No capítulo anterior abordamos uma faceta da Marina Naves poetisa como
introdução do de um trabalho acadêmico, que ela revela a sua maturidade e
o grande talento literário. O título que ela deu ao excelente trabalho foi CAROSO.
Nesta edição, a primeira parte.
Quando a febre estabelece seu domínio na mente e cozinha cada fibra de pensamento em certeiros quarenta graus celsius, nela ela pinica e arde um incômodo imenso. Não há osso de unha ou de faca ancestral — dessas neolíticas expostas como prêmio nas vitrines dos museus da Europa, conquistadas a roubo de algum lugar do mundo — que seja capaz com afiado corte de cessar o que coça. E ela vai coçando.
Um dia ela ouviu de uma farmacêutica que a coceira é uma forma de dor. Processo inflamatório. É como o mosquito que mordisca uma impressão despercebida na pele humana e lá fica sua arte vermelha, o calombo, o sintoma mínimo de dor e um ruído de existência. Coceira. Processo inflamatório. E quanto mais coça mais vai ardendo, cozinhando a exatos quarenta graus celsius, ou um tanto-pouco menos, um pequeno incômodo que alimenta o outro.
Noutro dia ouviu também, da Rejeição, que a coceira gosta de sangrar. Seu gato a unha, mostra-lhe as garrinhas afiadas e, na mesma pele-banquete do mosquito, finca suas pequenas lâminas. Não dói tanto quando acontece, dorzinha fina e aguda. Mas agudo é o sino que anuncia a tristeza de pensar que até aquele bichinho a rejeita, aquele serzinho que morreria de fome sem seu cuidado e seu dinheiro. O sangue escorre dos arranhões. Mas o que mais incomoda mesmo é a coceira que ele anuncia.
Eu observo tudo de dentro como numa visão panorâmica. Tudo é escuro e quente dentro do corpo humano, o pulsar do coração intermitente dá ritmo aos dias e às noites sem fim — até o fim derradeiro. Às vezes entediado no meu tear de nódulo hepático, com a companhia dessas gordurinhas amareladas agarradas ao tecido do órgão, me pergunto se outros caroços, desses que ficam no útero e crescem feito parasitas, sentem-se amedrontados com a escuridão do Corpo. Sentem-se, será, assustados com o tudum-tudum-tudum do átrio-ventrículo? O respirar do pulmão engasgado de ansiedade os põe ansiosos também?
De dentro da profundidade dos músculos vermelhos de hemoglobina eu a observo. Sei tudo sobre seus pensamentos e sua jornada no mundo. Não estive sempre aqui, mas o resto do seu corpo me contou sobre sua história. Agora tudo sei sobre ela, e nada ela sabe sobre mim, nem mesmo sobre minha existência sorrateira. Embora não se possa saber ao certo há quanto tempo eu exista, ancião ou engatinhando ainda, em minha carne passou cada cerveja gelada digerida em sua juventude festeira. Cada lata de energético, cada remédio. E quantos remédios!
Se eu pudesse lhe deixaria uma nota em sua mesa de cabeceira ao primeiro raiar da lua, e assim lhe escreveria:
estive vigilante no momento
que teu sonho era de brancas ovelhas
Para lhe incutir medo, o que é da minha natureza, completaria:
“não temas”, disse o anjo forte, no entanto,
temia o anjo as más e ardentes centelhas
Pode parecer cruel a deixar experimentar esse suspense, mas já disse, é da minha natureza. Existo para entregar o sabor do medo aos humanos, embora talvez só quisesse um lugar para existir. Todos querem arrancar-me deles como querem arrancar-lhes os próprios traumas. Sou um trauma ossificado em carne. Mas não quero arrancá-los de mim. Por eles tenho carinho — são meu lar. Poderia ser o trauma uma morada?
Não importa. Hei de contar agora para quem puder me escutar, se é que há alguém, o que eu ouvi de outras partes de seu corpo. Contarei sobre sua vida e de tudo o que sei, porque tudo sei — tudo que ela é é de meu conhecimento. Seus medos, sonhos, seus ensejos e desejos mais profundos, profundos como as águas escuras do rio que serpenteia em sua memória. Me disseram as sinapses do seu cérebro.
Talvez tenha sido a cabeça também, não sei, mas acho que foi o coração: o que mais dói lá dentro e une todas as coisas lá no fundo é uma saudade cortante de casa – que casa? – uma casa que não volta, morada na memória. Algo perdido no selecionar, guardar e recuperar de acontecimentos da vida. Mas eu tudo sei por que seu corpo tudo sabe e tudo me conta. E vou contar para quem quiser ouvir, hoje, alguns fios esquecidos do tecido da lembrança.