Capoeira, Reis dos Temerosos. Completa programação o festival de música raiz e shows com cantores da terra.

A equipe da Secretaria de Cultura realizou um excelente e muito dedicado trabalho. Lá estavam o secretário Lincoln, e em plena ação as coordenadoras: Paulinha, Dany, Clevane, Dany Spina e Gesilda Paraizo; o presidente do Conselho Municipal de Cultura, Raposo e o conselheiro José dos Passos. Participação, também, do presidente da ONG Preservar, Diovane. Presente o vice-prefeito Raul, os secretários João Herbber (Desenvolvimento Social) Conceir Damião (Agricultura) e Fracine (Educação).

Sem dúvida, esse evento tem uma importância muito grande na divulgação da cultura de São Francisco tão rica e expressiva. É de suma importância que ela seja prestigiada e divulgada pelo governo municipal e, especialmente, pela comunidade, começando pelas escolas. É de se lembrar, como sempre, a lição de Alceu Maynard: “Mais ama um povo quem ama suas tradições!” 

O CERRADO – VIII

 MEIO AMBIENTE: AUDIÊNCIA PÚBLICA NA CÂMARA MUNICIPAL




Encerramos a série sobre o Cerrado com uma notícia alvissareira proporcionada pela Câmara Municipal de São Francisco: audiência pública requerida pelo vereador Rodrigo Teles tendo como pauta a revitalização das veredas da barra dos Caldeirões, uma iniciativa que deve ser considerada como retomada das ações em prol do cerrado e do meio ambiente no município. Poder-se-ia dizer trata-se de um ato de mea culpa de governos do município pela pouca ou quase nenhuma atenção dada  às questões ambientais do município. A audiência, ocorrida na terça-feira 26, contou com a presença de representantes de diversas entidades civis e públicas, e de outros segmentos da sociedade, em especial de moradores da região das veredas Caldeirões.

O presidente da audiência, vereador Rodrigo Teles, inicialmente,  falou sobre o propósito da audiência, expondo a crítica situação hídrica observada na região das veredas Caldeirões e adjacências, comprovada pela exibição de vídeo. Abriu a fala aos participantes do evento, pela ordem: João Naves de Melo (ambientalista), Roberto Mendes (Unimontes), Geraldo Magela (Emater), Petrônio Braz Neto (representante da paróquia São José), Alda Maria (CBH), Márcio Passos (secretaria municipal do Meio Ambiente), Wanderson (IEF), Hélio (Copasa). Passada a palavra à assembleia, manifestaram: José Botelho Neto (Sindicato dos Produtores Rurais) Nílva Vieira (Escola Família Agrícola), Genelicio (Cáritas), Maria Mendes (Preservar) e cinco representantes das comunidades das veredas Caldeirões. Os depoimentos revelaram a drástica situação das veredas Caldeirões e de todo  complexo hídrico do distrito de Santa Izabel de Minas, anotando-se a extinção de diversas veredas, interrupção de quase todos cursos d´água e secamento de lagoas. Foram apontadas como causas: a falta de atenção do poder público (municipal e estadual), a falta de agentes fiscalizadores, a desestrutura dos órgãos municipais dedicados à recuperação e preservação de recursos hídricos (veredas, barraginhas, terraços e estradas vicinais). Várias sugestões foram apresentadas, entre elas, a de reaparelhamento da secretaria municipal de Meio ambiente/Codema, para a retomada das ações de recuperação e preservação das fontes hídricas do município, apontando a extrema necessidade de agir tendo em vista a situação do rio São Francisco: sem afluentes em pouco tempo ele terá a vazão totalmente comprometida.  

Conclusão: a audiência serviu como uma radiografia muito real da situação do meio ambiente no distrito de Santa Izabel de Minas, apontando-se as medidas que se fazem urgentes, num chamamento ao Poder Executivo e à comunidade no sentido de se tomar urgentes medidas para evitar um desastre maior e irreversível.


AUDIÊNCIA PÚBLICA: A SITUAÇÃO ATUAL

A Patrulha Mecanizada Ambiental do Município, formada às duras penas com apoio do Ministério Público e providência do governo municipal (Luiz Rocha Neto), por um longo período executou diversos projetos de recuperação e cercamento de nascentes, construção de terraços e de barraginhas. Realizou diversos programas educativos para estudantes e comunidades rurais. No governo do prefeito Veim foi desestruturado o Codema e dado fim à Patrulha Mecanizada Ambiental. O projeto Plantando Água do Codema e Projeto João Botelho Neto voltou à estaca zero. São, atualmente, 8 anos de retrocesso, pois o atual governo ainda não incrementou essas atividades. Contudo, há uma luz no horizonte com a promessa de reestruturação da secretaria do Meio Ambiente.

Como fio de esperança, ainda que incipiente, veio o programa de construção de barragens subterrâenas tendo à frente o pároco da Paróquia de São José, padre Nery, com a participação de um grupo de voluntários,  com apoio financeiro de um fundo especial do Ministério Público Estadual. Além da construção das barraginhas o projeto está provocando o envolvimento de comunidades do meio rural no programa de recuperação de veredas e cursos d´água. Um bom sinal, que depende muito do apoio do governo municipal, pois a paróquia não dispõe de equipamentos para facilitar a construção das barragens – um produtor rural prestou depoimento noticiando que construiu uma pequena barragem com seu próprio esforço, sem nenhum recurso público. Pelo tamanho do estrago, em dezenas de veredas e cursos d´água, é um quase nada, mas serve como um edificante exemplo, ou seja, que as comunidade se unam com o poder público na solução de tão grave problema ambiental, uma área em que o município de São francisco, em passado recente, serviu como modelo.

sábado, 23 de novembro de 2024

CINE CANOAS: REFORMA



 Quem viveu a história do Cine Canoas regozija-se com a iniciativa de sua recuperação em curso. Ele foi parte da vida de homens, mulheres e crianças por um bom período da história de São Francisco até ser fechado sem nenhuma destinação para ele, então da extinta Associação dos Amigos de São Francisco. Com a extinção dessa associação, o prédio foi retornado ao patrimônio do município depois de uma batalha judicial... e abandonado, deteriorando-se com o passar dos anos, entrando e saindo prefeitos. Eis que graças a uma iniciativa particular muda-se o cenário. Foi ela da empresa Cine Canoas Ltda., que tem à frente o produtor de eventos Elivelton Ferreira Tomaz. Atento ao que disponibilizava a Lei Paulo Gustavo – segmento Salas de Cinema, Cinemas de Rua e Itinerantes – ele, como muita determinação, agenciou meios para viabilizar o projeto de recuperação do prédio do Cine Canoas: elaboração do projeto, contatos com a Prefeitura Municipal e outros órgãos, ultrapassando todas as barreiras até obter a aprovação dele com o recurso de R$ 300.000,00.  Foi intenso o trabalho de Elivelton Tomaz. Ele contou com a assessoria de Keila Moraes do Coletivo Grupo Cine Canoas de jovens sonhadores, do qual fazia parte o Elivelton, que divulgava a arte (cinema) na cidade e no meio rural. Na elaboração do projeto, Keila foi uma peça muito importante.

O projeto teve respaldo do prefeito Paulo Miguel editando o Decreto nº 42 de 10 de maio de 2024, que autorizou a intervenção no prédio sob monitorização da Secretaria Municipal de obras e Gestão de Convênios. Segundo Keila foi muito importante e decisivo o apoio do prefeito Miguel Paulo ressaltando que, em todo o Estado de Minas Gerais, com 5 vagas, o município de São Francisco foi o único que se inscreveu, ou seja, que teve o interesse do poder público.

Ressalte-se, enfim, o quanto é importante a participação da sociedade, a iniciativa privada, no desenvolvimento de ações que promovam o desenvolvimento do município, a preservação de seus bens históricos e culturais. Trata-se, acima do comprometimento cívico, uma demonstração de amor, como bem o disse Alceu Maynard: “mais ama um povo que ama suas tradições” Dez para o Coletivo Cine Canoas e loas especiais para o Elivelton revestindo de vida o nosso Cine Canoas, ornamentando a Praça Centenário.

Quiçá ocorram outras iniciativas do setor privado concorrendo com o setor público em prol do desenvolvimento de São Francisco em todos os segmentos de sua estrutura comunitária. 

O CERRADO – VII

 

Sete capítulos foram dedicados a análises superficiais, mas com observações percucientes a respeito da situação do cerrado – sua importância e situação no  Noroeste de Minas. É evidente que há muito mais para se comentar, principalmente quando se vê o trabalho de construção de barragens subterrâneas no município graças ao apoio do Ministério Público. Ora, quem diria, vejam onde chegou-se, construir barragens subterrâneas em veredas que, se sabe antes verdadeiros mananciais. Há uma preocupação, pelo menos visando de cuidar e preservar o que resta do cerrado.  

Em décadas passadas acompanhou-se em São Francisco a derrubada de extensas áreas do cerrado para a produção de carvão com fim de alimentar as usinas de produção de ferro. As marcas ficaram, sem remédio.

Agora, com toda força, chegam as usinas fotovoltaicas na região. Em Arinos a  meta prevista é atingir uma área de 80 mil hectares com o “plantio” dessas placas de energia sendo metade com o desmatamento de Cerrado e a outra metade em áreas predominantemente de pastagens – no caso de captação de águas pluviais para o lençol freático considere-se o total, pois antes, com as pastagens, embora menos eficiente que a cobertura arbórea, ocorria-se a captação. 

O projeto é interessante: compromisso de ampliar a geração de energia limpa e renovável por uma empresa gigante do país visando a produção de aço. Antes o ferro, agora o aço. É o progresso, faz parte do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do governo federal. Trata-se de um projeto fantástico, de grande dimensão, ocupando vastas áreas. Certamente não será o único. Em breve virão outros e mais outros valendo-se de uma grande riqueza que tem a região: muito sol no correr de todo o ano.

Energia renovável. E o cerrado, a natureza, os cursos d´águas, como serão tratados? O governo ataca o agro que produz alimentos, mas por um lado é partícipe na alteração do nosso bioma de maneira irremediável e sem compensações anunciadas.

Precisa-se de energia? É evidente e, em especial a limpa que tem influência no clima. É possível, assim, que não muito distante, seja dispensada a geração de energia hidráulica destinando-se os rios à navegação e irrigação, como ocorrem em países como a China. Fica a pergunta:  a água para manter o sistema terá cuidados de preservação com o mesmo interesse? 

MARINA ESCRITORA

 Marina Naves avança na digressão de sua viagem em rotas sensoriais e 

espirituais revivendo fatos de sua tão jovem vida, mas tão repleta de encantos 

e buscas. E assim chegamos a mais capítulo de sua viagem.





OUVIDOS 


O ouvido é o caminho do coração. ...


Nas noites de sua infância em que faltava luz, reuniam-se todos da família —pai, mãe, irmã, avó e avô — para ouvir as lendas e causos da cidade banhada pelo Opará, o São Francisco. Seus ouvidos me contaram dos que ela tinha mais medo, e que mais lhe grudaram na memória: surubim de cabelo e o caboclo d'água, criaturas das águas profundas — mas talvez o medo residisse esse tempo todo no medo do rio não mais ter todo esse apelo de ser cheio. 

Seu avô era épico em seu contar de estórias, e tudo parecia real para seus tímpanos e sua imaginação de menina pequena. O surubim, cabeludo como um roqueiro metaleiro, viria no fim-dos-tempos, saindo da sua toca nas pedras dos barrancos do rio, para partir a igreja — que fica à beira das águas — ao meio e trazer o apocalipse. O próprio diabo encarnado, o bicho feio. E isso muito lhe incutia medo, pois muito tinha ela medo do fim-do-mundo, do inferno, pois tinha um pavor incorrigível de ser uma pecadora inconfessável. 

O caboclo d'água, mais famoso noutras bandas do país, pegaria qualquer canoeiro que fosse que enfrentasse as águas do Opará na Hora Morta, meia-noite, e transformaria em mulher, destino pior, muito pior que a morte. Então, como virar mulher é um destino muito, muito pior que a morte, os canoeiros construíram carrancas, monstros esculpidos em madeira mais assustadores do que o caboclo d'água para afugentar o maldito. Como ela não tinha medo de virar mulher, ela tinha mais medo das carrancas muitas que via por aí. 

No entanto, há um frio na barriga em atravessar o rio tarde da noite, ou até mesmo observá-lo, quando tudo é escuro e silencioso. É como olhar para o abismo, para o vazio, e encarar sua própria alma-abismo, alma vazia. As luzes da cidade não são muitas, são como velas nas noites em que a luz falta porque houve tempestade: incapazes de conter a escuridão do sertão. Há somente um véu fino entre o eu pequeno e a imensidão do céu enfeitado de estrelas.

— Talvez seja esse o grande perigo do caboclo d'água. Ela pensou.

E eu sei disso porque os seus ouvidos me contaram quando nela, minha hospedeira, comecei a crescer sorrateiro e intruso.

sábado, 16 de novembro de 2024

O CERRADO – VI


 Cerrado —“Uma floresta de cabeça para baixo”, segundo Felix Rawistcher. Antes, o cerrado era considerado como “terra madrasta”, por sua pobreza hídrica, baixa fertilidade. De repente, devastadas as florestas, o progresso avançou nas fronteiras do cerrado com voracidade para alimentar o poder econômico. Milhares e milhares de árvores, entre elas, frutíferas tão importantes do sistema e da cadeia alimentícia da fauna e do homem, foram transformadas em carvão, abertos campos para o plantio de eucalipto e formação de pastagens. Sistemas hídricos foram comprometidos, assoreadas veredas, fontes de água para alimentar pequenos córregos e rios e, através deles, o rio São Francisco. 

Ricardo Abramovay escreveu: “A continuidade da agropecuária nos cerrados encontra-se seriamente ameaçada pelo esgotamento dos recursos naturais em que se apoiam as práticas até aqui mais difundidas. Se é verdade que nem sempre isso se traduz em queda do rendimento das culturas, o fato é que a dependência crescente de insumos químicos e de irrigação constitui uma ameaça não só ao ecossistema como um todo, mas a própria continuidade das explorações agropecuárias”. Aqui, observe-se o fator água.

A troca de sistema – retira-se a vegetação que consome pouca água, por culturas de maior exigência, que dependem de irrigação e por outra cujo consumo não é elevado, mas que não retém as águas pluviais no solo (eucalipto). Dessa forma o cerrado que, por natureza, representa um grande reservatório de água não terá água para alimentar seus veios e por eles o São Francisco – isso é um fato observado no município de São Francisco cujo cerrado foi devastado para alimentar siderúrgicas. E teve mais na jornada do Norte para o Sul: campos abertos para implantar pastagens e plantio de roças em terras mais férteis que margeiam o rio. Prática que deixou desprotegidas as barrancas e, consequentemente contribuindo com o assoreamento do rio. Um dado importante foi levantado por Waldemar de Almeida Barbosa: “A decadência da mineração levou à criação de diversas fazendas na região de Paraopeba, Pitangui e Bambuí”. Ele atribuiu o fato à necessidade dos antes senhores da mineração de abrir campos de cultivo de alimentação para sustentar o grande número de escravos de que eram possuidores e que já enfrentavam período de fome: “O mineiro já se desesperando passa a lavrador ou criador de gado ou erige um engenho de águas ardentes, açúcar...”

Argumento usado para a fabricação de carvão no município de São Francisco: “é preferível dar de comer ao homem que proteger o pequizeiro”. Dizimaram o cerrado. Hoje  o homem do campo não tem o emprego (carvoaria) nem o pequi para alimentar sua família. Sobrou para São Francisco: extensas áreas do cerrado  arrasadas. E a ameaça persiste.

MARINA ESCRITORA

 Os olhos são as janelas da alma, as portas para o infinito, para as veredas por 

onde Maria descobriu nosso sertão; a língua proporciona conhecer o sabor, 

por onde Marina passeou nos caminhos barranqueiros. O assunto deste 

capítulo são as narinas, importante para sentir e absorver o perfume da vida.


Narinas


Crescendo retorcido com seus bracinhos para o céu, o umbuzeiro busca as nuvens carregadas de chuva que correm, escorregadias, para longe dele. Ela pensou, tantas vezes, no tear de sua infância pequenina:

— Por que chove tão pouco aqui? 

Suas narinas me contaram que nada no mundo a encantava mais do que o cheiro de terra molhada em dezembro. Mesmo que a casa se enchesse de insetos que vinham com a chuva, a bênção da água era maior do que tudo. A seiva que fecunda tudo, o sangue das nuvens que desce transparente como lágrima de gente. O cheiro da terra molhada era como o cheiro de um mundo que se restaura.

Mas também o cheiro das folhas do umbuzeiro quando mordidas lhe encantava. Azedinhas e de aroma igualmente azedo, traziam o frescor do sertão mesmo se a chuva resolvesse se esconder por meses. Mesmo que os galhos retorcidos das árvores da mata seca, bioma-transição norte-mineiro, não conseguissem alcançar as nuvens e roubar-lhes a água. Roubava então o umbuzeiro as águas do fundo do chão com suas raízes, artérias-veias, cisterna profunda.

E ela pensou sobre isso:  

pelas raízes-aortas

encontra o poço fundo

onde o chão é todo lodo e manto

cobrindo gentil o sonho que dorme

nos confins do

átrio ventrículo


Tentando também achar a seiva das nuvens n'algum lugar, mas com algum ideal romântico por trás, a flor da caraibinha crescia vigorosa na beira do rio São Francisco. Seu perfume singelo entrava pelas narinas dela e a fazia pensar sobre o amor, sobre a vida e sobre a família. Via seu avô levar buquês da florzinha para cada uma das filhas, e netas, e para a esposa, e pensou sobre a vida e sobre a eternidade das pessoas em suas ações e nas memórias umas das outras.

O cheiro do mundo é como o aroma de um perfume que marca a nostalgia de se saber no mundo. Ela sabe seu lugar no mundo pelo perfume do cerrado, do sertão da mata seca, bioma-transição norte-mineiro. E eu sei disso porque as suas narinas me contaram quando nela, minha hospedeira, comecei a crescer sorrateiro e intruso.





segunda-feira, 4 de novembro de 2024

O CERRADO – V

 Canarim preso na gaiola, que tristeza não será.
Canarim panhô solto, que alegria não será (Locha) 
   

O cerrado tem uma rica fauna. É verdade que já foi muito mais exuberante, porém depauperada  pela ambição dos homens ao longo dos anos, agredindo e modificando o seu habitat ela vai sendo extinta. Rui Mendonça e seu amigo Leão nas suas incursões pelo cerrado nas caçadas (quando era permitido) de veados passavam dias e noites embrenhados no cerrado, dependurados  em pés de caraíba e pequi (a flores atraiam os veados), ou metidos em locas, à espera da boa caça, deram valiosas informações  para o livro Do cerrado às margens do Rio São Francisco, uma extensa relação de pequenos e grandes animais, que conheceram, muitos deles já extintos, outros em fase de extinção. Os nomes são os conhecidos popularmente, de como os identificam o geraizeiro.
    MAMÍFEROS: anta, cachorrinho-do-mato, capivara, coelho, gambá, gato pardo e pintado, gato mourisco, jaguatirica, lobo guará, luís-cacheiro, melete (da família do tamanduá), mico, onça pintada e parda, paca, quati, raposa, saruê, tamanduá, tatus: bola, bolinha, canastra ( o maior deles podendo pesar até 80 kg), galinha, peba (tem o pequeno, vermelho, papa-defunto e o grande que não come, pesa até 10 kg), veados: campeiro, galheiro, catingueiro, catingueiro churé (pequeno do saco grande), suaçuapara vive no pântano, só sai para pastar).
    AVES: acuã, anu-branco e preto, arara – azul, amarela e vermelha, ariri, beija-flor, canaro, chorró, codorna, coruja-de-cupim, curió, ema, galinha d´água, garça vaqueira, garricha, gavião (pinhem, carcará, penacho), inhambu, jacu-pemba (pequeno), jandaia; João-Congo, João-de-Barro, juriti, mãe-da-lua (urutau); Martim-Pescador, mergulhão. papagaio,
pássaro-preto, pato preto, pêga (ave grande e agourenta), perdiz, periquito, pica-pau (cabeça-vermelha e bico torto), pomba-verdadeira (trocal), preangu, rolinhas parda e pedrez, sangue-de-boi, seriema, socó, tico-tico, tucano, urubu. (Nos anos de 1940 havia o comércio de penas de aves em São Francisco para exportação)
    RÉPTEIS: jacaré-preto, teiu.
OFÍDIOS: caninana, cascavel-da-chapada, cobra-cipó, cobra verde, coral, jararaca-da-campina e de cupim, jararacussu, quatro-presas e sucuri
    BATRÁQUIOS: jia, rã, sapo
ABELHAS; borá – mansa e brava (pau), capinheira (capim), chien (casa em galhos de árvores), europa (pau), jataí (pau), lambe-lambe (pau), mandassaia (chão), tataira (pau)
tubi (pau), uruçaí (pau e chão).
    PEIXES: bagre, gongó, piaba, pintadinho,  traira, dourado, surubim, curimatã, etc.
    A exceção da pesca nos rios Acari,  Pardo e lagoas, a  pesca é pouca, pois o acesso aos poços, no meio das veredas é muito difícil. É comum o campineiro abrir buracos em alguns pontos para pegar os peixes.

MARINA ESCRITORA

 Os lábios da sabedoria estão fechados, exceto para os ouvidos para o entendimento – O Caibalion

 


 

Mariana Naves na introdução do seu trabalho mergulhou nos campos físico/biológico e  da metafísica  ao falar de  um Caroço. Uma dualidade poder-se-ia dizer, mas que perder a razão abstrativa, pode transformar- se em um conceito.
    Nesta edição são apresentados dois títulos: Os Olhos e a Língua.  No caso dos Olhos  Marina passeia por paisagens da cidade revivendo a sua infância reencontrando bucólicos espaços com lirismo e paixão. No outro, a Língua ela passeia pelo universo/cerrado e paisagens da cidade trazendo  aos nossos olhos e alma uma natureza exuberante naquilo que oferece, como uma dádiva, aos homens.

1. OLHOS

sou fruto de uma terra árida, mas úmida
de lágrimas que regam minhas veias
e as veias da Quixabeira e as veias das ruas
de paralelepípedos que foram trocadas pelo concreto
como o quartzo foi pelo rubi

Vi pelo que rememoram seus olhinhos que em sua infância conheceu uma velha árvore em sua cidade ribeirinha. E essa árvore velha existia há muitos e muitos séculos e era anciã há muitos e muitos anos. Sobrevivia a árvore-avó-de-todas-as-outras pela seiva do choro de muitas mulheres. Mulheres que perderam seus amados para a terrível Iara, sereia que levava os homens às profundezas do rio São Francisco e lá os fazia adormecer pela eternidade.
Perguntou um dia ao seu avô o nome daquela árvore enrugada, que ficava na esquina da última rua que ainda não fora tomada pelo progresso, pelo concreto do asfalto que arrancara os paralelepípedos de todas as outras da cidade.
— A Quixabeira. Ele respondeu, certeiro.
E todas as vezes desde então ela se perguntou se quando chorasse por alguém a árvore-avó-de-todas-as-outras se tornaria mais forte e mais anciã por causa da seiva de suas glândulas lacrimais. Quem sabe, então, eu me pergunto por que sei que ela se perguntou, não é centenária a enrugada árvore pois todas as mulheres um dia choraram por alguém naquela cidade ribeirinha?
Chorar quem sabe seja uma forma de regar a terra seca do sertão. O sal é adubo, o suor é adubo, o esforço de existir é também adubo. Isso tudo pensou a menina quando olhava a quixabeira centenária no dia que chorou por alguém. E eu sei disso porque os seus olhos me contaram quando nela, minha hospedeira, comecei a crescer sorrateiro e intruso.

2. LÍNGUA

    As papilas gustativas que residem em sua língua me contaram da joia do cerrado, dourada e carnuda, de cheiro esquisito e chamativo. Em seu quadro da memória, esse que tive acesso pela narrativa de todo o seu corpo fofoqueiro, o pequi, joia do cerrado, tem um lugar especial.
    O alimento de ouro fedido que tinge o arroz e acompanha o frango cozido encheu sua barriga tantas vezes, e foi certeiro em tantos dias quentes numa terra de calor escaldante! Seu paladar me disse que se atiçava na estrada ao ver os ambulantes nas entradas das cidades vendendo os mais diversos estandartes de aromas: o pequi — joia do cerrado — a mexerica e o araticum.
    A língua também se lembrou da secura nos anos de pouca chuva, quando o calor era retado, e o sol brilhava mais do que nunca, a pino, pendurado no topo do céu. Tudo era tão seco, o nariz sangrava, e a sede fazia sua morada na boca, e seu gosto era sentido nas papilas gustativas. Odiava-se o pequi, então, pois dele vinha a maldição da seca, como já dizia o seu avô:
— Ano que dá muito pequi chove pouco!
    Alimentar-se dá sede e lembrar, lembrar demais do que já foi nos dá dor de cabeça e faz tristeza na mente. A fartura do pequi é prelúdio de seca e mal agouro, mesmo quando nos enche a barriga de boa comilança. Há de se lembrar o sertanejo que debaixo da carne da joia do cerrado, fruto dourado e fedido, tem espinho. Se rói feito ratinho não machuca, mas se morde se engasga. E eu sei disso porque a sua língua me contou quando nela, minha hospedeira, comecei a crescer sorrateiro e intruso.

I – A ÁGUA

 

A população que habita às margens do rio São Francisco, especialmente na cidade, que tem o rio São Francisco como provedor imediato e direto de suas necessidades de consumo, contando com o eficiente sistema de tratamento e distribuição de água da Copasa, não avalia o que representa o sofrimento e causa de atraso para a população rural, que não tem acesso à água, com raras exceções, como da vila Santana de São Francisco. Vive-se com minguadas latas de água distribuídas por caminhão-pipa. Quem tem água encanada e tratada em casa, com abundância, não é capaz de imaginar o drama de moradores do meio rural, das donas de casa que dependem de água para múltiplas funções e não a tem. E não fica apenas nisto, o que já é muito grave. Como incrementar as atividades agrícolas – criação de animais, irrigação essencial ao desenvolvimento de capineiras, plantio de feijão, hortaliças? Sem água não há vida, não há desenvolvimento. A vida se arrasta sempre não esperança da chegada das chuvas que se sabe, na região tornam-se raridades.
    Em recente publicação do vice-prefeito Raul Pereira, foi dado conhecimento a sua entrevista com o  ministro Wellington Dias (Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social). O fruto do encontro, muito importante por sinal, pela iniciativa do vice-prefeito, não vai alterar em absolutamente nada a situação hídrica do município A construção de cisternas nas casas para retenção de água da chuva é solução individualizada não se estendendo à comunidade. Pior é a distribuição de caixa d´água e canos, quando o que falta é água.
    O ideal, e necessário, é o governo municipal retomar o projeto plantando água que tanto resultado foi colhido no município anos atrás. Construção de tanques, barraginhas,  proteção de nascentes, terraceamentos, todo tipo de obra que possa reter a minguada precipitação pluviométrica conhecida do município. Indo mais longe, com vista a um projeto mais amplo que pode beneficiar um número muito maior de pessoas do meio rural, até mais de mil: a construção de barragens. Um exemplo está aí: as barragens de Jiboia e do Traçadal, que modificaram o meio assistindo e promovendo a população. Então, por que não investir na construção de barragens? Como fator político imediato parece não ser um bom negócio.   Este projeto é tão significativo e importante que levou técnicos do Norte de Minas ao estado do Ceará para conhecer o projeto de armazenamento de água da chuva com barragens. Foram tão longe enquanto sabemos que  aqui, no município de São Francisco, em escala menor, a experiência tem anos de passagem. Numa análise crua, pela incúria de nossos governantes, repete-se: tem anos, mas ficou no tempo, pois foi desativado o projeto Plantando Água dos programas do PJBN, Codema e Preservar. Fica a pergunta: por quê? Sem resposta, e ninguém deu a mínima e a situação de penúria perdura.

SÃO FRANCISCO 147 ANOS

 


 A cidade de São Francisco completa, neste dia 5, 147 anos. Uma epopeia para chegar a esta efeméride considerando os atropelos anteriores  às décadas de 1930/1945. Quantos embates, acirradas disputas políticas levando a tantas tragédias. Entraves  envolvendo políticos, magistrados,  polícia e bandoleiros. Coronéis que tinham o poder de manipulação dos destinos da cidade conduzindo a população como marionete. A saga de Antônio Dó. O Barulho – jagunços impedindo a concretização de um ato eleitoral legítimo. Felizmente tudo foi vencido e a pequena cidade foi se desenvolvendo como sede do município originado de São Romão. Um belo mercado recebendo a rica produção rural carreada por dezenas de carros de boi, situado no Largo Santo Antônio (praça Centenário) onde, depois das jornadas, os bois, deitados, descasavam ruminando. Na barranca do rio, o mercadinho (biblioteca pública) que recebia as mercadorias oriundas do outro lado do rio, transportadas em canoas. Cavaleiros do meio rural desfilando belos cavalos, muitas vezes trazendo as madamas nas garupas, para os ofícios religiosos ou para fazer compras no “comércio”; alguns ricamente ajaezados como o esquipador de Joaquim Figueiredo. Carros de boi chegavam carregados de mamona para os depósitos de Oscar Caetano, Sady Maynart, Floriano Mendonça e algodão para Sancho Ribas. Cidade que mergulhava em  viagens fantásticas no universo dos mistérios das crendices, lendas e mitos (de riqueza incomensurável no destaque de tipos imorredouros). Da fé religiosa  na busca do divino fazendo preces em piedosas procissões pedindo chuva. Do canto das incelências para encomendar as almas de entes queridos. Das procissões com multidão de fieis  percorrendo ruas revivendo o encontro de Jesus e Maria, conduzindo o Senhor Morto e nos festivos cortejos da festa do Divino Espírito Santo, e pelas água do São Francisco conduzindo Nossa Senhora dos Navegantes. Palpitantes manifestações: as  típicas danças, algumas voluptuosas, outras onomatopaicas ou caricatas; os autos do Natal,  folguedo como o festivo boi-de-reis, o histórico Rei dos Temerosos e a reverencial dança do São Gonçalo. As belas e famosas festa de São João da Escola Caio Martins. Ternos de violeiros em jornadas noturnas para saudar o Menino Jesus e em outras ocasiões para pagar promessas a São Pedro, Bom Jesus da Lapa, São Sebastião. O  Quebra, ruela bucólica com casebres  enfileirados  nas barrancas do rio; o Matadouro onde Hercílio Assobiador escreveu sua história no ofício de abater reses; os sobrados Regalito e Renascença; a rua Direita de tanta história; rua do Sossego, palco de uma tragédia (a morte do juiz Antero Simões). A construção da matriz de São José com homens e mulheres, aos domingos, depois da Missa, carregando pedras para erguê-la; a pequena igreja São Félix da idade de São Francisco; rua Montes Claros  a via de saída terrestre,  perpendicular ao  rio, via fluvial; os vapores  trazendo, para a cidade que se projetava, ilustres famílias. Viajando para o leste e oeste tropeiros levavam a produção do município e traziam mercadorias para abastecer os armazéns. Na Quiçaça o campo de pouso dos teco-tecos que transportavam peixes para Belo Horizonte. O sopro de búzios na chegada de pescadores ao porto, no raiar do dia, com canoas repletas de peixes de variedades tantas.
    São Francisco foi crescendo, crescendo e se modernizando com ares de cidade grande, tão bela, tão aprazível, tão privilegiada com as bênçãos de São Francisco, o santo. São Francisco de um povo generoso, hospitaleiro. No resumo, apesar dos percalços históricos,  o que se tem, nesses 147 anos, é uma história de AMOR. Lembrando o santo que lhe deu nome, São Francisco,  desejamos-lhe Paz e Bem!