sábado, 19 de agosto de 2017

VOZES DOS CIDADÃOS


O Blog inicia nesta edição uma série de publicações de entrevistas com cidadãos – são-franciscanos de nascimento e de adoção – que viveram importantes momentos da história de São Francisco. Foram entrevistas colhidas ao longo de muitos anos – publicadas a partir de 1997 no jornal Nosso Tempo e depois no jornal O Barranqueiro. Neste trabalho de pesquisa contamos com a colaboração de Elmiro Ribeiro Júnior que tem vivo interesse pela história de São Francisco – ele agendava as entrevistas adredemente.

Grande parte dos entrevistados já nos deixou. Restaram suas lembranças, o que viveram. Não alteramos nada do que nos foi dito e nem procuramos estabelecer relações históricas visando corrigir ou adequar informações. O que se tem nestas entrevistas é exatamente como foi vivido por cada personagem desta história, cada um no seu ramo, no seu campo, na sua importância.

ADÃO BARBEIRO

Adão Fernandes de Souza, mais conhecido com Adão Barbeiro, é uma figura ímpar em nossa comunidade. Como o seu amigo de profissão, Gino (Higino Antônio), ele dividia o ofício de barbeiro com uma grande paixão: o rio São Francisco, onde sempre  foi considerado grande pescador. Mas o rio já não está mais para peixe  e, é claro, muito menos para pescador. Assim, como barbeiro, Adão é o último de um grupo tradicional, que fez história em São Francisco: Gino (falecido no dia 24), Agapito Peba (seu mestre) e Manezinho, falecidos há mais tempo.

            Desde 1959, ele estabeleceu seu ponto na rua Silva Jardim, nº 534, um salão modesto, cercado de espelhos, tralha de pescador e instrumental folclórico: cacetes (para a dança do grupo de Reis dos Temerosos ou Reis dos Cacetes), violão caixas, pandeiros e reco-recos. Ali, entre uma tesourada e outra, ele vai contando histórias – rola a vida de São Francisco, passagens interessantes de pescarias e a sua última e grande paixão: o folclore. E esta paixão começou quando ele, que gostava muito de baile, viu que as danças tradicionais estavam ficando muito perigosas. E ele conta: “Óia, dançá era bom, pois tava sempre perto das mocinha. Mas com aquele negócio de passá taboca, as muié deixavam muitos homem arretado e a coisa sempre acabava em tapa, facada e já até fiquei sabeno de homem correno atrás de moça dando tiro. Gostei não e preferi o folclore. Nele é bom. A gente canta, dança, diverte muito e não tem confusão”.

            E contou da dança que  mais gostava -  “O margulhão” – uma fila de rapazes de um lado e as moças do outro. Na frente, dois guias segurando uma toalha; esses vinham em rumo das filas, com a toalha na altura dos peitos. O rapaz da ponta tomava as mãos da moça da outra ponta da fila e iam mergulhando debaixo da tolha, cantando alegre

“Pa s s a  -  p a s s a ,  margulhão, ó!  e ia escorreno fila afora, agarradinho”.

            De menino, Adão já gostava de folia-de-reis – foi lá pras bandas do Bom Jardim, seguindo o imperador – seu Elias. Aprendeu os repiques da viola – isto pelas eras de 58. Até hoje é folião-mor, mestre do lundu – a famosa dança da garrafa (não tem nada da dança baiana de hoje – é dançar o lundu, equilibrando uma garrafa de pinga na cabeça), lundu do facão – uma verdadeira arte do brandir da arma no ar e no chão, tirando chispa de fogo, passando-a entre as pernas, enquanto se sapateia. Por fim, para ir mais além, pois sempre quer ver o povo alegre e se divertindo, fundou um grupo para mostrar nossa cultura, tendo como expressão maior o Rei dos Cacetes.

            E foi com o Rei dos Cacetes e suas danças que Adão se apresentou na 31ª Semana do Folclore, em Belo Horizonte, em 1995, onde ganhou uma medalha de honra ao mérito.*

            Adão, enquanto conversávamos, fazia o pé do cabelo do Zé Braga (foto), sob o olhar embevecido do grande amigo Dió (da União Operária e grande incentivador do folclore) e a admiração do Dr. Elmiro Jr., que me sugeriu a entrevista com o Adão. De repente, ele para com o assunto do folclore para observar, tirando umas navalhas antigas da gaveta: “Agora a gente não pode usar a navaia. Tem que usar uma banda de gilete; uma pra cada freguês, pra num passá mal de um pro outro”- é a consciência de um terrível mal que assombra a humanidade. Mostra pacotes de giletes novas e volta ao trato do cabelo do Braga, que, pacientemente aboletado na velha cadeira – daquela de rodar e recair -, se divertia ouvindo tantas e deliciosas histórias.

            Adão, Barbeiro, pescador, folclorista, 71 anos, nove filhos e uma longa vida com sua mulher, dona Maria dos Reis Mendes, acha que as escolas devem cuidar mais do folclore – ensinar e praticar sempre para que “essas coisas bonitas não vão acabano com o tempo”.

            É. E que homens como Adão Barbeiro sirvam como exemplo para todos no sentido de se preservar nossas tradições, pois assim seremos um povo mais unido e forte no avançar dos tempos.

            Adão foi homenageado, em solenidade realizada em Pirapora, com a medalha Estrela Guia de Foliões conferida pela Comissão de Foliões Fluminense - RJ, presentes o presidente Affonso M. Furtado da Silva e os folclorista Domingos Diniz e João Naves, da Comissão Mineira de Folclore.


            Adão faleceu no dia 28 de junho de 2003, quando afinava a viola para sair com seu terno para jornada em homenagem a São Pedro, seu santo protetor.

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