segunda-feira, 2 de outubro de 2017

RIO SÃO FRANCISCO: 516 ANOS DE DESCOBRIMENTO

No dia 4 vindouro vamos comemorar mais um aniversário do nosso amado rio São Francisco, tão carinhosamente chamado de Velho Chico. Talvez, em tempos atuais, deve-se reforçar o adjetivo: Velho e cansado São Chico.
Sem delongas, trazemos ao portalVEREDAS para nossa reflexão, um grito de alerta feito pelo barranqueiro cantor e compositor Marku Ribas –  muito identificado com São Francisco, suas raízes – (lamentavelmente encantado no ano 2013), publicado no caderno Gabarito do  Estado de Minas, no dia 30 de agosto de 1991. Ao final da leitura, caro barranqueiro, vendo nosso rio hoje, tire suas conclusões.
VELHO CHICO, RIO QUE MORRE?
Batizado com no nome de Rio São Francisco, em 4 de outubro de 1501 por Américo Vespúcio, chora agora seus 490 anos de agressões. Como se  chamava antes? Caminho de Luz, Oca-Uiara-Açu? Imaginemos aquelas tantas vidas banhando desnudas sob estas correntezas, desde antes Casca D’antas até depois de Paulo Afonso!
Quantas luas terão refletido este cristalino espelho margeado por lambiscateiros ramos ora por bronzequarantes rochas, acariciado pela brisa sertânica que nos chega da vegetação ciliar, dos cerrados e veredas? Qualquer de suas brancas “crôas” pode ter sido aquela em que se deitou Iracema sob a luz de Tainá.
Alumbramento e magia encontraram aos primeiros olhos, navegando aventureiros ante tanta beleza, representando “bandeiras” de inocente esperteza mas dede já, forasteiros em busca do que levar. Lento e sinuoso desce o rio, curioso, subindo o mapa, é seu jeito de andar. Vem de longe embrionária, está idéia de progresso e em seu nome cometem todos os desmandos. Vou alinhavando e apontando alguns deles.
Prestimosos e românticos vapores navegavam entre Pirapora-MG e Juazeiro-BA, interligando as culturas deste povo brasileiro. Comercialmente davam prejuízo, os muitos dias ou horas encalhados com o rio seco. Veio Três Marias, linda barragem. Seria para manter o nível das águas em condições de navegabilidade mas se esqueceram das piracemas e dos municípios barranqueiros, que não receberam investimentos pela venda de sua energia. Nas enchentes os náufragos rezavam à sua Santa, mesmo não acreditando nela: “Valei-me Santa de Zumira”, e as lavouras e cidades ficavam alagadas.
Foram tantos os projetos políticos, que me lembro de um especial. Para se construir o cais dinamitaram a CACHOEIRA e, pela manhã, nos juntávamos em bandos para recolhermos os cardumes nos remansos. Já era a Joint Venture com as multinacionais. Reflorestar. Vamos reflorestar! Porque desflorestar? Acabaram com as veredas, com os pequenos cursos d’água, provocaram o assoreamento e ainda jogam entulhos e dejetos em seu leito. De morte? E tome fábricas. Agora mesmo há sangria em sua nascente, pelo garimpo exterminador. Os caboclos, com seus tambores e violas, vão resistindo e denunciando as cicatrizes para prevenirem as feridas.
Pobre São Francisco! A alegria em vozes de crianças junta-se aos pássaros, cedinho, para acordar seu sonho e reanimar os tantos que, conscientes, tentam lhe salvar. Um desses foi um poeta-errante, um cantador-violeiro, conterrâneo de meu avô. Geraldo Magela; raiz e fulô, que o apito do Benjamin Guimarães seja a voz deste vale por onde falaremos todos, quando aqui não estivermos mais. Lutemos agora para que sobreviva, pelo menos o rio, que morre???

VIAJANDO – SETE PORTOS

Em 2003 lancei o livro de poesias Viajando – Sete Portas tendo o rio São Francisco e sua cultura como tema. O livro foi comentado, na parte final, por meu amigo Domingos Diniz, barranqueiro da gema. Sobre ele escreveu um belo comentário, o meu filho Ricardo Leal de Melo, também barranqueiro da gema agosto 2017.
Reproduzo este comentário à guisa da comemoração do 516º aniversário do amado rio.
VIAJANDO,
Estive no último final de semana, sem sair do sofá…
De início, comovido pela “Ofertança”, deixei para trás a `Solidão´ que sinto, enquanto sertanejo n’alma e tão longe do sertão (não apenas fisicamente), para com olhos rasos d’água, secar aquele `Filete´ de saudades que me denunciavam a emoção.
A forte metáfora que representa “a despretensiosa gota”, mais uma vez me faz pensar no quanto frágeis somos nós nessa imensidão e no quanto podemos ser fortes, quando somos uma gota que soma a outras no rumo certo de formar a fonte, de onde viemos, viremos, ou simplesmente para onde vamos. Pena que nem todas as gotas dão caldo ao rio e se entregam por inteiro à fonte, algumas que ficam nas sombras dos remansos, outras que se lançam n’alguma pedra e se deixam secar.
Mas fui em frente, e naveguei o “Rio”, para no “Pescador” deparar o “Homem”. Não temo arriscar, autorizado pela sentença de que a poesia pertence ao leitor: ainda que pelo extinto animal de preservação da espécie, a dedicação do homem à sua prole é talvez o seu maior elo com a Criação (ou com a evolução), o que me conduz à conclusão de o pescador foi pescado, fincado nas barrancas do rio, para ali adotar “o porto de sua vida”: São Francisco.
Nos segundo, terceiro e quarto portos, deparei com temas recorrentes de minha infância, pois fui expectador, atoe e, principalmente, personagem (ainda que figurante) da vida folclórica de São Francisco, em plena efervescência na década de 60 (e início da de 70), antes do infeliz advento da deusa TV.
Mas foi no “Boi-de-Reis” que quedei tempo maior, para ler, reler, sentir… E quase me senti criança de novo, ao declamar, cantando. “Todo mundo me dizia…”. Foi então que percebi: ora, que tipo de poesia é esta que me coloca no palco dos acontecimentos? Li mais uma vez e reparei no estilo, quase jornalístico, nos detalhes narrativos do que de fato é o Boi-de-Reis. Quando já achava que tinha encontrado uma definição para a narrativa, tive que descarta-la, pois em regra o texto jornalístico é feito para informar e não para emocionar. Como estava informado e emocionado, concluo: o estilo mais uma fez é euclidiano, o que há de mais preciso no detalhamento das coisas do Sertão.
No quinto porto, as recorrentes lembranças das tralhas que sempre estiveram no caminhão de mudanças (que saudades da Cara de Barro Amarela!), que muitas vezes critiquei, tocam em mim o gosto despertado pela arte popular de minha terra, em especial as peças do Mestre Minervino que com orgulho coleciono (e até exponho, pois sei lá por quais estantes anda a minha Viola!).
No sexto porto, encontro identificação com todas as iguarias de minha terra, pois “Farinha” com “Rapadura” sempre comi (e sempre me lembrarão meu avô); por requeijão tenho paixão (derretido/a); seguioso sempre estive pelo buriti (desejo!), pelo umbu (maná do Sertão), pelo pequi (sabor do Norte); mas o incrível é que a cachaça só agora me desperta o gosto, como se tardiamente brotada as sementes que assisti os foliões jogarem ao Santo.
No último porto, os caminhos… Para mim, o homem que foi pescador, que fincou raízes, que ensinou e deu vida, aglutinando em torno de si tantas outras gotas ao descer o rio, por mais despretensioso que tenha sido enquanto gota, quando chegar ao mar terá deixado, em cada Porto, a marca indelével de sua existência.
Assim, depois de passar pelos SETE PORTOS, fui dormir. E voltei no tempo, sonhei comigo, meu mano Dudu, de cara suja de barro e voz rouca, dengosa, nos nossos folguedos de criança; com minha mãe, preocupada em nos velar em cada uma das várias casas do nosso Lar. Um detalhe: eu (menino) estava sorrindo…
Pai, Parabéns pela obra!
Do seu filho, Ricardo.
Jan, Rick, Guto e Biel também mandam congratulações e agradecem a dedicatória.

TRIBUTO AO RIO SÃO FRANCISCO






Meu Rio São Francisco,
Rio do santinho irmão das águas,
Do sol, da lua, das flores e dos humildes.
Santinho dos barranqueiros
Bem que me lembro de suas águas claras
Trazendo saudades da Zagaia
Lá dos píncaros da Canastra
E lembranças do cerrado
Das águas brotadas nas locas de buritis
Nas veredas belas como o Éden
Com jeito do dedo de Deus passado.
Lembro-me de suas águas claras e mansas
Correndo na sombra de matas fechadas
A lamber com doçura o capim braço-duro
Que forrava e segurava o barranco
E ficava a assuntar as galhas da ingazeira
Agitadas com suavidade cantando na manhã.
Levantado o irmão sol
Elas refletiam as flores vermelhas do pajeú.
Eu bem me lembro de suas águas claras
Apinhadas de ariscas piabinhas
Beliscadeiras dos pés das lavadeiras
Que nas pedras lisas batiam roupa e contavam causos.
E a espuma branca beijando as praias
Banhando os pés de melancia da coroa
De onde saía o doce fruto desejo do mestre Saul.
Meu rio São Francisco
Berço da Iara bela de olhos e cabelos verdes
Reino do surubim de cabelo guardião do palácio encantado
Rio que esconde nos esconsos profundos
O caboclo d´água, compadre dos pescadores.
Lembro-me do rio das águas fartas e profundas
Por onde deslizavam as barcaças
Levando fincada na proa o mistério
A garantia da boa viagem – a carranca.
Rio caminho dos belos vapores
Apitando saudades em cada porto.
Rio São Francisco caminho da nossa vida
Por ele nasceu nossa civilização.
Nele cresceu e vive nossa civilização
Rio São Francisco onde deita nossa alma
Assim como inspirado cantou o mestre Saul.
Lendas, mitos, histórias, vida vivida
O nosso São Francisco. A nossa vida
Hoje, querido rio,
O que fizeram com seu corpo?
O que fizeram com suas águas?
Você agoniza, a gente sente.
As águas claras, mansas e doces
Foram cobertas de espesso verde.
Não que seja feio o verde,
Mas não este verde que cobre seu leito:
Grosso como uma gosma
Fétido como carniça intolerável.
Nauseabundo cheiro da morte
Que inunda os lares barranqueiros.
Morte aos peixes! Decretaram.
E os peixes morreram aos milhares
Surubins erados de tamanho descomunal
Só vistos nas outrora em grandes pescarias.
Foram retirados de suas cavernas para morrer.
Dourados, sem brilho, boiando na água negra,
Curimatã e até mesmo o pacomã.
A morte corre em suas águas
Silenciosa e feia, onde tudo era vida e belo.
Noraldino Lima, Manoel Ambrósio, Elísio Horbilon
De onde estejam, olhando rio, acudam-nos.
Como cantar o Rio e o barranqueiro?
Qual história nos resta?
Saul Martins, Domingos Diniz, Ivo das Chagas,
Mestre Minervino, estamos emudecidos.
Não se canta o lundu nem dança o quatro
O Rio Abaixo desafinou.
A morte nos surpreende.
São Francisco, querido São Francisco
Rio do Santinho das águas.
O que podemos lhe dar no seu aniversário?
– Ironia, rio, falar em aniversário
Se o descobrindo o homem escreveu seu epitáfio.
O que podemos passar às futuras gerações?
E tem mais ironia, Rio. E que ironia:
E ainda assim, com tanto desprezo,
Querem levar a lama negra, o lodo verde
A fétida água que resta, para o Nordeste.
Aos pobres irmãos nordestinos esta herança.
Hoje, o barranqueiro não pode pôr a mão em suas águas.
Não pode, ao modo antigo, tomar água no cucuruco do chapéu
Ou na concha das mãos
Se o fizer, é advertido: pode adoecer ou morrer.
Diz o governo que sua água natural é imprópria para consumir
Até para os bichos, Rio. Até para eles.
Meu rio, imagina só:
O barranqueiro só pode tomar sua água se tratada.
Então você está mesmo doente e só dão o atestado.
Nós lamentamos e choramos.
Onde temos nossa alma
Vamos consumir o nosso corpo.
Vamos buscar longe Castro Alves para evocar de novo:
Deus, ó Deus, onde estais que não nos acode e salva
Nós morremos. Nosso rio morre
E os homens senhores de hoje vergateam nossa alma
Mudos se fazem. Nada veem.
Rio São Francisco, perdão
E uma lágrima rola, vinda da alma,
Você não merece tanto desprezo
Porque tanto nos dá – a vida.
                                                        João Naves de Melo – 04.10.2007

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