EULINA FERRAZ GANGANA
Dona Eulina recebeu-me em sua casa com uma suave música de fundo. Transparecia em seu suave semblante um quê de saudade e tristeza. Seus olhos brilhavam. Baixinho, ela me segredou: “são saudades do Moacir, ele está sempre presente em minha vida”. Seu filho Élcio, depressa, quis desligar o som, ao que ela interrompeu com um gesto ameno, querendo dizer, no olhar, que aquilo doía, mas lhe fazia muito bem. Foi assim que iniciamos a nossa conversa.
Dona Eulina Ferraz Gangana é de Floresta, Pernambuco, de onde veio mocinha, em 1928, para São Francisco. Aqui já se encontravam instalados seus pais, Américo de Souza Ferraz e Maria Anísia Cavalcante Ferraz. São Francisco era um cidade calma, mas impregnada ainda de alguns ranços do “Barulho”, como o fato que marcou chegada de Américo Ferraz à cidade. Ele deixou Pernambuco com destino ao Rio de Janeiro, mas acabou em São Francisco, como muitos que tomaram o caminho do rio em busca do Sul. A caminho, no encontro de dois vapores, ele foi convidado por João Belarmínio para gerenciar sua fazenda (Tabuado, hoje de Tião Agege) – quando vapores se encontravam no rio, durante uma viagem, era comum a atracagem, lá no meio, ocasião em que os passageiros podiam trocar impressões, enquanto as tripulações trocavam informações.
No dia em que aportou em São Francisco, como homem muito religioso que era, Américo foi diretamente à igreja fazer suas orações. Chegando à praça da igreja, viu uma grande concentração no sobrado da família Mesquita, que ficava ao lado da igreja. Aproximou-se e, com seu jeito despachado, quis saber o que acontecia. Foi informado do assassinato de Odorico Mesquita. Entrou na casa e, depois das condolências apresentadas à família, foi ajudar dar banho no morto.
Ali, ganhou muitos conhecidos. Dona Eulina, que chegou a São Francisco depois, em junho de 1928, ainda viu o véu preto pendurado na porta de dona Laurinha, esposa de Odorico Mesquita – era um costume da época, sinal de luto da família.
Dona Eulina disse com satisfação: “Fiquei gostando de São Francisco desde que aqui cheguei”.Surpreendente, pois Floresta era uma cidade bem mais desenvolvida. Nos primeiros dias de São Francisco, ficou hospedada na casa de João Belarmíno (hoje dona Luzia). Mais tarde, a família se instalou na praça Santo Antônio na casa onde mora, hoje, dona Jandira Pinto.
As lembranças vão chegando, e ela, candidamente, com seu jeito sereno, traz parte da história à tona. A cidade era muito pequena. Tudo girava e passava pela praça Santo Antônio, onde havia tanto mato que dava para se esconder. A luz das ruas era com os lampiões, aceso todas as noites por dois homens – um carregava a escada, em que outro subia para acender os pavios. Mais tarde, veio a luz tocada a motor, instalado pelo Dr. Ferreira numa casinha onde hoje funciona a carpintaria da prefeitura, na rua Olegário Maciel.
O coronel Oscar consertou a cidade. Fez a praça no lugar onde tudo era cheio de mato, trouxe um jardineiro de fora para fazer o jardim, depois construiu o coreto, abriu as ruas e avenidas, criou uma banda de música, trazendo um maestro da Bahia. A primeira água encanada da cidade foi obra dele. As noites na praça eram animadas e alegres, com a banda tocando retretas no coreto e o povo reunido assistindo com satisfação. As ruas da época eram a Silva Jardim, rua Direita, São Félix, da Mangueira, Montes Claros, Antero Simões, Ferreira Leite (o beco da praça até a praça da igreja), Padre Paraíso (onde morava dona Eralina, mãe de Moacir), Ezequiel Mendonça, do Zé Pretinho (hoje avenida Dom Pedro de Alcântara).
Uma evocação que agrada bastante à dona Eulina era a vida cultural de São Francisco. O pai gostava de tocar violão, o que reunia sempre muita gente onde se encontrava, acabando tudo em belas serestas. O povo gostava de seresta e de bailes. Sempre inventava um motivo para fazer um, o que ocorria nas casas de famílias. Muitas vezes, quando saíam de um baile, alguém já diz: “Amanhã é aniversário de fulano” – desculpa pura para outro baile. Américo Ferraz ia a todos, levando as filhas, que eram muitas – só elas faziam uma festa. Tanto é que, quando Américo dava ponto de ir embora, o baile acabava.
O teatro era famoso e atraía quase toda a cidade para assistir às belíssimas peças interpretadas pelos artistas da época: Moacir, Antônio Ortiga, José Falcão, Ulisses Coutinho, Izaura, Emília Figueiredo. Miguel Texeira era o ponto. A peças eram apresentadas no antigo açougue municipal – depois Associação dos Amigos de São Francisco, prefeitura e hoje Câmara Municipal. Dona Eulina lembra que para ela a pela de maior repercussão foi “O Erro Judiciário”, e teve, também, “Os Humildes”. Ela chegou a tomar parte de uma peça interpretada só por mulheres. Sua maior lembrança e que a deixa ainda orgulhosa foi o fato de ter sido convidada para cortar a fita de inauguração do salão do “Teatro São José” – era o nome.
Outra diversão da época eram os piqueniques na fazenda de Zé Pretinho (Ceará; hoje de Vicente Rogério Dourado Barbosa) ou do outro lado do rio, sob as sombras das mangueiras (que lá ainda existem). As viagens eram feitas no único caminhão da cidade, de Lourenço de Carvalho, tendo Abner como motorista.
Fora os bailes e festas religiosas, o povo se reunia sempre que chegava um vapor. Era dar um apito no pontal e alguém gritava: “O vapor está chegando”. Toda a cidade ia para o cais ver o intenso movimento de desembarque e embarque, de gente e mercadoria, pois era o único meio de transporte da época.
Texto e Foto: João Naves de Melo