sábado, 3 de fevereiro de 2018

CAIO MARTINS, RETRATO DE UM BRASIL DE HOJE

                                                                                                           XXVII - Parte

A CERCA

 Um momento marcante que vivi nas Escolas Caio Martins aconteceu no Núcleo Colonial do Urucuia, em 1980: a construção de uma cerca. Tudo aconteceu quando no exercício do cargo de diretor de núcleos e chefe do setor de produção da Fucam, tomei conhecimento que fazendeiros da região estavam tentando tomar posse de importantes áreas  do Núcleo que, infelizmente estava no aberto. Visitei a área e constatei que seria necessária salvar, de imediato, uma extensa área. Assim, fiz um projeto objetivando preservar uma boa parte da área e o apresentei à diretoria da Fucam, que o aprovou, aviando os recursos necessários, ainda que mínimos. Assim, formei um grupo de 15 alunos do curso de agropecuária e embarcamos rumo ao Núcleo. Em Buritizeiro foram recrutados outros alunos e servidores para compor o grupo. Fretamos um ônibus e lá fomos para o Núcleo Colonial do Urucuia, Fazenda Conceição.
Foi um trabalho fantástico querelato através de uma carta remetida ao coronel Almeida, fundador das Escolas Caio Martins e seu principal prócer.
A CERCA – CARTA AO CORONEL ALMEIDA.
Vista da Conceição
Núcleo do Urucuia, 20 de julho de 1980. Prezado Cel. Almeida, Escrevo-lhe esta carta do sopé da Serra da Conceição, onde, em 1957, plantamos mais uma semente de Caio Martins. À primeira vista é estranho que eu lhe escreva uma carta, quando posso falar-lhe pessoalmente todos os dias. É que este momento é impostergável, quando devo registrar emoções sentidas, agora, no Urucuia. Estamos vivendo a essência do nosso lema “caminhar com as próprias pernas”, enquanto procuramos influir junto à comunidade local para que ela alcance o desenvolvimento. Há, neste momento, o sincretismo do ideal da turma de bandeirantes que fundou o Núcleo, com uma nova expressão do idealismo, dos caiomartinianos de Esmeraldas e Buritizeiro, aqui representados por um grupo, que no período de férias, revive os projetos de nossas bandeiras de anos atrás. É a concreção histórica de um ideal. Nisto somos todos obstinados e queremos vencer etapas, sem medir sacrifício, arrebanhando mais companheiros durante a caminhada. Ideais e utopias devem ser reabilitados sempre, pois enquanto temos a centelha da fé, ardendo, seremos capazes de penetrar nas trevas; seremos dinâmicos, transportando barreiras do imutável, provando que temos forças para vencer. É que, entre outras coisas, admitimos que desfrutamos de oportunidades de influir diretamente, mas com certeza, nos destinos de nosso País, e, por isso, sentimos as mudanças substanciais a nosso favor. E como posso admitir isso? Não é por mim,numa auto-avaliação, mas pela boca e pelo coração de pessoas sensíveis que vêm conhecer a Escola. Foi o que ouvi do Gal. Henrique Geisel em sua visita ao CT de São Francisco, quando emocionado, diante de nossos meninos, disse: “Vocês são o Brasil”. Foi o que vi daquele padre canadense que nos visitou em Esmeraldas, encontrando na Escola e em você, o significado da palavra “patriotismo, que tanto o intrigava”.
A empresa é enorme? É sim, mas temos toda disposição e não nos sentimos, de modo algum, como D. Quixote na sua recalcitrante luta contra moinhos. Temos lá nossos problemas, mas nossa preparação é para superá-los, bem ao nosso modo.
Assim é, por exemplo, o assunto desta carta: a construção da cerca da larga que estamos construindo no Núcleo (área com mais de 200 alqueires). Trata-se de uma obra comum, mas que acaba tendo um significado todo especial para nós, que transcende o seu aspecto físico. Lembro, a propósito, suas preleções em Esmeraldas… estamos construindo uma Catedral. O paralelismo não é impertinente. Pela narração que se segue, o sr. poderá, certamente, reviver grandes momentos da vida caiomartiniana.
O primeiro marco da cerca foi fincado ao pé de um buriti, na cabeceira da vereda do Capão santo (fonte do ribeirão das Lajes), e, rasgando os gerais, onde brota dadivoso “capim de raiz”,tangenciando as cabeceiras das veredas do riacho dos Porcos e Conceição, a cerca se encomprida, fazendo linha até à dobra da serra da Conceição. Cada pau, cada esticador, posso afirmar, tem uma história, desde quando tombou nos íngremes boqueirões, ao transporte nos ombros dos meninos, no carro-de-bois, trator e caminhão, até chegar à praça de trabalho, onde outro grupo de jovens – de 10 a 18 anos -deita neles as mãos, erguendo-os ao céu, numa crença mística que,  com aquele gesto, cobrem-se de honra, construindo uma Escola. Em cada um há uma fiscalização minudente para que as diversas fases do trabalho se desdobrem com zelo, carinho e atenção; há, em cada um, disposição incomum e um sorriso permanente – nenhuma palavra ou gesto de desânimo Eu os acompanho de perto. Sei e posso sentir o que lhes vai no espírito – eles não estão apenas construindo uma cerca, edificam uma escola, defendendo-a. Na sua manifestação: “Agora a Escola poderá criar 500 cabeças de gado nesta larga e ninguém vai invadir nosso pasto, nem tomar nossas terras”, e nas suas mãos calejadas e rasgadas pelo arame, nos ombros feridos, nas faces queimadas, tudo refletido, sem dor, num semblante feliz, temos o atestado da certeza, anteriormente enunciada, em figuras: construímos uma catedral.
Paralelamente, temos motivo de preocupação e temor. Vejo estes jovens trabalhando – todos são felizes e dispostos e acreditam no que estão fazendo: protegem um patrimônio do Estado que a Escola tem sob a sua guarda. Acreditam que com a construção da cerca o milagre vai acontecer – ninguém mais invadirá as terras da Escola Fico aflito, muito aflito com a nossa responsabilidade, pois não muito longe dali, de onde trabalham, está a marca do homem invasor. Percorri, hoje cedo, por mais de 4 horas, a cavalo, a área que um vereador de São Romão, cercou para si em terrenos da Escola. É terra que some no horizonte, sem lindes aos olhos. Ele tem, ainda, a petulância de verberar que terra do Estado é de todos e que a Escola sem escritura, é posseira como qualquer um.
No seu rastro vieram tantos outros fazendeiros que têm suas posses afastadas, mas que também querem o seu quinhão. Tomam conta de tudo, vorazmente, com ameaças de agressões físicas e armadas.
Vi cercas penetrando por toda parte e pensei nos nossos meninos ali perto num trabalho feito com tanto amor, construindo a catedral que será invadida por hordas de bárbaros que vão profaná-la. Não terão amparo contra esses gananciosos e covardes invasores? Não receberão apoio na defesa do patrimônio da Nação? Será tão difícil ser patriota? Já perdemos Cabo Verde, Ponte Grande e quase a metade da larga; a sede do Núcleo está prensada. Neste ritmo de invasões, muito em breve teremos de pedir licença para educar as crianças da região e ajudar o homem do campo, pois ele, o que não tem força, também está desamparado, mais só.
Esta é a história da nossa cerca.
Interessante anotar, também, coronel, que à noite, quando regressam do trabalho, nossos jovens desenvolvem um trabalho comunitário muito ao estilo caiomartiniano. Visitam lares, reúnem-se com o povo, num sarau divertido com muita música, histórias e palavras de ajuda. Movimentam o escotismo, incentivando os garotos do Núcleo. Programas esportivos e até culto dominical, fazem parte do seu trabalho. É uma plêiade formidável que bem parece ter ouvido os acordes do nosso hino: “Se da Pária os anseios ouvis/ Se quereis uma infância feliz/ Com vigor trabalhai este chão/ Este solo é também o de Caio.
No dia 26 vamos terminar a cerca, ainda de sobra deixaremos a reforma do lar dos meninos do Núcleo bem adiantada (em nossa turma, temos meninos pedreiros, carpinteiros, eletricistas, bombeiros, etc.). Deixamos mais, o Núcleo fervilhando de esperança. Eles fizeram a parte que lhes tocou e mostraram, mais uma vez que o”Ideal está em Marcha!”. Não importa o revés, pois ele serve como estímulo, mas queremos que não haja ambivalência do bem e do mal. Precisamos, com urgência de um trunfo para superar a força do mal e dar curso à história, transformando o Núcleo do Urucuia num posto de atalaia, encravado no longínquo sertão, com forças capaz de ser a presença do governo, através da Escola, gerando a paz, o bem-estar social, a educação e a felicidade de um sofrido povo. Precisamos deste trunfo: a escritura das terras.
Bem sei que o senhor compartilha da nossa aflição e das nossas alegrias. Se, agora, não posso poupar-lhe da primeira, espero, que a alegria de saber os nossos jovens reconduzidos à trilha do ideal seja maior e mais reconfortante, como agradecimento ao seu gesto de semeador. Abraço-o afetuosamente, João Naves de Melo”.
Texto e fotos: João Naves de Melo

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