Ainda vivenciando o Dia Mundial do Folclore prestamos uma
singela homenagem ao mestre e notável barranqueiro Saul Martins, folclorista
apaixonado, um dos fundadores da Comissão Mineira do Folclore, caiomartiniano
(autor do hino à escola Caio Martins e presidente do Conselho Diretor da
instituição.
SAUL
MARTINS – UM GRANDE MESTRE
João Naves de Melo
Ainda muito jovem conheci Saul
Martins. Eu era diretor de uma unidade das Escolas Caio Martins em São
Francisco e ele presidente do Conselho Diretor da mesma instituição, para nós,
na época, Major Saul. Ele nos visitava regularmente e, com o tempo, fomos
sedimentando uma amizade muito grande, tendo-o como um guia educacional e,
depois, cultural. À época eu desenvolvia um trabalho com os alunos da unidade,
todos oriundos do meio rural – meninos e meninas. Recolhia deles manifestações
de sua cultura – danças, cantos, lendas e histórias. Fazia isso para enriquecer
o conjunto de canto, dança e jogral que mantinha no estabelecimento e, ainda,
como meio de conhecê-los melhormente e fazer uma interação entre eles.
Funcionou e nosso conjunto ficou famoso.
Conhecendo esse trabalho, Saul nos deu um rumo: o folclore. Sim, eu
fazia meu trabalho com sentido educacional sem o alcance da cultura, ou seja, a
presença do folclore que não me despertara ainda, como arte. Saul valorizou e
incentivou o trabalho e despertou a minha atenção para tão nobre ciência. A
partir daí comecei a publicar, semanalmente, uma coluna no jornal local, com o
simples e expressivo título FOLCLORE, focalizando as manifestações da cultura
local. Passado o tempo, fui premiado com a minha admissão na Comissão Mineira
do Folclore, indicado pelo Saul, com diploma assinado no dia 22 de agosto pelo
então secretário Ayres da Mata Machado Filho, que mais tarde conheci em
Pirapora falando sobre uma famosa lenda barranqueira, “A Décima do Rio Abaixo”,
que eu publicava em capítulos. Lendo tais publicações, Saul incentivou-me e
cobrou a conclusão e publicação da pesquisa. Levei anos para avançar no trabalho
até que consegui gravar a décima e, que ficou nisso, pois com menos de um mês
depois o violeiro e cantor da décima morreu, espalhando mais terror sobre ela,
e nunca mais a ouvi. O que apurei será publicado no livro que está no prelo, O
Folclore de São Francisco, uma homenagem ao mestre Saul Martins.
Saul, como pessoa agradável, de conversa
afável e instrutiva, sempre descortinando conhecimentos que iluminavam minha
vida de jovem – fui aprendendo com ele e ganhando, a cada dia, mais amor pelo
rio São Francisco, que ele dizia ter o barranqueiro plantado o umbigo.
Ele muito me ensinou – contava casos e eu os absorvia. Falava muito
sobre o livro que rascunhava contando a vida de Antônio Dó e as dificuldades
que encontrava para obter uma fotografia do bandoleiro, que um escritor
são-franciscano possuía, mas não o agraciou de jeito nenhum. Ele adorava a
melancia das vazantes do rio São Francisco. Outras não serviam. Comi-as com
vagareza, raspando a cuia com colher. Lembro-me de uma brincadeira salutar que ele
aprontou para cima do piloto que o conduzia pelos céus do Norte Minas, major
Pedrinho, com uma melancia. Depois do jantar, ele partiu uma melancia ao meio,
cuidadosamente, saboreou o miolo, raspando o miolo com uma colher até chegar ao
branco interior da casca, depois, cuidadosamente, uniu as duas bandas e colocou
a fruta sobre uma mesa, na sala de entrada de minha casa, com uma faca e uma
colher ao lado. Chegando da rua, mais tarde, quando todos já se encontravam
recolhidos em seus aposentos, major Pedrinho,
deparou-se com o presente e riu satisfeito diante da generosidade do amigo.
Alegre tomou a faca para partir a fruta, mas a segurá-la, ela abriu em duas
partes e viu que o miolo já não existia. Percebeu o engodo e nos deu motivos
para muitos risos ao amanhecer. Era assim o Saul, de convívio alegre e fácil,
generoso e cortês.
Ele assistia à sessões do grêmio
estudantil de nossa escola e se emocionava, em todas as ocasiões, quando os
jovens cantavam o Hino às Escolas Caio Martins, com fulgor, compenetração e
alegria – era dele a letra – “Se da Pátria os anseios ouvis, se quereis uma
infância feliz...” Ainda nos dias atuais, este hino é fator de união fraterna
de todos os alunos que passaram pelas Escolas Caio Martins, uma lembrança
indelével do grande mestre. Emocionado ele aplaudia, quando uma criança
declamava com toda candura o maravilhoso soneto de sua autoria, Flores do
Campo.
Numa certa quadra, Saul nos surpreendeu
com inesperada visita e, mais ainda, com o acompanhante que levava: o escritor
Mário Palmério. Ficaram, os dois, por alguns dias em minha casa. Durante o dia
faziam incursões pelo interior do município e, à noite, conversavam
demoradamente no alpendre da casa aliviando-se do calor, que no Norte é bravo.
No desenrolar das conversas, e por informação do Saul, fiquei sabendo do
propósito da visita e das incursões no interior: Mário Palmério, que estava
reunindo dados sobre a obra de Guimarães Rosa com o fim de preparar seu
discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, eleito que fora para ter
assento na cadeira do grande escritor. Saul, em tal desiderato, foi o condutor
da pesquisa e eu, por minha vez, privilegiado pela visita de um notável
acadêmico.
O mestre Saul me encorajou tanto!
Colocou-me no rumo e gosto pelo Folclore, o que tomei como parte de minha vida.
Incentivou-me o gosto pela literatura e, com isso, vários livros escrevi e
publiquei, todos levando a alma, os costumes, os modos de nossa gente das
barrancas do Velho Chico e urucuiana, enfim, o nosso mundo barranqueiro. Levo,
nas páginas que escrevo, sempre, a memória do grande mestre e amigo, major Saul
Alves Martins, que, com dona Julinda e filhos, passou a ser parte de minha
família.
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