Rochinha, se encontra atualmente assistido no Lar dos Idosos São Francisco de Assis. Sempre quieto, à frente da televisão, recebe as visitas com leve sorriso como desligado do mundo. Ele é muito querido. Faz tempo que deixou as ruas onde zanzava, quase sempre embriagado graças a maldade dos homens. Hoje está assistido, com saúde e, sempre, pedindo café. E sua história?
Menino pobre, nascido no pequeno povoado de Serra das Araras, onde, uma vez por ano, acontece a famosa romaria de Santo Antônio. Nasceu uma coisinha de nada - pequeno-pequenino, tão amiudado. Família pobre não tinha como dar de comer para ele, por isso cresceu raquítico e, o que foi pior, descobriram ainda cedo que era surdo-mudo: não falou “mamãe”, não pediu “papá”.
Na quadra de cinquenta, para completar, ficou órfão de pai e mãe. O destino, no entanto, não lhe foi mais cruel ainda ou reservou-lhe pior sorte, como órfão, pois foi adotado por uma caridosa mulher, fazendeira da região do rio Acari. Foi tratado por ela e seu marido, com atenção e cuidados, e ele se fez rapaz, cheio de vida e alegria. Corria os campos nos pelos dos cavalos, tangia o gado para o curral, mergulhava nas cristalinas águas do Acari; subia nos pés de manga; no campo enchia sacos de pequi e cabeça-de-nego e saboreava outras deliciosas frutinhas. Tinha todo um mundo à sua volta. Vivia feliz.
Um dia... um dia o destino, mais uma vez fechou-lhe as portas. Morreu o fazendeiro e a mulher não quis, e nem pôde enfrentar as lides da fazenda, trabalho assaz pesado, dificultoso. Mudou para a cidade. Levou o rapazinho, pois não poderia deixá-lo sozinho na fazenda.
Ele chegou ao novo mundo, mas deu de parecer igual ao que se diz do comportamento do gato: gosta e se acostuma com a casa, não com o dono. Foi para a cidade com sua mãe de criação, mas sua alma ficou na fazenda, no rio Acari, ficou vagando no vasto cerrado que era seu mundo. Acostumou não. Levou pouco tempo para principiar as andanças rumo ao porto da lancha (travessia do rio São Francisco) e depois ganhando a estrada comprida do sertão, sumia de vista até que alguém o reconduzisse à cidade. A qualquer descuido, ei-lo na estrada novamente.
O tempo passou. Ele não conseguiu chegar ao Acari. Não achou mais sua casa, o seu cerrado. Aprendeu, nas caminhadas – no mundo existem pessoas de espírito ruim que gostam de ver a infelicidade dos outros, por achar engraçado – a tomar pinga.
Passou a ser um andarilho solitário e alcoolizado.
Por muitos anos seguidos era possível vê-lo atravessando a balsa, indo e voltando do outro lado do rio, com sol ou chuva, levando sua alma para encontrar o seu mundo, o seu cerrado, tão cheiinho de frutas frescas e gostosas que, na cidade, ele não tem, e com o perfume de sua família ganhada.
O tempo passou, as pernas ficaram fraquinhas, como ele, no todo. Não mais buscava o cerrado – ia, somente a sua alma. Ele sofria – a dor física e a saudade. Contudo nada reclamava.
Um lar o recebeu, enfim. É possível encontrá-lo sentadinho atrás da porta de entrada com os olhos parados. Nada reclama e tudo agradece com um aceno suave das mãos. Fica em seu canto e dele não se arranca palavras, mas os gestos aflitos – ou pungidos de dor – mostrando os rumos das veredas, quiçá o seu rio Acari.
J. MELO: Do livro Do Cerrado às Barrancas do São Francisco
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