sábado, 26 de outubro de 2024

MARINA ESCRITORA

 No capítulo anterior abordamos uma faceta da Marina  Naves poetisa como
introdução do de um trabalho acadêmico, que ela  revela a sua maturidade e
o grande talento literário. O título que ela deu ao excelente trabalho foi CAROSO.  
Nesta edição, a primeira parte.

 


Quando a febre estabelece seu domínio na mente e cozinha cada fibra de pensamento em certeiros quarenta graus celsius, nela ela pinica e arde um incômodo imenso. Não há osso de unha ou de faca ancestral — dessas neolíticas expostas como prêmio nas vitrines dos museus da Europa, conquistadas a roubo de algum lugar do mundo — que seja capaz com afiado corte de cessar o que coça. E ela vai coçando.
Um dia ela ouviu de uma farmacêutica que a coceira é uma forma de dor. Processo inflamatório. É como o mosquito que mordisca uma impressão despercebida na pele humana e lá fica sua arte vermelha, o calombo, o sintoma mínimo de dor e um ruído de existência. Coceira. Processo inflamatório. E quanto mais coça mais vai ardendo, cozinhando a exatos quarenta graus celsius, ou um tanto-pouco menos, um pequeno incômodo que alimenta o outro.
Noutro dia ouviu também, da Rejeição, que a coceira gosta de sangrar. Seu gato a unha, mostra-lhe as garrinhas afiadas e, na mesma pele-banquete do mosquito, finca suas pequenas lâminas. Não dói tanto quando acontece, dorzinha fina e aguda. Mas agudo é o sino que anuncia a tristeza de pensar que até aquele bichinho a rejeita, aquele serzinho que morreria de fome sem seu cuidado e seu dinheiro. O sangue escorre dos arranhões. Mas o que mais incomoda mesmo é a coceira que ele anuncia.
    Eu observo tudo de dentro como numa visão panorâmica. Tudo é escuro e quente dentro do corpo humano, o pulsar do coração intermitente dá ritmo aos dias e às noites sem fim — até o fim derradeiro. Às vezes entediado no meu tear de nódulo hepático, com a companhia dessas gordurinhas amareladas agarradas ao tecido do órgão, me pergunto se outros caroços, desses que ficam no útero e crescem feito parasitas, sentem-se amedrontados com a escuridão do Corpo. Sentem-se, será, assustados com o tudum-tudum-tudum do átrio-ventrículo? O respirar do pulmão engasgado de ansiedade os põe ansiosos também?
    De dentro da profundidade dos músculos vermelhos de hemoglobina eu a observo. Sei tudo sobre seus pensamentos e sua jornada no mundo. Não estive sempre aqui, mas o resto do seu corpo me contou sobre sua história. Agora tudo sei sobre ela, e nada ela sabe sobre mim, nem mesmo sobre minha existência sorrateira. Embora não se possa saber ao certo há quanto tempo eu exista, ancião ou engatinhando ainda, em minha carne passou cada cerveja gelada digerida em sua juventude festeira. Cada lata de energético, cada remédio. E quantos remédios!
    Se eu pudesse lhe deixaria uma nota em sua mesa de cabeceira ao primeiro raiar da lua, e assim lhe escreveria:
estive vigilante no momento
que teu sonho era de brancas ovelhas
Para lhe incutir medo, o que é da minha natureza, completaria:
“não temas”, disse o anjo forte, no entanto,
temia o anjo as más e ardentes centelhas
Pode parecer cruel a deixar experimentar esse suspense, mas já disse, é da minha natureza. Existo para entregar o sabor do medo aos humanos, embora talvez só quisesse um lugar para existir. Todos querem arrancar-me deles como querem arrancar-lhes os próprios traumas. Sou um trauma ossificado em carne. Mas não quero arrancá-los de mim. Por eles tenho carinho — são meu lar. Poderia ser o trauma uma morada?
    Não importa. Hei de contar agora para quem puder me escutar, se é que há alguém, o que eu ouvi de outras partes de seu corpo. Contarei sobre sua vida e de tudo o que sei, porque tudo sei — tudo que ela é é de meu conhecimento. Seus medos, sonhos, seus ensejos e desejos mais profundos, profundos como as águas escuras do rio que serpenteia em sua memória. Me disseram as sinapses do seu cérebro.
    Talvez tenha sido a cabeça também, não sei, mas acho que foi o coração: o que mais dói lá dentro e une todas as coisas lá no fundo é uma saudade cortante de casa – que casa? – uma casa que não volta, morada na memória. Algo perdido no selecionar, guardar e recuperar de acontecimentos da vida. Mas eu tudo sei por que seu corpo tudo sabe e tudo me conta. E vou contar para quem quiser ouvir, hoje, alguns fios esquecidos do tecido da lembrança.

AS CASAS – XI

 

 


Concluindo a passagem pela praça Centenário (antes Largo Santo Antônio, XV de Novembro e Oscar Caetano Gomes) fica o registro da casa da família Botelho (hoje anexo Secretaria Municipal de Educação), que nos idos da década de 1960  chamava a atenção dos passantes  pelas rosas de dona Emília Botelho no jardim. Casa da família Ribas, onde atualmente reside a professora Terezinha Ribas. Na década de 1960  funcionava numa parte dela o Cafezinho de dona Luzia Ribas, banca de revistas e ponto de embarque e desembarque da jardineira, e ainda a Casa São José, dos irmãos Ribas.
Vencendo o tempo vamos encontrar o prédio do antigo Cine Canoas, que hoje não passa de um mausoléu (não é o desmerecendo, pelo contrário, pois um mausoléu é uma tumba grandiosa e imponente, geralmente construída para uma figura importante), que guarda  sonhos e alegrias de uma geração. A sua construção foi uma iniciativa da Associação dos Amigos de São Francisco (também coisa do passado), que tinha na presidência o saudoso Sebastião Jarbas Soares, pai do procurador-geral do Estado Jarbas Soares Jr. O projeto arquitetônico do dr. Heráclito Cunha Ortiga, que sofreu modificações para adequação do preço da construção (e ficou pior). A iniciativa remonta ao princípio do ano de 1965 com a venda de 40 cotas no valor de Cr$ 200,00, cada  –  R$ 2.940.000 hoje em dia,  possibilitando a assinatura de contrato com Mário Ribeiro, empresário montesclarence, com o objetivo de concluir e equipar o prédio como cinema – aparelhos e poltronas. Surgiu um pequeno entrave devido o atraso no pagamento das cotas, o que foi solucionado graças ao trabalho do advogado  Oscar Caetano Júnior. Valeu o esforço, pois no dia 5 de novembro de 1965, no dia da comemoração do 88º aniversário de São Francisco, o prédio foi inaugurado. Reportagem do SF– O Jornal de São Francisco fez o seguinte registro. “A população da cidade esperava por este momento, não apenas os aficionados pela arte que projetou no mundo da fama  nomes como o de Clark Glabe, Elizabeth Taylor, e outros, pois o cinema é arte e arte é civilização; isto representa a importância do grande acontecimento. O cinema é instrumento positivo de elevação, educação e melhoramento; é hoje um dos mais importantes meios de expressão do nosso tempo”.
Durante muitos anos o Canoas foi o ponto de encontro de crianças, jovens e adultos, pois além das exibições cinamotográficas ele servia para realização de shows de famosas bandas, que visitavam a cidade e  para a realização de  programas de auditórios comandados pelo empresário Helvéio Mendes, o que marcou época.
Tudo tem seu tempo. Atualmente pouca gente vai ao cinema, pois pela televisão ou celular tem-se tudo em casa. Contudo, há tantas outras e importantes atividades que poderiam ser levados ao cine Canoas em prol da sociedade. O desprezo de administrações do município em relação àquele importante prédio público (público porque a AASF foi extinta e ele retornou ao patrimônio do município) merece melhor atenção pelo que  representa como patrimônio cultural e por seu passado histórico. Não como se encontra em reuínas numa área nobre da cidade, uma situação que depõe contra a administração municipal.  


CHUVA, QUE CHUVA!

 

 O milagre da chuva se vê estampado no esplendor da natureza. Explode o verde, abrem-se viçosas e perfumadas as flores. Vê-se nas pessoas que se mostram mais soltas, alegres e disponíveis. E vem a expectativa de ter o São Francisco mais farto de água, ainda que cobrindo a tão saudável praia, afugentando-se o espantalho do veio então seco. Chegam as notícias do campo onde a vida se transforma com a visão dos tanques que recebem as precipitações como uma salvação para o agricultor – água para o rebanho, o consumo, criatório de peixes, para garantir o lençol freático e, como consequência, a manutenção dos poços tubulares de extrema importância no meio rural onde já não se conta mais com cursos d´água superficial ou perene.

Muito há para falar e festejar sobre a chuva, uma dádiva do céu. Contudo, nesta mini-crônica,   faço uma referência à sabedoria popular, ao conhecimento empírico ou, para ir mais além, ao patrimônio cultural imaterial para ficar mais chique. Nada excepcional, mas revela uma faceta da riqueza do conhecimento do homem simples do nosso meio, que é preciso dar valor à sabedoria que ele transmite, pois muitas vezes, sem quaisquer conhecimentos científicos ou instrumentos apropriados, ele nos passa muitas lições. Não estendendo, só como exemplo: como explicar a localização de lençol d´água para abertura de cisternas ou poços tubulares apenas com o emprego de uma forquilha de madeira? Temos o registro de muito sucesso nos dois casos.

O que trago, nesta página, é mais uma lição do experimentado homem do campo diante de uma realidade, do trivial em face da natureza. Aconteceu comigo. Num período de seca, com toda persistência e cuidado, irrigava as fruteiras do meu quintal. Passavam os dias e elas não correspondiam ao trato, com aspectos, a cada dia, mais tristes, ou quase secas, tão secas de fazer dó. Não exibiam vigor. Expus a situação a um amigo do meio rural, vivido agricultor.   A resposta foi simples: “o senhor molha a raiz e o sol queima a copa”. Tinha esquecido desta lição, dias atrás, molhando com profusão meus pés de acerola e eles, a cada dia, mais tristes, folhas desbotadas, secando, com prenúncio da morte. Até adubo foliar apliquei neles e nada. O processo de extinção evoluía-se, embora não fossem eles caducifólias.  Viajei para Belo Horizonte na quinta-feira 17 e recomendei à nossa secretária que não se descuidasse de nossas plantas.  Na minha ausência, do céu caiu  bendita chuva, que se repetiu, com intermitência,  até o dia 20. Assim que retornei ao meu lar corri ao quintal, quis ver o efeito que ela causara às minhas fruteiras. Meus Deus! Senti-me em um jardim encantado, esplendoroso, verde, tão verde, e o pé de acerola que se mostrava às vias de secar, carregado de flores com o espetáculo do balé de abelhas libando o seu néctar. Em apenas 3 dias, o que é isso? Claro, é o milagre da chuva, irrigação mais pródiga que a minha no dia a dia. A  força das minhas fruteiras estava retida apenas aguardando a chuva para explodir com vigor.  

Estava certo, tão certo, o meu amigo rurícola com o seu conhecimento empírico. É como se vê em um ditado popular “morrendo e aprendendo!”.

O CERRADO – IV

 

O buriti merece uma referência especial, pois ele é parte da vida do homem quanto à sua sobrevivência nos gerais,  e uma fonte de inspiração  para escritores, lembrando, em especial, Guimarães Rosa e Afonso Arinos. Na singeleza de um verso, Guimarães reproduz o em canto do buriti: “Buriti, minha palmeira./ Lá na vereda de lá:/ Casinha da banda esquerda./ Olhos de onda do mar”. Afonso Arinos, em Pelo Sertão,  homenageou o buriti como um herói, de porte gigante, a contar histórias como o Buriti Perdido: Velha palmeira solitária. Testemunha sobrevivente do drama da conquista, que de majestade e de tristura não exprimes, venerável epônimo dos campos!  No meio da campina verde, de um verde esmaiado e merencório, onde tremeluzem, às vezes, as florinhas douradas do alecrim do campo, tu te ergues altaneira, levantando ao céu as palmas tesas — velho guerreiro petrificado em meio da peleja! E, com uma singeleza sem par, em curta sentença, ele foi capaz de  cantar ao mundo, toda a beleza escondida (ou perdida) do buriti: “Poeta dos desertos, cantor mudo da natureza virgem dos sertões, evohé!”.
    Audálio Lisboa, poeta januarense, que mergulhou no sertão urucuiano como diretor do Núcleo Colonial Vale do Urucuia (Caio Martins/Conceição), caiu de encanto pelo buriti e o descreveu em uma página memorável: “A relação do homem com o buriti é do nascimento ao morrer. Dele faz a sua casa, seu berço, sua cama, mesa e cadeira, o chapéu, a carocha, corda, o laço, o cesto,o balaio, a  gaiola o, brinquedo, a rede que vai levá-lo à última morada e a cruz que vai marcar seu leito eterno. O buriti ainda lhe dá o fruto saboroso para licores e doces”.  
    Domingos Diniz, sertanista apaixonado pelas veredas, emenda: “Da medula extrai uma fécula parecida com sagu, muito usada pelos índios; do tronco ou espique tiram-se talas para cercas, para fazer ninhos de galinha. Do pecíolo – popularmente chamado braça pelo sertanejos –, faz-se variado artesanato (gaiola, alçapão, brinquedos, miniaturas dos vapores do São Francisco). Da folha, ainda fechada, tira-se a seda, tira resistente para fazer rede, cabresto, cordas para usos diversos, bocapi, esteira. Com folhas maduras, tiradas sempre na luz crescente, cobrem-se as casas ou ranchos.  Da polpa faz-se a saeta (sageta ou sagita), depois de seca ao sol, junta-se-lhe rapadura ou açúcar  – com água quente ou fria obtém-se a jacuba. Do caule extrai-se um líquido adocicado que os sertanejos dão o nome de vinho. Da amêndoa obtém-se um óleo, uma das maiores fontes de vitamina A. Da espata da palmeira faz-se o barrileiro onde se prepara a decoada para o sabão, Usa-se, ainda, para bicas de água”.
    A vereda, berço do buriti, é o caixão que recebe as águas do cerrado, onde brotam fontes que vão formar córregos e riachos, que alimentam o São Francisco. As veredas estão sendo extinta, logo...

sábado, 12 de outubro de 2024

A ESTRELA DE UMA POETISA

 

Guriazinha ensaiava tocar violão e cantar em inglês. Pouco crescida, era figura constante na biblioteca da escola onde a sua mãe ensinava, separando livros com voraz curiosidade, dizendo à bibliotecária: “quero escrever igual o meu vô”. Com 14 anos foi aprimorar a língua inglesa na Irlanda, com um grupo de alunos do colégio onde estudava. Era apaixonada pela literatura irlandesa. Lá ouviu de uma preceptora do grupo de estudantes adolescente brasileiros: “Você não precisa aprender o que já sabe tão bem” – de fato, ela já dominava bem a língua de Shakespeare. Não satisfeita, pouco tempo depois,  conseguiu um estágio na capital do Maine, EE.UU, ela e a coleguinha Laura na casa de Jorgeane Assunção,  mãe de seu coleguinha David. Até frequentou aulas na High School. Caminhou e graduou-se em Literatura Inglesa pela UFMG.... é o preâmbulo de uma linda história. A história de Marina Naves.
    A sua aventura literária teve início no ano de 2021 com a publicação de dois livros de poesias – Lua Vespertina e Voyager. João Naves no prefácio do livro Lua Vespertina, escreveu: “A poesia de Marina nos conduz a peregrinar pelo céu no fio da vida, tecido a cada passagem da Lua, levando o personagem Azevedo numa fantástica viagem Não se trata de um mero passeio pelos infindáveis etéreos, mas o vivenciar da cada fase da Lua identificada com o trajeto de nossa vida... Lua Vespertina, livro de estreia de Marina, será, sem dúvida, o portal de uma fulgurante jornada literária”. O livro Voyager mereceu de Isadora Urbano uma apresentação especial em que destaca: “Será preciso uma boa lupa para discernir as linhas e entrelinha que costuram os versos de Voyager: tal como uma peça de tapeçaria artística, é nos fios que amarram um poema ao seguintes, e aos seguintes, que encontramos os nós e as filigranas capazes de iluminar a imagem bordada no conjunto dos caminhos”.
Em 2023 Marina lançou o livro Sutura. No prefácio, Sara Begname  escreveu: “Em Sutura vemos a criação de uma persona poderosa, capaz de dominar o eu, e a luta desse eu para reconstruir e dar significado à própria vida, em sua incompletude É belo ver o esforço humano, e especificamente feminino, em livrar-se de qualquer fardo, de qualquer culpa, e em aprender o valor do tempo, que, enquanto nos ligamos ao outro, nos amarra à vida. Afinal `é, sim, isto que nos faz humanos /de ao fim chegar e então voltar ao início`”.

 

Pequena amostra dos  livros

 


 

 Do livro Voyager
MÃE


Seio, gênese e carinho ancestral;
Gaia de muitos galhos faz-se ninho

Berço e barca, um útero é relicário
caixa de Pandora – todos os dons
                de padecer no Paraíso

Ancora nos braços os viajantes
novos nesse mundo que se bifurca

Domingo igreja: o mais belo vitral
é teu rosto gentil, bom como aquelas
              imagens de Santa-Maria
                             Ave-Maria-Mãe-de-Deus.

 

Do livro Voyager

INUNDAÇÕES
(Às margens do São Francisco)

Os meus músculos são barragens frágeis
Que não podem conter as doidas águas
(suco de um corpo feito de saudades
De carinhosas memórias vagas)

Das vagas e das veredas de minha
terra abandonada. Meus chãs Gerais
com cores de Sol na poente linha,
sertão seco sobrevivendo em ais.

Quisera essas lágrimas que me ocorrem
 – e  me molham como estranha chuva –
alimentassem os leitos dos rios,

rios rasos que se arrastam, mal correm,
mas que em suas águas outrora turvas
banhei-me num batismo inundo em risos.

Do livro SUTURA

Esta impossibilidade da fala
da escrita e de toda arte que existe
perante a ausência do membro que cai
e a alma que paira na almofada triste

esta impossibilidade da luz
de penetrar no breu de olhos fartos
que trazem esperança como cruz
relances de riso e sol lhe são partos

como pode, Deus, tudo não ser nada,
se antes, nada era tudo, na palavra?
espetáculo que se encerra abrupto

se tudo que nasce um dia se acaba,
hei de crer, enfim, Naquele que lavra;
vai e viva. Que a vida é um minuto.


Este sucinto comentário é para levar aos amigos de Marina e de todos nós, um pouquinho da sua arte que já resplandece grandiosa. Na próxima edição, mostraremos um trabalho acadêmico de Marina, que em hora auspiciosa chegou às nossas mãos.  Vamos acompanhá-la em um passeio fantástico e surreal para explicar o real. Aguardem!

 

 

O CERRADO – III

 

 

Os são-franciscanos em geral, especialmente das autoridades, precisam voltar a atenção para importância do cerrado quanto ao meio ambiente (conjunto de elementos e processos físicos, químicos e biológicos que possibilitam a vida na Terra:  solo, água, ar; salinidade, pH,  flora e fauna) e, especialmente o HOMEM. Na relação meio ambiente – homem, temos o que fornece e os que destroem. Por isso, urge cuidar do cerrado em vista das  incomensuráveis beleza e  riqueza dele cerrado, que por sua natureza física não desperta quase nenhuma atenção. No entanto, para não ir longe, é importante se ater à questão hídrica, onde ele é soberano, como escreveu Ivo das Chagas –  “O cerrado é o pai das águas”. Ora, a água é elemento essencial à vida. Disso sabe e depende o homem. Então por que destrói a sua fonte?
Vejamos, numa visão geral. O bioma cerrado ocupa 60% do Estado de Minas Gerais (Triângulo Mineiro, Noroeste e Médio São Francisco) com maior predominância em regiões de estação seca, assim definida pela duração de longa estiagem – neste o período, até os meados deste mês, é de seis meses. Trata-se de um bioma com uma flora altamente rica, no qual há predominância de espécies lenhosas de várias famílias como o pequi, o murici, o jatobá as sucupiras. Salienta-se  que não se trata de uma cobertura vegetal uniforme pois, no sentido geral, o cerrado é um complexo vegetacional, onde podem ser encontrados desde formações campestres, até as formações florestais, passando gradualmente ou bruscamente, de uma para outra, dentro desse complexo encontram-se campo limpo, campo sujo, campo cerrado, cerrado propriamente dito e cerradão (floresta mesófila esclerófila), além de inclusões de mata ciliar ou de galeria, mata seca (mesófila estacional) veredas e campos rupestres (pedregosos de altitude).
Oque oferece a flora:  pimenta-de-macacos,  pindaíba;  embaúba, As árvores (com mil utilidades): araticum, gonçalo, sucupira-preta, murici, canjerana, pequi, buriti, lixeira (sambaíba), caviúna-do-cerrado,  barbatimão, baru, cagaitera, mangaba, jatobá-do-cerrado, pau-santo, jacarandá-do-cerrado, bacupari, sucupira-branca, pau-terra, ipê-do-cerrado
A medicina caseira encontra no cerrado um verdadeiro laboratório, utilizado  pelo conhecimento empírico passado de gerações a gerações, suprindo a presença do médico e de fármacos. Vastos receituários no uso de raízes, sementes, folhas e cascas na cura de doenças ou males: problemas de garganta, inflação dos olhos, inflamações uterinas, picada de escorpião, enxaqueca, dores de dente,  cicatrizante, dores do estômago e rins, gripe, febre e resfriados, prisão de ventre, antirreumático, diurético, vermífugo, calmante, expectorante,  má digestão, picada de cobra, rouquidão, problema do fígado, estimulante do apetite, dor na coluna, inchaço, banho para recém-nascido que apresenta atraso no desenvolvimento, asma, bronquite,  regulador menstrual, úlcera e gastrite, afrodisíaco masculino e feminino e inseticida. Muitos alimentos são encontrados no cerrado:   abacaxi-do-cerrado, araticum, baru, buriti, pequi, araticum, cagaita, jatobá, mangaba, murici,  mama-cadela, caju-do-mato, murta, grão-de-galo, saputá, umbu d´anta, pimenta-de-macaco (tempero), coco-indaiá.
É uma pequena amostra da riqueza – e tão desconhecida – do cerrado. Mais ainda veremos nos próximos capítulos.

sábado, 5 de outubro de 2024

O CERRADO – II

 


Contemplando o cerrado, hoje, depois de tantas jornadas e campanhas a favor de sua preservação, volto à lição do chefe Seatle escrevendo ao presidente dos Estados Unidos em 1854: “Se não possuímos o frescor do ar e o brilho da água, como é possível vendê-los? Essa ideia me parece estranha. Somos parte da terra e ela é parte de nós. Os picos rochosos, os sulcos úmidos nas campinas, o calor do corpo do potro e o homem – todos pertencem à mesma família. Tudo o que acontecer com a terra acontecerá com os filhos da terra. Se os homens cospem no solo, estão cuspindo em si mesmos. Isso sabemos: a terra não pertence ao homem; o homem pertence à terra”.

O velho e sábio índio lançava as mais profundas lições ecológicas. O homem “civilizado” já dava sinais de que o progresso marchava em direção contrária à sua relação com a Terra, que teria de ser revolvida para mostrar a cara do ouro, outros metais e pedras preciosas; que as matas deveriam ser tombadas para darem espaço aos vastos campos de pastagens e sua madeira se transformar em energia. O homem já mostrava que, de fato, assumia o papel de deus absoluto, o dono da terra, dos animais, dos rios, da flora, do ar...

O homem assumiu essa postura sem se cuidar que ele e “a terra são a mesma matéria...” e, agora, de repente, começa a perceber – na pele, no ar, nos campos, nos rios, em casa – que foi longe demais. Aí, a lição  do  sábio  índio  explode  como  uma verdadeira bomba em nossas vidas. Infelizmente, aqueles que ainda julgam ser os donos da Terra não foram tocados pela lição, pois seus interesses planam acima da realidade – vivem seu sonho.

A ciência diz que nossa espécie apareceu há milênios. No relógio da vida, nos últimos segundos, ou nas últimas décadas, depois da Revolução Industrial e, mais acentuadamente depois da Segunda Guerra Mundial, abriram-se as porteiras da destruição, guardando a falsa crença – ou conveniência - que a terra resolve todos os problemas que lhe acarretam o homem – tudo se renova. Não é verdade, os sinais estão chegando e de maneira um tanto grave, desde as alterações do clima – efeito estufa, destruição da camada de ozônio,  tudo com um selo: a destruição da natureza de maneira avassaladora. Aqui, aos nossos olhos, as centenas de veredas hoje secas, ribeirões extintos e o rio São Francisco em estado lastimável, são o triste testemunho da ação deletéria do homem, exclusivamente do homem. Há sinais claros, insofismáveis, que a água começa escassear-se.

Tempos atrás, após a alvorada da mineração, esgotando-se os veios auríferos, o homem vislumbrou fabricar o ferro, que exigia a industrialização. Fornos e mais fornos alimentados pelo carvão. Assim, teve início o avanço sobre o cerrado. Árvores arrancadas na sanha dos correntões não deixando, sequer, uma raiz para  a rebrota. Irônico: a tradicional e rica vegetação do cerrado foi substituída pelo eucalipto, que não combina com a flora nativa e muito menos com a fauna. Resultado: um deserto verde.

Nosso cerrado vai sendo extinguido lentamente aos nossos olhos e o pior ainda está por acontecer.

 

 

O CERRADO – I

 


  O ferro e o trigo civilizaram o homem e arruinaram a raça humana - Rousseau

 

            Chegando-se a 2024, acentua-se, de forma abrangente, a ameaça de extinção do cerrado brasileiro, de forma mais direta, o mineiro. O drama atual é terrível, mas historicamente ele tem origem no século XVIII, duzentos anos depois da descoberta de Pindorama, um imenso território virgem.

Na virada do século XV para o século XVI, pronunciou-se a imperativa necessidade expansionista de Portugal e da Espanha com o objetivo imediato de produção de alimentos e,  concomitantemente, de exploração mineral, para sustentar o lucro financeiro.

            Principiou a ameaça. Espanha e Portugal se aventuraram nas viagens marítimas com atenção voltada para  a busca do ouro para fazer frente ao comércio das especiarias do Oriente que alcançavam altos preços, além do seu emprego nas transações comerciais internacionais. Na busca de encontrar um caminho mais curto para a Índia, os espanhóis em 1492 descobriram a América e, 8 aos depois,  os portugueses a terra que viria ser o Brasil.

            Na prospecção imediata dos portugueses a terra descoberta não oferecia perspectivas econômicas. Contudo, minas de metais preciosos foram abertas e exploradas pelos espanhóis em toda a extensão da América do Sul. Brilhou o ouro nos anos finais de 1500, A exploração aguçou o interesse dos portugueses.  Paulistas deixavam o vale do Piratininga avançando por trilhas pelo interior da colônia com o objetivo de capturar índios para o trabalho, descobrir ouro e pedras preciosas, seguidos por diversos grupos de avetureiro, inclusive portugues. 

            Ao mesmo tempo, deixando as zonas açucareiras, o gado foi ganhando as margens do rio São Francisco, ocupando o seu território pelo Sul e pelo Norte com objetivos diferentes, mas que, com o tempo, além de servir como processo de desenvolvimento, viria a ser um processo de degradação.   Em 1674 o bandeirante Fernão Dias avança pelo território que seria Minas Gerais. Em 1693 Antônio Rodrigues Arzão descobre ribeirões auríferos. Aventureiros paulistas, mineiros e até portugueses,  como um enxame de abelhas,  assentam-se na região do Tripui (Ouro Preto) e Ribeirão do Carmo (Mariana). Surpreendente explosão populacional.  Ouro Preto, naquela época,  suplantou a população de Nova Iorque. Em pouco tempo o que se via era montes foram lavrados com o cascalho assoreando  ribeirões. A terra começava a pagar tributo por sua riqueza natural e o homem mostrando a sua ambição desenfreada em busca do lucro, sem medir consequências quanto aos efeitos deletérios causados à natureza.

Com o esgotamento da lavra do ouro, foi dado o passo em direção à ameaça contra o cerrado.