segunda-feira, 25 de setembro de 2017

SECA BRAVA, ÁGUA MINGUANDO

Comumente, o tamboril começa vestir-se de verde no final de agosto, quando muito no início de setembro, anunciando a Primavera – com chuva ou sem chuva. Contudo, com o agravamento da seca na região, que se arrasta por seis anos – em cada ano pior – até o tamboril mudou sem regime de cobertura de folhas. O mês de setembro já avançou em 23 dias, dois terços, pois, e nada, as copas dos pés de tamboril da orla do rio, sempre tão belos nesta quadra do ano, continuam ressequidas, apenas apinhadas de sementes.
De igual sorte encontra-se o pajeú, que também não floriu como sempre e mais cedo. Pouco tempo para suas flores verdes, que já se cobrem de vermelho, sinal de passagem e consequência da falta de chuva.
No cenário seco, tão seco da orla do rio, onde o verde desapareceu de vez, estando o bosque ressequido, um fato chama a atenção: o nível das águas do rio. Coroas apontam daqui e dacolá; praias e mais praias vão se formando como um cordão avançando no leito do rio. A visão é tétrica, de assustar. Contudo, consultando a funcionária encarregada da medição diária do nível das águas do rio e a precipitação pluviométrica, ela diz: “chuva nem notícia, não há o que medir. Mas o rio, mantem o nível acima de um metro com regularidade, ainda agora, quase no fim de setembro está com 1,38m”.
Dos mananciais acima de Pirapora é que não vem o reforço, pois as imagens postas em rede social mostram um quadro desolador no ponto das corredeiras – só tem pedra e poeira. Então deve ser do rio das Velhas, tão poluído, Paracatu e Urucuia. /diz a funcionária que ouviu de um pescador, nesses dias, que “ele percebeu que o Urucuia aumentava volume de água sem ter chovido”. E aí vem a pergunta: se não tem notícia de chuva no Noroeste e pelas bandas da nascente  do Urucuia, como explica o fato?  Seria o aquífero o Urucuia, interligado por veios subterrâneos com as bacias do Tocatins e Araguaia? Caso seja, é preciso ficar muito alerta – alerta mesmo – antes que os homens, por ganância de pastos e áreas de cultura, não destruam as áreas de reposição dos lençóis freáticos que vão alimentar o aquífero. Infelizmente tudo é possível por graça do imediatismo, do pensar apenas no presente.
O Cerrado é reconhecido pelo Ministério do Meio Ambiente como a savana mais rica do mundo em biodiversidade.  Ele contribui com  94% da produção hídrica da bacia do São Francisco. O desmatamento do cerrado tem provocado a degradação de rios importantíssimos como São Francisco, Araguaia e Tocantins. Há um processo de assoreamento do leito dos mananciais, redução do volume de águas e da quantidade de peixes, além da redução das espécies terrestres, animais e plantas.
Vê-se, então, que a falta de água não está afeta apenas à falta de chuvas, pode ser o fator mais importante, mas não é o único. O homem (e aqui também o governo, é claro), precisa fazer sua parte. Só a título de exemplo pode-se citar que os Estados Unidos pagam, como arrendamento, para que o produtor rural preserve e recupere as áreas importantes para a proteção ambiental. A prefeitura de Nova York paga os produtores rurais para preservarem as nascentes de água que abastecem a cidade.
No Brasil, até então, o processo tem sido inverso. E conclui-se: desmatamento no cerrado pode fazer faltar água no Brasil todo!. É sério, mas pouca gente importa.





PRIMAVERA

                                                                          Giovanni  







A Primavera não me sorri,
E de tanto ser esperada
Na aspereza em que vivo
De seca em seca e no seco.
A brisa não me traz perfume
No triste inverno do meu país.
As flores sequer chegaram,
Murchas antes do tempo,
Na esperança dos botões.
Mas eu sei, de certeza,
Que com as primeiras chuvas
Meu mundo se fará todo verde.
E na brisa doce e fresca
As flores do campo se abrirão.
Primavera. Primavera chega!
A esperança realizada será.
Só não tenho igual esperança
Com o Inverno do meu país,
Na construção recalcitrante
De políticos que o corroem.
A Primavera tem a bênção de Deus
Quem sabe, um dia,
Ela volte a brilhar e brilhar
Nos céus da Terra de Santa Cruz?

São Francisco, 22 de setembro de 2017

CAIO MARTINS, RETRATO DE UM BRASIL DE HOJE

                                                                                       VIII - Parte
Ainda passeando pela Escola Caio Martins de Esmeraldas, lá pelo idos de 1953, cinco anos depois de fundada a instituição, quando foi dado um salto para o futuro com a criação do curso Normal Regional, uma visão do coronel Almeida no sentido de atender a zona rural e, em especial, o Vale do São Francisco, com levas de professores imbuídos de um ideal: transformar o homem do campo através da criança. Buscamos, como registro pessoas que marcaram e deram vida à escola, pois o tempo é implacável no sentido de colocar no esquecimento pessoas que não se destacaram pela proeminência, pelo nome.
Já foram citados os primeiros diretores – da Escola e do Curso Normal – capitão Zohir Piedade Gavião e dona Maria Célio Santos. Lembramos dos primeiros professores, pessoas tão importantes e imorredouras na história da instituição, merecendo um relevo maior na história de Minas, como educadores.
Vamos, agora, buscar outras figuras:
Dona Targina, esposa do sargento Chico. A sua casa era o segundo lar dos alunos. Recebia-os, todos, com carinho, atenção e muitos agrados da culinária. Era uma festa, aos domingos, acompanhar, lá em sua casa, o almoço do capelão José Agusto, degustando o frango com quiabo. Inês, filha de dona Targina era aluna da primeira turma do CNR.
Dona Raimunda, pessoa miúda no físico, uma gigante na cozinha da República e do artesanato, cozinhando com amor, dedicação apuro, como se tratasse de seus filhos Virgínia (da primeira turma do CNR) e Márcio.
Sargento Penido – chefe de lar e farmacêutico da escola – Vilma, minha esposa, e muitas meninas-moças do Noroeste e Norte de Minas, conviveram com o casal, como filhas, pois era essa a filosofia da Escola.
Geraldo Ribeiro (Barraco) – chefe de lar – pedreiro e exímio violonista, que nos brindava com gostosas valsas. Geraldo Ribeiro Filho, o Nenê, ex-diretor do Núcleo Colonial do Carinhanha e Centro Educacional de Januária, é filho dele.
Zé Fininho e dona Mundica, chefes do lar, criaturas cheias de amor e carinho para com as crianças aos seus cuidados. Mestre Juventino que formou a primeira banda de música da escola (foto); Manoel Araújo, professor de práticas agrícolas que os alunos chamavam de Manoel Agrônomo – fora da sala de aula incentiva o esporte, principalmente o vôlei (foto); ele era um dos destaques do time amador da Escola, o Santa Tereza (mais tarde casou-se com Anésia, aluna da primeira turma). Sargento Barroso, esposo de dona Maria, uma voz de destaque no coro Orfeônico Catulo da Paixão Cearense; seu Geraldo e dona Geralda (tecelã). Cabo Xisto encarregado da Pedreira; Isaias e Osvaldo, motoristas dos caminhões. Sargento Navarro e dona Orminda – ele motorista dos carros leves, ela costureira. Sargento Enedino, chefe de lar da fazendinha Paulista, um bucólico lugar, com imenso coqueiral (macaúba); professor Alfredo Pinto, chefe de lar da fazenda Vista Alegre, nas barrancas do rio Paraopeba. Sargento Lara, Mirim (motorista do coronel) e outros tantos que minha memória não conseguiu alcançar, passados que são tantos os anos e pela imensa falha que temos com a nossa história – um exemplo é São Francisco.

Foto e Texto: João Naves de Melo

quarta-feira, 6 de setembro de 2017

CAIO MARTINS, RETRATO DE UM BRASIL DE HOJE

VI - parte

Primeira turma do CNR na frente República
No ano de 1953, apenas quatro anos após da sua fundação, dois anos depois do lançamento do Núcleo de Buritizeiro e no mesmo ano do lançamento do Núcleo Colonial do Carinhanha, coronel Almeida, com um olhar no futuro, especialmente sobre a região do Norte e Noroeste de Minas, até então apenas um nome no mapa de Minas, instala na Escola sede (Esmeraldas) o Curso Normal Regional. Nada igual, no gênero, pois o sistema de ensino já antecipava muitos projetos que viriam anos e anos depois, inclusive a atual reforma do ensino médio.  E como funcionava?

O sistema era misto acolhendo alunos e alunas em regime de internato, oriundos de diversas regiões do Norte e Noroeste de Minas e alunos do meio rural do município de Esmeraldas. Os primeiros anos foram difíceis. As aulas teóricas eram ministradas em um salão que receberam o nome de Rádio, onde no final de semana eram exibidas sessões cinematográficas e, aos domingos, ensaiava o Coro Orfeônico Catulo da Paixão sob a batuta de dona Márcia, esposa do Coronel. No primeiro ano, além das aulas teóricas, eram ministradas aulas práticas: oficinas (alfaiataria, marcenaria, mecânica, bombeiro, eletricista e outras) e horticultura. O quadro de professores era de primeiro nível, muitos deles colaboradores da obra e amigos do fundador: o dentista/arquiteto Ilo Miranda (desenho), médico Maciel (ciências), padre Cícero (Português), Afrânio Bastos (História e Geografia), major Zoyr (educação física), dona Maria Célia (religião), Vanda (matemática), dona Márcia (música).
Visita do Governador Juscelino – 1º ano do CNR


Os alunos internos foram acomodados em uma República, ao lado da casa da diretora do curso, dona Maria Célia dos Santos e tinha a preparar-lhe as refeições dona Raimunda. No segundo ano, chegando nova leva de alunos, muitos do Norte de Minas o alunos foram acomodados num prédio que seria destinado às atividades artesanais e, por isso, guardou o nome – Artesanato. As salas de aula se espalharam para lugares com nomes típicos de acordo com a utilidade anterior: Paiol (o primeiro lar da escola) e sede dos Escoteiros. No terceiro ano, com nova turma, também quase toda do Norte de Minas e Noroeste, as aulas passaram a ser ministradas em prédio próprio – a Escola Normal.

Novos professores: Gláucia (bibliotecária), Onir (português), Manoel Agrícola (práticas agrícolas), dona Maria (Psicologia e Pedagogia).

1ª diretora do CNR
dona Maria Célia e Elcinho

O ensino era integrado – teoria à prática, especialmente nas disciplinas de desenho e construções rurais, com o exigente dr. Ilo; e pedagogia levando os jovens estudantes às salas de aulas do curso primário para ensaio de suas primeiras aulas. O trabalho era alegre, produtivo, aprendia-se muito, de maneira especial no campo: agricultura e cultivo da terra com o uso de máquinas – tudo como preparação de um projeto futuro. Era o que só chamar de Escola-Viva.


Aos domingos, a Santa Missa com o alegre Capelão José Augusto que gostava de se fartar do frango com quiabo e angu na casa da saudosa dona Targina, doce criatura. Depois o ensaio do coral na Rádio reunindo os jovens estudantes com fazendeiros da região e suas famílias – como dizia o coronel – uma verdadeira síntese social. No fim da tarde o futebol sob  a orientação do sargento Xisto (esposo de dona Targina) um grande amigo e incentivador. Ali, todos eram educadores.

Caio Martins começava preparar cidadãos para o futuro do país.

Um registro especial, que não poderia faltar nestas reminiscências: a figura da primeira diretora do Curso Normal (na foto com o filho Élcio, tendo ao fundo o Artesanato): mais que uma professora, muito mais que um diretora, foi, para todos alunos uma verdadeira e doce MÃE.


Fotos e Texto: João Naves de Melo

HISTÓRIA EM FORMA DE CRÔNICA

JNM
Vereda Catarina (Serra das Araras)

CATARINA – II parte
Depois da conversa com o coronel Januário Cardoso, Manuel foi para aldeia do Tapiraçaba. Nada falou, apenas estudou, mapeou o local e, assim, esboçou o plano de ataque à aldeia e o fez de  modo inteligente, guardando um ás  na manga, ou seja, uma válvula de escape se tudo desse errado. Ele não tinha lá um passado muito honesto, era um homem cheio de artimanhas.
Seu plano: o ataque se faria na calada da noite – noite escura, sem lua. Seria em três frentes, partindo da ilha Moradeira no rio São Francisco. Um grupo chegaria à aldeia entrando pelo Salgado; outro pelo Norte e outro pelo Sul. Manuel deixou, pelo Leste, um flanco aberto. Justificou ao Coronel porque da providência, dizendo que  atacar em todas as frentes, parte da tropa teria que avançar pela mata, rodear a aldeia e isso levaria muito tempo e poderia despertar os índios. Sensato plano. Mas não era bem assim.
Na noite combinada, sem lua no céu, tudo muito escuro, foi dada a ordem para o avanço da tropa. E foi a invasão. Em pouco tempo a aldeia foi dominada. Muitos índios conseguiram fugir pelo flanco aberto e ganharam o caminho da terra, onde se homiziaram. A índia filha do cacique e seu filho não tiveram igual sorte – foram surpreendidas e aprisionados após o ataque. Jeitoso, como arrumara tudo, Manuel Pires teve, deles, o indulto ficando todos sob sua responsabilidade.
Manuel tomando posse das terras, como garantido pelo coronel Januário,  deixou a área onde fora levantada a aldeia e fundou um núcleo em local mais afastado, cerca de mais de uma légua, local mais salubre, arejado e com ótimas terras. Uma das primeiras providências foi levantar uma capela que consagrou à Nossa Senhora do Amparo. Para agradar sua companheira e aos índios cativos, ele mandou enterrar o cacique e índios tombados, no adro da capela.
Enquanto isso, os índios evadidos se reagrupavam no alto da serra planejando um ataque de vingança e retomada de suas terras. E foi o que acabou ocorrendo. Numa certa manhã eles desceram a serra desfechando uma saraivada de flechas contra o arraial. Flechas cobriram o céu como enxame de moscas. Mas cometeram um erro: fizeram o ataque no correr do dia, e sem guardar silêncio. Isso deu tempo para moradores do povoado tomarem suas armas e se protegerem em trincheiras, recebendo os índios com grande poder de fogo. O número de combatentes era desigual – havia 10 índios para cada morador do povoado, mas o poder de fogo dos moradores era grande. Ali por perto, em sua quinta, ouvindo os estampidos, em profusão, Manuel Pires reuniu seus camaradas e juntos partiram em socorro aos seus companheiros e, com isso, os índios invasores ficaram entre dois fogos. Mais uma vez foram derrotados. Deixaram o local em desordenada carreira para garantir sua vida. Levaram, contudo, a índia mulher de Manuel e seu filho.
Manuel ao tomar ciência da notícia do rapto da índia e seu filho ficou furioso, mas se conteve. Pensou bem na reação, não queria mais combates, derramamento de sangue e nem mesmo abrir guerra franca com os índios, que poderiam se reagrupar e buscar apoio de outros índios. Passando uns dias, mandou um índio cativo para negociar a paz com os rebelados, dizendo-se fugitivo do arraial. Ele foi um bom negociador mostrando as vantagens do armistício e que a paz seria boa para todos. Meio à negociação, ele convenceu a índia a fugir com ele, levando o filho. Não foi difícil, ela estava sofrendo muitas privações, comendo frutas selváticas, carnes indigestas e dormindo em furnas. Na aldeia e depois no arraial ela tinha o conforto de um catre, alimentação sadia e tudo isso fazia falta e era reclamado pelo filho.  Não foi, assim, difícil aceitar a proposta do mensageiro de Manuel.
Com a fuga da índia, os índios se renderam. Acharam por bem dar termo à beligerância. A pedido da índia, Manuel concordou em por em liberdade os caipós cativos e combatentes da serra e esses concordaram em se afastar para longe do arraial sendo-lhes dado o sertão do Acari para onde passaram a viver em paz.
O arraial chegou, enfim, à paz. A companheira de  Manuel Pires foi catequizada, ao dois casaram-se e ela recebeu o nome da Catarina. O menino, ao mesmo tempo, foi  batizado
FATOS POSTERIORES
O povoado se transformou em vila, o núcleo de fundação de Januária.
Duas deduções históricas, suposições tão-somente, mas que podem ser fundados em fatos reais.
Uma: os índios irmãos de Catarina ganharam o sertão do Acari. Nele, mais propriamente na região de Serra das Araras, uma formosa vereda de águas cristalinas, ornada por belos buritis, refletindo o contorno da Serra das Araras com suas locas avermelhadas, recebeu o nome de uma princesa: Catarina.
Os índios desceram, certamente, o ribeirão Acari em busca o rio São Francisco, uma tendência natural e da natureza do índio – navegar e pescar – estabelecendo-se na sua foz numa monumental barreira que recebeu o nome de Barreira dos Índios.
O rio Pardo que nasce nos Buracos, num vale misterioso e muito paradisíaco, no contorno da serra das araras, desce ao São Francisco. No seu trajeto, em certo trechos de matas, há registro de passagem (caracteres escritos em árvores) de índios, segundo narrativas de fazendeiros locais.

sábado, 2 de setembro de 2017

HISTÓRIA EM FORMA DE CRÔNICA

JNM

Vamos publicar no blog uma série de crônicas focalizando mulheres que fizeram história em São Francisco e região.  A forma é da crônica, um modo mais leve e  romanceado de registrar  fatos históricos, com fundo verídico, abordados por historiadores como Diogo Vasconcelos, Manoel Ambrósio e da oralidade.

A primeira mulher a tomar esta página será uma índia que teve seu nome ligado à origem da cidade de Januária: CATARINA

CATARINA – I parte

 

A noite dormia profundamente cobrindo com um manto negro a aldeia  Tapiraçaba plantada na margem do rio São Francisco, perto do Salgado. Não rompia o silêncio sequer o cicio de leve brisa. De repente, um pio do urutau, lúgubre, triste, um mau presságio, perpassou pela taba e, logo em seguida ouviu-se, um estrondo. Antes que os guerreiros dessem o grito de alarma, pondo-se de pé, seguiram novos estrondos. O odor ácido de pólvora tomou o ar meio a um nevoeiro de fumaça. Arcos, flechas e tacapes  empunhados na azáfama e gritos dos guerreiros que se juntaram no meio da aldeia em posição de defesa, antevendo um repentino e traiçoeiro ataque.  Debalde o movimento da defesa. Não tiveram tempo de reação, não sabiam onde mirar suas flechas meio ao terrível breu e mal conseguiam ver a língua de fogo saindo das bocas de bacamartes, soprando a morte. Um a um eles foram sendo tombados. Parecia um inferno. As índias e índios idosos, ficaram nas palhoças, alguns se resvalaram meio a picadas embrenhando-se  no mato na direção da serra que se estendia léguas um pouco além; outras rastejavam pelo brejo abrindo trilhas no tapete de taboas. O cacique Kauane, assustado, assomou-se na porta da ocara-ocara e ali mesmo recebeu um balaço no peito, caindo estatelado, sem vida. Impotentes e sendo dizimados aos poucos, sem o líder, alguns guerreiros desapareceram no meio da escuridão aprofundando-se na mata, rumo à serra que avultava a poucos quilômetros da beira do rio. Não levou tempo e a aldeia estava dominada e destruída com poucos guerreiros rendidos com vida.

Aquele ataque fulminante fora arquitetado por Januário Cardoso, filho do bandeirante e desbravador do rio São Francisco, Matias Cardoso, que assentara quartel general em Morrinhos, nas margens do Rio São Francisco, nas proximidades do Rio Verde, divisa com a Bahia. Ele cuidara bem da jornada que fora precedida de outra campanha para dominar a aldeia Guaíba, índios mais mansos. O combate às aldeias dos Guaíba e Tapiraçaba fora determinado pelo governo da colônia para coibir a pilhagem perpetuada por bandidos e indígenas, assaltando embarcações que desciam das minas, com ouro, ou que subiam para as minas levando mantimento. Ele sabia que o combate aos tapiraçabas poderia ser demorado e violento, pois eles eram sabidamente muito valentes, bravos, destemidos. Assim, ele urdia um ataque de surpresa. Mas não ficou apenas nisso. Era preciso um estratagema especial para chegar ao intento. Para isso contou com os ofícios de Manuel Pires Maciel, que tinha longa convivência com os Tapiraçaba. Tinhoso, ele sabia como agradar e servir os aldeados. Os outros brancos passavam ao largo, na outra margem do rio, não se aventurando aproximar-se da aldeia. Manuel se fez amigo do cacique, ganhou sua confiança, e este lhe dera uma filha, uma bela índia, a mais bela da aldeia.  Com ela, Manuel Pires teve um filho, tornando-se mais familiar ainda aos Tapiraçaba.

O índio não pensa, não  age e não tem o espírito de ganância por bens materiais, comum a muitos brancos. Manuel Pires convivia muito bem com os índios, mas não era plasmado com sua mesma natureza. Era branco e ambicioso. Assim, foi seduzido pela  trama de Januário, sabedor de seu relacionamento com o cacique e os índios  da aldeia.  O coronel Januário era um estrategista, aprendera com o pai Matias Cardoso  nos combates aos índios belicosos do Norte da Colônia. Daí, cuidadosamente, dividiu a ação do combate às aldeias Guaíba e Tapiraçaba em duas etapas.   Vencida a aldeia Guaíba voltava-se à aldeia Tapiraçaba. Não podia ser um ataque frontal, peito a peito. Precisava, sim, de um meio para surpreendê-los, fazer apenas um e rápido ataque, para evitar a perda de seus homens no combate ou levar mais tempo no combate o que poderia ensejar tempo para chegada de reforços de outros índios. 

CAIO MARTINS, RETRATO DE UM BRASIL DE HOJE

V - parte



ESCOLAS CAIO MARTINS NO PERÍODO MILITAR


No período  do Governo Militar (Revolução)  as Escolas Caio Martins passaram por um processo de grandes mudanças: foram desvinculadas da Secretaria de Assistência Social, transformadas em unidade da Polícia Militar (1964),  com um oficial graduado assumindo o comando. Na Escola de Esmeraldas, considerada a matriz das escolas, a direção passou a ser ocupada, também, por um oficial superior  e, nas demais escolas, com exceção de São Francisco e Januária, a direção foi passada a sargentos. No caso de São Francisco e Januária foram mantidos os diretores João Naves de Melo e Elzita Gasparino, certamente mercê da repercussão dos trabalhos que realizavam e pelo reconhecimento de suas respectivas comunidades.


Eleito deputado estadual e depois federal, o coronel Almeida afastou-se da direção das Escolas indo morar em principio, em Brasília – DF, retornando mais tarde, fim do seu mandado a Belo Horizonte.

Na escola de Esmeraldas, conquanto fosse mantido o sistema de internato de alunos, desenvolvia-se, paralelamente, uma escola de treinamento e formação de soldados. De São Francisco, objetivando preparar pessoal para que, depois, como militares, voltassem para servir na própria escola, foram enviados para preparação: José Geraldo, José Pereira, Aleizim, Fernando, João Canaro, Adalberto Amorim. Deles concluíram o curso: José Geraldo (hoje oficial reformado), José Pereira (reformado), voltando a servir na escola como militares. João Canaro e Adalberto não concluíram o curso mas retornaram à escola servindo como mestres de marcenaria e alfaiataria.

Na área social a unidade Caio Martins contou, em um período, com o cuidadoso trabalho desempenhado por Djacira, que sempre se fazia presente nas unidades. Isso durante o comando do Cel. José Geraldo de Oliveira.

Um período muito profícuo para a instituição, no todo e, especialmente para São Francisco, foi o do Cel. José Ortiga no comando geral da PMMG. Ele teve uma atenção muito especial para o Centro de Treinamento de São Francisco – com ajuda dele foi possível recursos para construção de dois lares novos, cada um com capacidade de abrigar 50 alunos. Cel Ortiga assistiu a uma apresentação do coral/jogral do CT e, deveras emocionado, proporcionou-lhe uma excursão a Belo Horizonte onde fez diversas apresentações: no Palácio da Liberdade (gabinete do governador Israel Pinheiro), consulado americano, Rádio Inconfidência, emissoras de TV e um passeio a Ouro Preto.


No período das Escolas Caio Martins como unidade da Polícia Militar não houve inovações nas ações educacionais, mas experimentou-se um período de tranquilidade, realizações sociais (atendimento permanente de crianças e adolescentes) e de muito respeito pela instituição, destacando-se figuras que ocuparam postos de Diretor Geral - cel. Saul Martins, Major Edson Olímpio, major Leonel; major Doro e capitão Joaquim, tesoureiros – todos identificados com a obra. Houve, nesse período muito progresso material.

Foto e Texto: João Naves de Melo

Palácio e a falácia


Ricardo Melo*

É certo que a minha viagem fora para viver um conto de fadas, pois a nossa princesinha ia se casar, mas em permeio a toda aquela alegria que vivi ficou em minha alma uma inquietante visão de um palácio pelo qual passei a caminho de um encontro familiar. Imponente, a futurista construção se contrasta com o cenário árido daquele planalto, com os seus inexplicáveis vidros fumês a delinear curvas suaves, como se para dar a impressão de uma bandeira a tremular ao vento, anunciando que ali, naquele bastião, estivesse bem guardado algo muito valioso a toda nação.

Qual a razão de minha inquietação? Fiquei a indagar nos dias que se seguiram, com aquele sentimento confuso, entre a admiração, que brotava da lembrança daquela suntuosidade, e a desilusão, que chega com o noticiário, com a constatação dos fatos do nosso cotidiano.  Afinal, o que foi aquela encenação de julgamento a propósito do conturbado sufrágio de 2014? E a caravana que antecipa o próximo sufrágio, como se dirigisse a Macondo para anunciar os nossos cem anos de solidão, nada demais, nada ilegal? 

Os palácios foram construídos mundo afora, em priscas eras, para a moradia da realeza, ou mesmo de nobres, mas com o tempo foram sendo destinados a museus, parlamentos; entre nós foram especialmente destinados à instalação de serviços públicos de alto escalão.  Impõem respeito, talvez fosse a justificativa. E muitos são os palácios Brasil afora: da Liberdade, do Planalto, da Alvorada...
Como tínhamos entre nós um Midas para projetá-los aos montes, a fazê-los belos, os custos astronômicos de suas construções eram meros detalhes que não seriam óbices à importância de garantir o simbolismo ínsito em agasalhar as autoridades de conformidade com as suas elevadas posições. Já não tínhamos reis e rainhas, imperadores e imperadoras, nobres e destacados cléricos, mas não haveríamos de perder a pompa a distinguir os nossos ilustres representantes!

Acabamos por nos acostumar com tais palácios, nos esquecendo de questionar os custos de construí-los e mantê-los, despreocupados com o que eles de fato representam na enorme distinção que fazem entre nós, os representados, e aqueles que nada mais são do que nossos representantes, que ao ocupá-los chegam mesmo a esquecer da missão que lhes foi entregue, tão importantes e inatingíveis que se sentem naqueles casulos de ostentação.

Foi então que dei por mim, desvendando a razão de minha insistente inquietação com a imagem daquele palácio que vi em minha viagem ao coração do nosso poder central: a garantia da soberania popular ali se abriga como uma retumbante falácia.


·         Ricardo Melo - advogado, barranqueiro são-franciscano

FOLCLORE


Ainda vivenciando o Dia Mundial do Folclore prestamos uma singela homenagem ao mestre e notável barranqueiro Saul Martins, folclorista apaixonado, um dos fundadores da Comissão Mineira do Folclore, caiomartiniano (autor do hino à escola Caio Martins e presidente do Conselho Diretor da instituição.


SAUL MARTINS – UM GRANDE MESTRE


João Naves de Melo

            Ainda muito jovem conheci Saul Martins. Eu era diretor de uma unidade das Escolas Caio Martins em São Francisco e ele presidente do Conselho Diretor da mesma instituição, para nós, na época, Major Saul. Ele nos visitava regularmente e, com o tempo, fomos sedimentando uma amizade muito grande, tendo-o como um guia educacional e, depois, cultural. À época eu desenvolvia um trabalho com os alunos da unidade, todos oriundos do meio rural – meninos e meninas. Recolhia deles manifestações de sua cultura – danças, cantos, lendas e histórias. Fazia isso para enriquecer o conjunto de canto, dança e jogral que mantinha no estabelecimento e, ainda, como meio de conhecê-los melhormente e fazer uma interação entre eles. Funcionou e nosso conjunto ficou famoso.  Conhecendo esse trabalho, Saul nos deu um rumo: o folclore. Sim, eu fazia meu trabalho com sentido educacional sem o alcance da cultura, ou seja, a presença do folclore que não me despertara ainda, como arte. Saul valorizou e incentivou o trabalho e despertou a minha atenção para tão nobre ciência. A partir daí comecei a publicar, semanalmente, uma coluna no jornal local, com o simples e expressivo título FOLCLORE, focalizando as manifestações da cultura local. Passado o tempo, fui premiado com a minha admissão na Comissão Mineira do Folclore, indicado pelo Saul, com diploma assinado no dia 22 de agosto pelo então secretário Ayres da Mata Machado Filho, que mais tarde conheci em Pirapora falando sobre uma famosa lenda barranqueira, “A Décima do Rio Abaixo”, que eu publicava em capítulos. Lendo tais publicações, Saul incentivou-me e cobrou a conclusão e publicação da pesquisa. Levei anos para avançar no trabalho até que consegui gravar a décima e, que ficou nisso, pois com menos de um mês depois o violeiro e cantor da décima morreu, espalhando mais terror sobre ela, e nunca mais a ouvi. O que apurei será publicado no livro que está no prelo, O Folclore de São Francisco, uma homenagem ao mestre Saul Martins.

Saul, como pessoa agradável, de conversa afável e instrutiva, sempre descortinando conhecimentos que iluminavam minha vida de jovem – fui aprendendo com ele e ganhando, a cada dia, mais amor pelo rio São Francisco, que ele dizia ter o barranqueiro plantado o umbigo.

Ele muito me ensinou –  contava casos e eu os absorvia. Falava muito sobre o livro que rascunhava contando a vida de Antônio Dó e as dificuldades que encontrava para obter uma fotografia do bandoleiro, que um escritor são-franciscano possuía, mas não o agraciou de jeito nenhum. Ele adorava a melancia das vazantes do rio São Francisco. Outras não serviam. Comi-as com vagareza, raspando a cuia com colher. Lembro-me de uma brincadeira salutar que ele aprontou para cima do piloto que o conduzia pelos céus do Norte Minas, major Pedrinho, com uma melancia. Depois do jantar, ele partiu uma melancia ao meio, cuidadosamente, saboreou o miolo, raspando o miolo com uma colher até chegar ao branco interior da casca, depois, cuidadosamente, uniu as duas bandas e colocou a fruta sobre uma mesa, na sala de entrada de minha casa, com uma faca e uma colher ao lado. Chegando da rua, mais tarde, quando todos já se encontravam recolhidos em seus aposentos,  major Pedrinho, deparou-se com o presente e riu satisfeito diante da generosidade do amigo. Alegre tomou a faca para partir a fruta, mas a segurá-la, ela abriu em duas partes e viu que o miolo já não existia. Percebeu o engodo e nos deu motivos para muitos risos ao amanhecer. Era assim o Saul, de convívio alegre e fácil, generoso e cortês.

Ele assistia à sessões do grêmio estudantil de nossa escola e se emocionava, em todas as ocasiões, quando os jovens cantavam o Hino às Escolas Caio Martins, com fulgor, compenetração e alegria – era dele a letra – “Se da Pátria os anseios ouvis, se quereis uma infância feliz...” Ainda nos dias atuais, este hino é fator de união fraterna de todos os alunos que passaram pelas Escolas Caio Martins, uma lembrança indelével do grande mestre. Emocionado ele aplaudia, quando uma criança declamava com toda candura o maravilhoso soneto de sua autoria, Flores do Campo.

Numa certa quadra, Saul nos surpreendeu com inesperada visita e, mais ainda, com o acompanhante que levava: o escritor Mário Palmério. Ficaram, os dois, por alguns dias em minha casa. Durante o dia faziam incursões pelo interior do município e, à noite, conversavam demoradamente no alpendre da casa aliviando-se do calor, que no Norte é bravo. No desenrolar das conversas, e por informação do Saul, fiquei sabendo do propósito da visita e das incursões no interior: Mário Palmério, que estava reunindo dados sobre a obra de Guimarães Rosa com o fim de preparar seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, eleito que fora para ter assento na cadeira do grande escritor. Saul, em tal desiderato, foi o condutor da pesquisa e eu, por minha vez, privilegiado pela visita de um notável acadêmico.

O mestre Saul me encorajou tanto! Colocou-me no rumo e gosto pelo Folclore, o que tomei como parte de minha vida. Incentivou-me o gosto pela literatura e, com isso, vários livros escrevi e publiquei, todos levando a alma, os costumes, os modos de nossa gente das barrancas do Velho Chico e urucuiana, enfim, o nosso mundo barranqueiro. Levo, nas páginas que escrevo, sempre, a memória do grande mestre e amigo, major Saul Alves Martins, que, com dona Julinda e filhos, passou a ser parte de minha família.