sábado, 2 de setembro de 2017

FOLCLORE


Ainda vivenciando o Dia Mundial do Folclore prestamos uma singela homenagem ao mestre e notável barranqueiro Saul Martins, folclorista apaixonado, um dos fundadores da Comissão Mineira do Folclore, caiomartiniano (autor do hino à escola Caio Martins e presidente do Conselho Diretor da instituição.


SAUL MARTINS – UM GRANDE MESTRE


João Naves de Melo

            Ainda muito jovem conheci Saul Martins. Eu era diretor de uma unidade das Escolas Caio Martins em São Francisco e ele presidente do Conselho Diretor da mesma instituição, para nós, na época, Major Saul. Ele nos visitava regularmente e, com o tempo, fomos sedimentando uma amizade muito grande, tendo-o como um guia educacional e, depois, cultural. À época eu desenvolvia um trabalho com os alunos da unidade, todos oriundos do meio rural – meninos e meninas. Recolhia deles manifestações de sua cultura – danças, cantos, lendas e histórias. Fazia isso para enriquecer o conjunto de canto, dança e jogral que mantinha no estabelecimento e, ainda, como meio de conhecê-los melhormente e fazer uma interação entre eles. Funcionou e nosso conjunto ficou famoso.  Conhecendo esse trabalho, Saul nos deu um rumo: o folclore. Sim, eu fazia meu trabalho com sentido educacional sem o alcance da cultura, ou seja, a presença do folclore que não me despertara ainda, como arte. Saul valorizou e incentivou o trabalho e despertou a minha atenção para tão nobre ciência. A partir daí comecei a publicar, semanalmente, uma coluna no jornal local, com o simples e expressivo título FOLCLORE, focalizando as manifestações da cultura local. Passado o tempo, fui premiado com a minha admissão na Comissão Mineira do Folclore, indicado pelo Saul, com diploma assinado no dia 22 de agosto pelo então secretário Ayres da Mata Machado Filho, que mais tarde conheci em Pirapora falando sobre uma famosa lenda barranqueira, “A Décima do Rio Abaixo”, que eu publicava em capítulos. Lendo tais publicações, Saul incentivou-me e cobrou a conclusão e publicação da pesquisa. Levei anos para avançar no trabalho até que consegui gravar a décima e, que ficou nisso, pois com menos de um mês depois o violeiro e cantor da décima morreu, espalhando mais terror sobre ela, e nunca mais a ouvi. O que apurei será publicado no livro que está no prelo, O Folclore de São Francisco, uma homenagem ao mestre Saul Martins.

Saul, como pessoa agradável, de conversa afável e instrutiva, sempre descortinando conhecimentos que iluminavam minha vida de jovem – fui aprendendo com ele e ganhando, a cada dia, mais amor pelo rio São Francisco, que ele dizia ter o barranqueiro plantado o umbigo.

Ele muito me ensinou –  contava casos e eu os absorvia. Falava muito sobre o livro que rascunhava contando a vida de Antônio Dó e as dificuldades que encontrava para obter uma fotografia do bandoleiro, que um escritor são-franciscano possuía, mas não o agraciou de jeito nenhum. Ele adorava a melancia das vazantes do rio São Francisco. Outras não serviam. Comi-as com vagareza, raspando a cuia com colher. Lembro-me de uma brincadeira salutar que ele aprontou para cima do piloto que o conduzia pelos céus do Norte Minas, major Pedrinho, com uma melancia. Depois do jantar, ele partiu uma melancia ao meio, cuidadosamente, saboreou o miolo, raspando o miolo com uma colher até chegar ao branco interior da casca, depois, cuidadosamente, uniu as duas bandas e colocou a fruta sobre uma mesa, na sala de entrada de minha casa, com uma faca e uma colher ao lado. Chegando da rua, mais tarde, quando todos já se encontravam recolhidos em seus aposentos,  major Pedrinho, deparou-se com o presente e riu satisfeito diante da generosidade do amigo. Alegre tomou a faca para partir a fruta, mas a segurá-la, ela abriu em duas partes e viu que o miolo já não existia. Percebeu o engodo e nos deu motivos para muitos risos ao amanhecer. Era assim o Saul, de convívio alegre e fácil, generoso e cortês.

Ele assistia à sessões do grêmio estudantil de nossa escola e se emocionava, em todas as ocasiões, quando os jovens cantavam o Hino às Escolas Caio Martins, com fulgor, compenetração e alegria – era dele a letra – “Se da Pátria os anseios ouvis, se quereis uma infância feliz...” Ainda nos dias atuais, este hino é fator de união fraterna de todos os alunos que passaram pelas Escolas Caio Martins, uma lembrança indelével do grande mestre. Emocionado ele aplaudia, quando uma criança declamava com toda candura o maravilhoso soneto de sua autoria, Flores do Campo.

Numa certa quadra, Saul nos surpreendeu com inesperada visita e, mais ainda, com o acompanhante que levava: o escritor Mário Palmério. Ficaram, os dois, por alguns dias em minha casa. Durante o dia faziam incursões pelo interior do município e, à noite, conversavam demoradamente no alpendre da casa aliviando-se do calor, que no Norte é bravo. No desenrolar das conversas, e por informação do Saul, fiquei sabendo do propósito da visita e das incursões no interior: Mário Palmério, que estava reunindo dados sobre a obra de Guimarães Rosa com o fim de preparar seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, eleito que fora para ter assento na cadeira do grande escritor. Saul, em tal desiderato, foi o condutor da pesquisa e eu, por minha vez, privilegiado pela visita de um notável acadêmico.

O mestre Saul me encorajou tanto! Colocou-me no rumo e gosto pelo Folclore, o que tomei como parte de minha vida. Incentivou-me o gosto pela literatura e, com isso, vários livros escrevi e publiquei, todos levando a alma, os costumes, os modos de nossa gente das barrancas do Velho Chico e urucuiana, enfim, o nosso mundo barranqueiro. Levo, nas páginas que escrevo, sempre, a memória do grande mestre e amigo, major Saul Alves Martins, que, com dona Julinda e filhos, passou a ser parte de minha família.

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