segunda-feira, 31 de julho de 2017

O HOMEM E SUAS TEMPESTADES




PREFÁCIO

Poemas, contos, crônicas e causos enlaçados... Eis o livro! Tão cobrado ao longo de mais de vinte anos, tão expressivo de cada momento! Ritmo e barulho das águas do Velho Chico embalam as palavras, as pausas, o dizer... na familiaridade dos versos, na intimidade da prosa, na naturalidade própria dos inspirados.

Já passava da hora de se verbalizar as mensagens poéticas do dia-a-dia do autor. Percebia-se nele um poder contido, mas impaciente por se revelar. E tudo explodiu em sete cantos, visão cabalística, verdadeiro toque místico na arte da expressão, na prosa descontraída, nas preocupações sociais pertinentes no seu caminhar. Abriu-se a alma.

O leitor vai se sentir transportado nas asas da poetização e no sabor da cumplicidade, a um mundo encantado/encantador que tudo tem de real, visitando o tempo passado e retomando lembranças que precisam ser presentes.

Pessoas, rio, sonho, ilusão, devaneios, paixão, colheita, dualismo, fuga, rumos, revolta, fome, folias, inconformismo, expoentes do bem e do mal vestidos nos retalhos, retratos e tipos dão vida ao universo poético em mensagens depuradas, que enobrecem a literatura da nossa gente e dos nossos costumes barranqueiros.

As idéias transitam pelo pensar alto e intenso do autor e fazem fluir a brisa que não pode faltar à vida. São fragmentos de dores guardadas, de emoções vividas, de sonhos delineados, de esperança esculpida.

Eis o livro permeando fantasia e realidade, extraído do caminho do autor, da sua fala cotidiana, do seu respirar...

Eis o livro que fez eclodir a liberdade do pensamento barranqueiro ávido por permitir que sua poesia arrancasse pedaços do fundo de uma ilimitada sensibilidade e de um imensurável anseio.

Raízes trançadas, férteis, promissoras amarram prosa e verso numa ligação obstinada com os elos mais fortes de um tempo lindamente vivido com o tempo tão pronto para se viver!

Os amigos comemoram, felizes, o livro!

Os leitores vão se deliciar com o estilo leve, solto, envolto na mágica das palavras e na lucidez das idéias. Valorizada a prosa, versificadas as mensagens, poetizada a vida, eis o livro!

JOÃO NAVES DE MELO nos presenteia e se revela. Existe nele mais que poesia e emoção. É o próprio ser que exala a arte na vibração das palavras, e encandeia o tempo, transcende a paisagem humana e social, enleva o espírito na vida dos versos, na cadência gostosa da prosa, da linha do tempo, nos retratos da vida.
As palavras dançam, fluem vazam o pensamento, transbordam idéias, sacodem lembranças, atenuam dores, adubam a saudade do que foi e do que poderia ter sido, crivam o presente de reminiscências que não podem se esvair no vento. O mergulho é total.

Para mais de vinte anos da pergunta “Cadê o livro”?, a resposta, afinal:

Eis o livro! “O HOMEM E SUAS TEMPESTADES”.

E nós agradecemos!

Irene Veloso Gangana
Maio/97


ANUNCIAÇÃO

Não é que não fosse tentado contar meus causos. Segurei, por relutância, de imaginar, aqui do meu canto, se teriam serventia. Coisas lindas, de arrepiar o pêlo e tremer o coração são escritas por aí. O que eu tinha? Desse modo fiquei embotado, desde as eras de 60/70, reunindo escritos. Deles, alguns eram lidos e até mereciam agrados, como da companheira de jornalismo, Irene, então só Veloso, com seu noivo Élcio - moravam em Belo Horizonte. Por bondade amiga, escreviam ou comentavam, quando encontrávamos as vistas, os poemas que experimentavam nas páginas do SF - O Jornal de São Francisco. Veio o mano-poeta-sensibilidade, Fernando Rubinger, e aqui ficou tempos com a gente, catando seixos no Velho Chico e ajuntando acontecências. Deu que o dia ele chegou com um maço de papéis e me mostrou um resumo do que assuntara das minhas pobres poesias. Foi direto: “tem que publicar um livro”, e escolheu logo o nome - O HOMEM E SUAS TEMPESTADES. Até gostei, pois a gente vivia muitas tempestades àquele tempo, em que briquitava, sem alegria, contra o que se via e queria rebater escrevendo nas entrelinhas. Rubinger voou e o pacote foi para a gaveta. Passaram esquecidos muitos anos. Num certo dia, cuidando da faxina em que se livra de muitos papéis velhos, puídos, cheirando a mofo, exalando poeira, a caminho do fogo, retenho-me numa carta de Rubinger. Tava lá, escrito no seu jeito poético e sensível, para Dona Vilma: “...e o joão, como vai o livro? já começou? olha lá: só quero ver você cair fora, viu? promessa é promessa. e você tem que cumpri-la, já antevejo o livro na minha mesa “O HOMEM E SUAS TEMPESTADES” de joão naves de melo. são francisco”. Era agosto de 1970. Arrepie-me e até achei ser factível enfrentar o compromisso. Esbarrei de novo na relutância - vai valer pra quê? Marco Aurélio Ferreira rebrota o assunto numa reunião de Rotary e os companheiros dão força, reforçando o ultimato. Cresceu coragem. Busquei, querendo coragem, as observações de minha filha Vilma Beatriz, ao ler os trabalhos que lhe mostrava - “você precisa publicar essas coisas...”. Foi o sacudir dos meus cismejos. Um livro tem muitos compromissos - a satisfação de quem escreve, mas do outro lado, com maior importância, a satisfação de quem vai lê-lo. Se não acrescentar nada, se não contribuir com alguma coisa, não significa nada. Melhor seria se consumir, como antes, nas folhas puídas. Subiu coragem, enfim, sem vaidade, que não poderia estar de tudo tão ruim e que tinha até mesmo um mangote de leitores. Meus escritos tinham algum valor para eles. Como são pessoas sensíveis e bondosas, porém sinceras e honestas, deu para assumir o compromisso e, assim, homenageá-las. Mantive o título original e a capa (de Márcio Almeida, companheiro de jornadas poéticas) em homenagem ao meu amigo Rubinger. De princípio, num esquema montado pelo Rubinger, o livro se dividia em poemas formais, concretos, intimistas, sociais, prosaicos e satíricos, todos de uma época. Com o passar dos anos, outros trabalhos foram reunidos, de publicações no São Francisco - contos e crônicas que mostram algumas facetas da vida são-franciscana. Se resume num registro de época - 60-70 -, com rescaldo dos tempos atuais.

Rubinger, Irene, Beatriz, amigos, eis o livro.


I POEMAS FORMAIS

Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará a sua forma definitiva e concentrada
no espaço.

Carlos Drummond de Andrade


Minha Vida / Você é Tudo / Fossa

Rio em Tempo de F / Destruição / Perfil Morto

Instinto / Roma Antiga / Calígula / Judas

Poema Riscado



MINHA VIDA




VOCÊ É TUDO


P A I S A G E M P A I S A G E M


celeste glacial terrena oceânica


p a r a d i s í a c a

meu pensamento está em tudo que vejo


v
o
l
t
a
d
o

pa
r
a

você


FOSSA

na estrada um tro
p
e
ç
o
CHÃO
e
r
g
u
e
r e caminhar reto procuro e d
e
s
ç
você é a
F

O

S

S

A



RIO EM TEMPO DE F


fio fino
filete frio formoso
frágil fontainha
fluvial furtou fontes fortificou-se fluiu
fendedor facultoso fura fervedor funil

fachudo famigerado faceia fundos fabricando fatos
farofa farnéis fardagem fardas farrapos fantasia
faveiro faxineiro feiticeiro fatífero fome
fazendas flabelos faladeiras faisqueiros fanáticos

formação fúlvida
FEBO

f
o
r
a

fora

FOZ



DESTRUI(ÇÃO)R

amputar as mãos
(dopa) das carícias
irreais
vazar os olhos
(meta) morfoseados
na fantasia
mutilar o corpo
(endeusa) do inseto
voraz
amordaçar o sorriso
(conquista) dor do mísero
pedinte

queimar a sombra
(liberta)ação
final 


PERFIL MORTO

neo/banda
do fausto/fim
tricotomia óssea
fosso cavernoso
(de) composto
osso/ângulo
processo final
processo/terra
desnatura
irracional/ângulo
desligamento total
alma/transfinito
osso
perfil/morto



I N S T I N T O 


ninfa

larva OVO borboleta

amor comida

os átomos também amam


homem

animal VIDA racional

amor comida

todos amam na terra


ROMA ANTIGA




R A R O

A M O R

R O M A

O R A R



C A L Í G U L A

D
A
S
as trevas vomitam calígula
E
N
T
R
A
N
H
A
S
quinta besta apocalíptica
D
O
S
o pescoço ao fio da lâmina
H
O
M
E
N
S
de quem dele rir
A
nas mesadas de taças de ouro
T
O
R
M
E
N
T
A
ou massacrados por incitatus

CALÍGULA VOLTOU DAS TREVAS


OS JUDAS

cordas
cordas
cordas
mil cordas
para cobrar as trintas moedas
dos judas de hoje


fogo
fogo
fogo
mil fogueiras
para queimar os lábios
dos judas de hoje


bombas
bombas
bombas
mil bombas
para explodir as cabeças
dos iscariotes de hoje


versos
versos
versos
mil versos
para contar a história
dos ambiciosos de hoje


cuidado
cuidado
cuidado
mil cuidados
com herdeiros de judas
que queimam judas


POEMA RISCADO




II DO INCONFORMISMO


Moço, me dá uma esmolinha, pelo amor de Deus!

Do esquecido



Estrada Branca / Rumos / Revolta contra a Fome

Êxodo / Ruminar a Vida / Semana Verde / Balada

Colheita / Homem-Carvão / A Um Menino

Desencanto / Varredeiras / Refletir



ESTRADA BRANCA

eu queria uma estrada sem fim
toda branca para caminhar esquecido
na asa do vento sem imaginar
que o tempo corria no mundo


correria no dorso do imponderável
sem ontem hoje amanhã
sem expressão de coisas aderentes
apontando meu passo


tentei essa estrada meta/física
para ficar perdido na dor/clan
destina que viajou comigo na noite
e parei num pondo numerado da vida


não sendo só no mundo voltei
às pedras negras do caminho
para sentir no crânio como brasa
a ira/histérica do mal que fugia


RUMOS

não há escolha no caminho
dos pontos que giram
na retração que fundem rotas
para esconder a porta do amanhã


os rumos já não existem
quando o homem gira
levado pelo encanto
e se esquece do amanhã


as rotas giram encantadas
o homem é posto no quarto escuro
não deve ver as estrelas
e se guiar para o amanhã


e as rotas giram
vão bitolando as idéias
não há escolha do caminho
e não se pode beber cicuta


REVOLTA CONTRA A FOME

existências de migalhas
pitadas de fumo de rolo
goles de água poluída
e a fome abrindo cavernas


laboratório ambulante...


o homem se enrosca na sorte
cobre os ossos pontudos
com a pele avelada
e a fome roncando nas cavernas


nenhum adjutório....


não existe tempo nem sorte
a vida é papel em branco
sem impressões
só fome doendo nas cavernas


nem risos nem lágrimas....


de repente o homem se arretou
num esforço ele grita
supera a dor absurda
come a fome... e suspira aliviado



ÊXODO

a cada ano deita-se o pó
mergulha desesperado na miragem
que dá a uma existência miserável
as falsas alegrias da salvação


era após era colhe o desencanto
conta mais filhos para a herança do nada
vê brilhando no céu azul seu algodão
e na terra nuvens de insetos vorazes


as profecias infalíveis queimam-lhe a língua
os sonhos queimam-se no fogo
soprado da terra em vez da chuva
e a fome cresce como um monstro insaciável


são paulo são paulo faísca o cérebro
o homem vê uma miragem fantástica
entrega os alqueires da dor/sonhos
amarra as trouxas e arrasta a família: êxodo.
.
.
o êxodo
é o êxito
DA FOME?


RUMINAR A VIDA

a noite nem estava muito quente mas ao apagar a luz as muriçocas baixaram como bombas do vietnã e cada ferrada queimava como fogo e o jeito foi acender a luz e começou fazer calor e nem banho pude tomar pois faz tempo que nem água tem na caixa que já está trincando e de repente fiquei ruminando a vida sem parar e os fantasmas rondaram no inquietante da noite do baile da muriçocas e as contas do banco passaram num relance assustando e imaginei o que fiz o que não fiz e o que era preciso fazer e a menina tossindo no canto do berço e o corpo grudado então pensei ainda acerto na loteria mas só faço quatro pontos e pensei mais amanhã me vingo desta muriçocas pois a gente tem sempre o amanhã para resolver as coisas e até as contas do banco também amanhã se resolve mas será porque as coisas andam tão difíceis até o rio está no casco tudo está secando a vida e tudo parece que soltaram sete vacas magras mas a gente amanhã desconta puxa estou ruminando tanta coisa que enfezo com essa besteira de viver ô caetano canta aí o navegar é preciso viver não é preciso e já é quase dia e já não posso dormir mas amanhã eu durmo se não tiver de ruminar outra vez a vida mas navegar é preciso viver não é preciso e eu posso ter outro destino de uma hora para outra e navegar sem ruminar nada e sem precisar dormir e...


SEMANA VERDE

estão vendendo esperança
quem vai comprar
) na cidade morreu uma mulher
tuberculose galopante estão dizendo
amanhã os filhos vão comprar esperança
que é quase nada (


sete dias verdes num cartão
e o treze vem disfarçado em sorte
) não há pão na mesa do menino
mas a esperança alimenta
a comida farta do verde
o cartão barato (


criaram o ópio verde
de repente todos sonham ser rei
por sete dias navegam em barcos
por onde houver mar
) continuam tão vassalos
do que pode ser rei (


um reino em sete dias
ou o mundo até desenovelar a vida
) estão comprando esperança
para viver e sonhar sete dias (
os fantasmas estão soltos nas esquinas
comprando esperança/vida/semana


BALADA

fogos estouram no céu azul
da tarde que cai
e o sol é sanguíneo
e a primeira cigarra canta
canta cumprido e triste
a desolação do som do mundo


fogos cigarras azul sol estrelas
na tarde que cai
é o canto da vida de cada um
e em pouco não existe mais festa
em muitos corações fica o pranto
que a dor vive muito mais


e o mundo silencia num desencanto
tiras negras cobrem a terra
os risos fogem dos lábios fartos
fica o canto comprido da cigarra
companheira inseparável da tarde
quando há uma mágoa para se viver


COLHEITA

já no tempo de caminhar pela seara
e colher os frutos maduros
o vendaval chegou de sopro
e tombou as plantas da terra em cama


quis salvar as sementes coloridas
para reconstruir a vida no campo 
mas a chuva caiu de negro
cobrindo a terra levando os frutos


volto outra vez para o trato da terra 
com a esperança de quem crê na vida
mas os campos têm sebes de espinhos
e os chacais rondam vorazes os limites


devo buscar mais além outra planície
onde possa lançar as sementes do amor
e sob o arco-íris da chuva mansa que vem
reiniciar a vida que me foi negada


HOMEM/CARVÃO

Não, não é o “gerais onde o boi berra”, das veredas agraciadas de araras. Não assobiam os flabelos dos buritis nem floresce o pequizeiro; sertão inóspito de fumaça molhada fedida; uma trilha entre tocos e a areia amarela rasgando o mato com veias desembocando em cucurucos que vomitam fagulhas e rolos de fumaça numa praça suja de preto. Tudo preto: os minguados paus tortos, o mato ralo, a areia e do que parece ser gente só se vê riscos brancos dos dentes e o branco dos olhos. Homem esquálido, mulher pendurada de bacuris barrigudinhos - galhinhos de pau em pé, balançando no vento. Um ranchinho de palha, tapera, sem janelas - só a entrada, sempre escancarada. Lá dentro o chiado imitando rato que dá sinal de vida, teimando ficar no mundo, chorando a teta murcha. O homem/carvão e seu clã errante, de onde tem pau para alimentar forno, fazer carvão para fumaça nas grandes chaminés das siderúrgicas vomitadeiras de ferro e aço de patrões que nunca pisaram o sertão, mas desfilam os carrões, disputam os céus com seus grandes pássaros, singram mares azuis e podem escolher o que comer com fastio. O homem/carvão come com voracidade feijão quebradinho com farinha e, em dias especiais, quando o administrador vai à cidade, tem sebo para encher a panela e lamber os beiços - fica com o satisfeito cheio e vai arrotar o dia todo, empanturrado. No meio da praça, um tambor guarda o resto de água quente, lodosa, viveiro de larvas de mosquitos se metamorfoseando - os meninos brincam com as cabecinhas de prego que descem depois goela abaixo. Banhar só quando é possível uma ida ao córrego mais próximo - e esse próximo é a légua de beiço. Semana atrás de semana só tem dia preto, nunca acontece o vermelho - é faina de empreito ou produção, pois assim não carece de vigia o tempo todo. No apurar das contas ele sempre está devendo por causa da farinha, do sebo e da cachaça e tem até umas contas de chegar que ele não entende nunca. Fica tudo para o próximo empreito e a sua vida, enquanto tiver pau e resto de saúde, vira uma só empreitada. Sua força é tocada a pinga. Parece beber toda pinga desdobrada do mundo - daquela que se jogar nos costados do sapo ele morre sem estrebuchar. Se morre com a barriga estufada o diagnóstico é sempre o mesmo - chistosa. Uma pinga e vão pingando filhos numa sucessão de menos de ano - é para manter a cadeia sucessória da infinita miséria do cerrado, resignação do que se transformou em bicho preto, cara preta, braços pretos, cambitos pretos, costelas pontiagudas pretas, ombros-de-cabide pretos. Só restam as pelotas dos olhos e o que sobrou dos dentes. Não vê o céu nem estrelas, só fumaça molhada e pegajosa. Cospe caldo preto. Ele nem aparece, mas é energia do Brasil que não sabe dele. E bebe pinga, toda pinga do mundo para esquecer ou não pensar que é um homem/carvão que virou bicho e que também é filho de Deus.


A UM MENINO

Pés de Jesus, sem sandálias,
cobertos de cascão, dilacerados.
Cabeça coroada de murros 
do insano pai sempre bêbado
cobrando dinheiro para a pinga 
de cada dia (PAI NOSSO!)


Sem ternura do sussurro materno
- meu filho!
da mãe que foge,
escrava, sem encanto, do macho
que só tem os olhos do medo
para os filhos (AVE-MARIA!).


Não pede, tira.
Não é bobo, engana.
Não sonha, sofre.
Rebelde, quase bandido;
abominado e condenado
sem ter amor, quer-se dele, razão.


Inteligência sagaz, sem futuro.
Dialética da falta de perspectiva
no mundo dos excluídos.
Tem resposta para tudo, menos para a vida
que não a sente sofrida
por ser rebento verde (PEDRA BRUTA).


Sem família e sem teto
se enturma, acostuma com o céu
e aquece o corpo no chão.
Sem um prato, empurra a fome
disfarçando a dor no copo d’água
até roer o pão dormido (MUNDO CÃO)


Abraça a amplidão da pobreza
onde se sente livre
príncipe da ignorância.
Nada entende, nem chora.
Suporta castigos
como sua sina fosse apanhar (MÁRTIR).


Dos olhos tristes, nenhum brilho;
do rosto magro, a máscara da fome
... e vai se distanciando o homem!
Revela dois sonhos, quando fala:
quer uma bicicleta, agora. 
Ser soldado, amanhã (ESPERANÇA)


O que nos reserva a sua desesperança?
Sua vida despedaça-se nas muralhas do egoísmo
como ondas esmigalhadas nas rochas.
Quando ele encarar as portas do mundo,
explodirá com toda frieza e maldade
a sua triste infância, sem alegria e amor (NASCEU?).


DESENCANTO

menino pensou a vida
construindo seu mundo de rei
asas soltas corria o infinito
abrindo caminhos entre estrelas
queria ser
era quantas vezes sonhava
olhos perdidos no perdido
construindo o futuro sem presente
nunca contava o ontem


menino foi esperando
nunca pediu, sonhava
o sol e a lua trocavam de rondas
até que a noite desceu de vez
o menino pisou o pó
quis acordar de repente
mas era tempo de dormir
viu no desencanto de adulto
que os sonhos trombam na vida


VARREDEIRAS

esquálidas figuras negras
se arrastam pela noite
num balé lúgubre
sem música e paixão


num compasso mecânico
empurram e puxam vassouras
pares de sua solidão
varrendo sua própria tristeza


estrela sem brilho
apenas amargam a dor
da fome vizinha
sem pensar o amanhã

a rua é o seu volga
vassouram e vassouram no mesmo ritmo
tendo apenas o céu e o chão
sonhando liberdade


varrem o sujo da cidade
pedem água e café
contando cada noite
para ter as migalhas do mês


todas as noites o mesmo balé
bailarinas rotas e seus pares
esquálidas figuras negras
balançando a desesperança


REFLETIR

eu deveria Senhor chorar
os poucos momentos do meu dia
quando batem à minha porta
com o braço do ódio
e a fome da discórdia


mas não posso
nem devo


na cidade olímpica
morrem inocentes
sangue da juventude
para lavar as diferenças
insaciáveis dos homens


mas não posso
nem devo


no vietnan
as crianças são choças
choram a fome
aninhadas em crateras
das bombas


mas não posso
nem devo


na américa
a pele faz diferença
e semeia-se a dor
nas ruas em chamas


mas não posso
nem devo


a discórdia
alastra como baobás
toma conta do universo
e fere mais do que em mim


mas não posso
nem devo


pois no gólgota
de braços abertos
maior injúria e ódio
voltaram contra Seu filho
e que valho?

hoje senhor
vou refletir
e buscar nas pequenas sobras
força para viver.


III POEMAS INTIMISTAS

Para que tu me oigas 
mis palabras
si adelgan a veces
como las huelas de las gaivotas en las playas.

Pablo Neruda



Viagem no Tempo/ Passagem/Devaneios

De quem Vem / Fuga / Fuga do Amanhã / Outono

Vontade / Sonho / Canto Introvertido

Amadurecer / Poema Latente / Desligar



PASSAGEM NO TEMPO

O tempo passou
trotando na brisa
da saudade
envolvendo meu mundo


Viajou noites
brincando com as estrelas
no giro pelo etéreo
levando fragmentos da vida


Hoje nem diviso
na curva do mundo
onde a brisa
deixou o tempo


E na madrugada nova
vou colher orvalho
e regar a rosa/vida
que ressurgiu em mim.


PASSAGEM


ESPERA
na porta do mundo
no princípio do azul
onde começa a brisa
espera


QUIMERA
dois sóis transpostos
na ilusão da noite
aguardando o amanhã
quimera


MELODIA
na pauta sem linhas
improviso de notas
acidentes distraídos
melodia


PERGUNTA
sem interrogação
reticências infinitas
quebradas numa dor
perguntas


SONHO
contrapondo à realidade
esperança que solta as asas
à porta do mundo
sonho


DEVANEIOS

Construo sonhos de sorrisos
vida de olhos brilhantes
esperança de vozes
saudades de gestos


emolduro quadros
desfio quimeras
amalgo desejos
recalco ciúmes


liberto a imaginação
transpondo sentidos
compondo sinfonias
dançando com as imagens


desvendo caminhos
das cores além de mim
desvivo a fantasia
caminhando em devaneios


DE QUEM VEM

de quem vem há de ser
vem o que vem
eu cansei de pedir
devo navegar só



meu rumo é incerto
vou galopando no vento
ao mar e à terra
sem porto de chegar


vem quem vem que fujo
para não ver o fim do tempo
que busquei como quem vem
de quem vem há de ser


FUGA

vai aí o meu canto
é partido
e você pode até sorrir
esta balada é uma queixa
anticanto
de quem deve fugir


é sem mistério
você sabe
não cantarei mais nada
estes versos estão na garganta
no nó
é a fuga calada


sigo na névoa
com o vento
no caminho incerto
vou mesmo partindo
é a fuga
embora esteja mais perto


FUGA DO AMANHÃ

CAMINHAR a dois sem horizonte
inventando cores no presente
na rota da incerteza imutável
sem o amanhã no pensamento


DEIXAR na areia das praias os pés
nos rastros das estrelas os olhos
nas rosas da manhã serena as mãos
nos lábios da criança o sorriso


IR no eterno afago sem regresso
como quem vai ao mar ao alvorecer
fazer das noites a eternidade
para nunca ter na vida o amanhã


VONTADE

eu queria ter a liberdade
de depositar os pés além
do pensamento dogmático
e deixar rastros pelos desertos


eu queria ter asas até
e deixar a terra dura o pó
cortando nuvens como jato
compondo uma canção de saudade


eu queria ter o pensamento solto
na ignorância das coisas
desconhecer conceitos
ser criança mais uma vez


eu queria ter o encanto próprio
da cor música palavra
objeto sentido ou desligado
a vida antes de partir


SONHO

sonho repleto
de sorrisos olhos
e mãos semeando
saudade infinita


quimera na viagem
do espírito vagante
galopando o vento
rumo ao infinito


transe constante
viajando nos lábios
de crianças
nos olhos do poeta


viagem nas cores
do prisma real
queda da pedra/vida
uma noite sem conto


CANTO INTROVERTIDO

na rua
onde corre o asfalto
deixo a marca dos pés
viajores de desencontros
para testemunhar
idas e vindas
pelas sombras
do mundo de todos
de um
que no todo não é
mais do que um


eu vou cantar
nas galhas floradas
que o pó cobriu
onde pássaros não pousam
para festejar as madrugadas
tão vazias
como as noites que chegam
sem arrulhos
algazarra/poesia
que cobrem a dor
de um empedernido
meio às sombras


eu vou pelas voltas dadas
cantar numa trilha horizontal
com a alma buscando
a verticalidade
vou cantar
para guardar a música que levo em mim
de quando nasci até o encantamento
e que pássaro algum cantou
sigo


AMADURECER

Você deve esperar o cair das folhas
o florescer da macieira
o amadurecer da paciência.
Os frios ventos das madrugadas
trazendo o perfume da vida
restituirão os encantos dos sonhos
depositados no plantio.


POEMA LATENTE

Tenho um poema dormindo
preso nas entranhas
nas paredes escuras dos meus ais,
como um boi bravo, espumando,
investindo contra as cercas
querendo sair
para não voltar nunca mais.


DESLIGAR

voltou a música do espaço
percorrendo minhas angústias
reinventando saudades indefinidas
e a vontade de também partir


e ser música ou fumaça no azul
pairando sobre as dúvidas
livre das tentações e fúrias
da conquista do pão de cada dia


ser pássaro na rota fantasmaginária
num império de montanhas brancas
lagos azuis onde purificar é possível
espírito eclipsado


como voltou a música no espaço
posso me desligar mais e subir
...............................................
como conforta ter algo que se perdeu.


IV POEMAS/PROCESSOS

Não há poesia/processo. O que há é o processo poema,
porque o que é produto é o poema.
Quem encerra o processo é o poema.

Wlademir Dias Pino



Brasília / O Homem e seus Mundos /
A Vida / A Fome 



BRASÍLIA




O HOMEM E SEUS DOIS MUNDOS




A VIDA




A FOME




V CAUSOS


Companheiro, é a minha vez;
me ajude um bocadinho!


Catira urucuiana


Folia-de-Reis / Enterro /Imperador Lúcio

A Novilha / Pescaria/ Caçada / São João-Mamede e Cavalos



FOLIA-DE-REIS

As caixas gemiam surdamente, solenes, fazendo fundo para os acordes melífluos das rabecas que inundavam o ar, acompanhadas de graves violões e lépidos volteios das violas. Ao fundo, quase imperceptíveis, os titilitar do reco-reco e tampinhas do pandeiro.

“Deus vos salve, casa santa/ onde Deus fez a morada...”

Desponta o grupo de foliões, na penumbra da noite. Chapéus displicentemente caídos na testa; toalhas brancas, bordadas com figuras de aves e bichos, descendo do pescoço, em duas tiras, até a cintura e os olhos pesados do sono guardado. Respeitosos, como chegassem à própria manjedoura, em Belém, aos pés do Menino-Jesus. Cerram os olhos e cantam na visitação que lembra os Reis Magos, iluminados pela Estrela Guia. Soa a primeira voz que narra o nascimento do menino, acompanhada pela segunda, mais contida, e, depois todos foliões, de vozes roucas, repetem o verso com toda força, fechando com a oitava – um doce lamento que brota do mais profundo da alma -, querendo que seu hino acorde o pequeno e adorado infante. Aquele canto superposto, a oitava, de uma nota só, profundo, onírico, invade a alma e nos leva a viajar nas recordações pelo tempo corrido. Rebrota a infância trazendo imagens familiares, os amigos, as vielas, praças, casebres iluminados por candeeiros, onde nossos pés visitaram e os corações palpitaram de emoção pueril. O olfato fica ouriçado e dá para sentir o cheiro gostoso das iguarias, à imagem evocada das mesas repletas de biscoitos de polvilho, broas de milho, pães de queijo, café-com-leite, pés-de-moleque e tantas iguarias. A orelha até esquenta, aparecendo a mãe muito brava diante das peraltices do moleque... e os homens sérios turrando. É um terno telúrico, que nos leva a aprofundar as raízes na própria vida, sentir o chão, os caminhos passados, o céu apinhado de estrelas, o perfume inebriante da dama-da-noite, o cheiro de terra molhada abrindo-se, generosa, ao vôo das mariposas, deixando fugir, também as tanajuras com suas bundinhas cobiçadas; os besouros, de toda cor e tamanho, sendo o mais apreciado, pelos meninos, o de chifres que era transformado em boi nos carrinhos de sabugo. Evoca-se, com ternura e saudade, a vida bucólica em que escorria solta a infância, quando a vida/cidade ainda se arrastava.
Saudação feita, vem o agrado ao dono da casa: uma catira, a dança do quatro - quando os homens revelam sua habilidade motora, trocando de lugares, brandinho instrumentos que passam zunindo rentes às suas cabeças, enquanto desfiam histórias locais, quase sempre de bichos e paixão - ou o lundu, com a picardia e engodo dos casais, sapateando, rodopiando enquanto cantam cantigas hilariantes e picantes, puxadas por repiques alucinados das caixas e a marcação dengosa das violas, tudo cadenciado com palmas bem fortes. É quando a alma se abre de vez para extravasar toda a alegria da noite/folia.
Um golinho de pinga, uns biscoitos, um naquinho de prosa e lá se despedem os foliões pinicando, marotamente, malemolentes, as violas - apenas acordes perdidos, dolentes e apaixonados. E vão desaparecendo na escuridão em busca de outra manjedoura, pois Jesus nasce em todos os lares.
No relicário da saudade desfilam velhos e tradicionais foliões, entre eles o “seu”Lúcio do bairro do Quebra, nas barrancas do São Francisco, empunhando a bandeira que carregou, como Imperador, por mais de trinta anos - até morrer - para cumprir promessa. Vai-se matando saudades, enquanto passam os foliões seguindo a tradição, ano após anos: Locha, sempre tão inventivo e exímio dançador, Adão Barbeiro - o rei da dança do facão e da garrafa - Pedro-Duro - dos poucos conhecidos com coragem para pinicar o Rio-Abaixo, depois de muita adulação e agrados -, Marciano, Vicente Quiabo e tantos outros. Carregam na sua jornada a história de um povo.
Dá para ouvir, um pouquinho da sua glosa:
“Gosto da folia/Não é da conta de ninguém/ Lá em casa não tem galinha/ Na folia em sei que tem...”


O ENTERRO

O enterro seguia por uma trilha estreita a caminho do cemitério que os moradores do povoado construíram nas fraldas da Serra da Conceição, no Urucuia. Por superstição ou exagero de acreditar no crescimento do povoado recém criado, cuidaram de localizar o cemitério bem distante.
Hirto e torto como um anzol, numa rede, era transportado o corpo de Avelino Baiano, um sertanejo curtido nos gerais e vãos do sertão urucuiano que passara os últimos anos de sua vida ali, às margens do sinuoso ribeirão da Conceição. Homem acostumado à dura faina do eito do feijão, milho e arroz; que se dobrava, sem reclamar, nos roçados das mangas praguejadas de alagadiços e esperto no pêlo de burro bravo. Como cativo, boa parte de seu tempo ele servia aos proprietários da fazenda onde, por último, assentara o seu ranchinho de palha como serrador de madeira. Isto ele fazia com seu inseparável companheiro, o João Baiano. Tempos atrás, ali mesmo, por aquela estrada, sempre eram vistos, os dois, cantarolando, conversando e tomando goles de pinga, enquanto desmanchavam toras de jatobá, pau d’arco, cedro, imburana e o que mais fosse preciso para dar vida ao novo povoado. Num descampado no meio das vaquetas, debaixo de um frondoso pequizeiro, eles tinham armado o jirau, onde colocavam as toras. Encarapitado na tora, o Avelino, mãos firmes no cabo de enorme serrotão, seguia o risco aonde o serrote ia devorando a madeira. Embaixo o João, puxando e empurrando o serrotão, recebendo na cara a serralha, cuidando para dar ritmo ao movimento a modo evitar que se embuchassem os dentes da lâmina. Das toras brutas, eles desdobravam pranchões, tábuas e caibros com rara maestria. Trabalhador o Avelino era demais; amante da chachaça muito mais ainda. Aliás, os dois Baianos inseparáveis. Não tinha tarde de folga para a bebida - eles sempre apareciam com os olhos em brasa, contando suas vantagens, cantarolando e exalando álcool pelos poros.
Os anos passaram e a vida no sertão que é dura, não prolonga muito, ainda mais quando tão molhada de cachaça.
Chegou, pois, o dia de Avelino Baiano. Nem tão velho era ele. Devia regular de 40 para 50 anos. Morreu Avelino Baiano sem adoecer. Como era costume na região, os mortos sem posses eram conduzidos à última morada em redes de buriti. Um varejão de pau pereiro era trespassado nos punhos da rede e cada ponta se apoiava nos ombros dos carregadores. Assim era levado o Avelino para descanso eterno. Ironia. Ele passou a vida toda serrando madeira para os outros e não tinha sequer, na sua morte, um caixãozinho de cedro. O enterro seguia arrastado. As rezadeiras desfiavam ladainhas - rezadas ou cantadas, num coro lúgubre que entristecia até os bichos.
A estrada cortava um mato ralo, onde pés de pequi, tinguis, baru, e pau d’óleo pontificavam meio à vaqueta. A poeira fina subia levantada pelo chap-chap das precatas de couro. O cortejo se arrastava. De repente os carregadores soltaram um gemido e se estancaram. O defunto pesou o dobro, até mais do dobro. Chamaram outros caboclos para um adjutório. Nada. Nem um passo foi dado à frente. O peso do defunto redobrou. Arrearam a rede com o corpo do Avelino no leito de areia. Espanto! Foi aí que perceberam: o cortejo estava debaixo do tinguizeiro onde Avelino passou parte de sua vida serrando madeira. Sustou o espanto. No sertão não se surpreende com essas coisas. Não há mistério, são acontecências da vida (ou da morte?) e costumes vividos por seus avoengos. Ali tudo pode acontecer e tudo é natural. Esperaram apenas, pois paciência é riqueza do sertanejo.
Uma rezadeira, então, se destacou do grupo adentrando-se no mato. Pouco depois voltou de lá trazendo um molhe de Cipó-de-São-João. Trançou uma corda, aproximou do corpo de Avelino, benzou-o com rezas ininteligíveis, fez sinais no ar e sobre o defunto e, sem perder mais tempo, desferiu-lhe uma verdadeira tunda. Terminada a macabra sessão, cingiu a cintura de Avelino com o que sobrou do cipó, a modo do “cordão de São Francisco de Assis”, e ordenou sem qualquer emoção: “Toca o enterro...” O corpo do Avelino ficou leve como uma pluma.
João Baiano, esse tempo todo gemido de dor pela perda do amigo e encharcado de pinga, a tudo seguia de soslaio - nada falava, nada fazia.
O cortejo chegou, enfim, ao cemitério. Eram poucas as sepulturas, de novo que era. A cova de Avelino estava aberta, com a bocarra esperando seu corpo hirto: sete palmos de fundura e, lá embaixo, uma gaveta cavada na própria terra, numa das laterais, bem rente à base. O corpo seria ali descansado e, depois, a gaveta seria fechada com achas de aroeira, bem emparelhadas e fincadas no chão. Era o costume da região para evitar que o tatu papa-defunto, encontrando a facilidade da terra revolvida se fartasse das carnes mortas antes da mãe-terra.

Os carregadores se preparam para descer a rede com o corpo do Avelino encurvado dentro, quando se ouviu, pela primeira vez, a voz de João Baiano: - “Isbarra aí!”. Ordenou, enquanto se encaminhava para perto do corpo inerte do companheiro. Tomou-lhe a cabeça com a mão esquerda, forçando-a para cima. Meteu a mão no embornal de couro de veado, retirando dele um litro de pinga. Desarrolhou-o e meteu o gargalho garganta abaixo do amigo defunto, a quem, com os olhos banhados de lágrimas, recitava as últimas palavras:
“Cumpade, promessa é promessa. Nóis combinô qui de nóis o que ficasse vivo derradeiro tinha de dá um litro da branquinha pro que morresse premero, na hora de dá ele pra terra comê. Bebe cumpade, bebe, é da mió. Adispois vem dá meu litro tomém. Entonces, adeus cumpade Avelino! Inté breve!”


IMPERADOR LÚCIO

( Maldição do Rio Abaixo)


Seu Lúcio do Quebra, imperador dos mais famosos de folias-de-reis e de São João, morador do bairro do Quebra, uma ruela bifurcada que se estendia à beira do Rio São Francisco, apinhada de casebres de pescadores e vazanteiros, arregalou os olhos, arreganhou mais ainda os beiços - ele tinha o lábio inferior protuberante, como o botocudo - e começou narrar uma fantástica história, depois de insistentemente provocado.
“De minino eu queria sê tocadô de viola. Achava bonito e dava prestígio com as muié. Pricipiei... De poucos anos já acompanhava folia e tocava nas festa de São Gonçalo e pagode de terreiro. Assucedeu, intão, que conheci seu Mané da Vaqueta. Foi num festa que fui na casa dele, adispois do Boi-Morto. Vi os dedos dele correndo no braço da viola qui nem um raio e os da outra mão pinicando as cordas que gemiam bonito. Fiquei assombrado e morto de inveja. Tocava bonito e bão. A que eu mais gostava mesmo era uma que ele tocava, mas de só de muito em quando. Era uma décima que contava a história e uma muié, um minino e o ‘coisa ruim’. A história era inté gozada, mas a música era muito mió. Chamava ela de Décima do Rio Abaixo. Gostei. Assunta só eu dedilhando aquela décima daquele jeito. Ia ficá falado. Danei apurrinhá ‘seu’ Mané pra ele mi insiná ela. Ele ficava todo de esgueio, mas apurrinhei o tanto que pude, fiquei qui nem muriçoca no pé do ouvido dele. Acabou afroxano. Eu tinha que passá o dia puxando o eito nas roça dele. Quando o sol tombava três-quarto a gente voltava pro rancho e começava tocá. A viola tinha afinação diferençada. As cordas da terça ficavam qui nem as da quinta. Era bonito. A gente ficava ali, sentado nos toco de jabotá, liso de tanto uso, na frente do rancho, até chegá o lusco-fusco, de não vê mais as cordas. Intonce eu vinha pra cidade. Isso levou tempo. Um dia seu Mané falou qui eu tava ficano bom e qui podia solá sozinho. Chegou perto de meus ouvido e falou baixinho, oiando pros lado, ressabiado: - ‘Uncê toma cuidiado, minino. Essa décima num é pra ficá tocando à-toa não. Se tocá muicho chama o ‘o pé redondo’ e isso num é bão, cruz-credo! - fez o siná-da-cruz três veze, se benzeno. Se ocê tocá muicho é fatível dele atendê o chamado e vim fazê trato cuncê’. Assuntei, mas a mode apreciá tanto a cantiga num levei a termo o seu conseio. De uns tempo mais passado, quando voltava da casa dele, ali pelo corredô do Campo de Semente, pertinho da cidade, assucedeu. Vinha caminhano meio sorumbático. A noite tava lusco-fusco - nem claro, nem breu, só com um pedaço de lua caindo pras bando do rio. Deu coceira nos dedos, num arresti. Virei a viola da cacunda pro lado do peito e alisei o braço dela enquanto sentia a cantiga soprano nos meus ouvido qui nem vento manso: “Descendo o rio abaixo, ê!, numa canoa furada; ê! descendo o rio abaixo”. Num teve impeditivo. Fui beliscano, manso e beliscano e num demorou muicho pra boca da viola soltá a cantiga. Parecia um trovão incomodando a noite, mas de beleza só. Fiquei alegre e ligeiro qui nem soim. Aí foi qui me deu um trem ruim. Passou um frio gelado escorreno no espinhaço. O ar tava parado, mas deu um vento que balançô as foia dos ocalipo e das vaqueta da beira do corredô. Uma nuvem preta tampou o resto da lua e meia banda do céu. Pricipiô o frio. Intonce zuô um ridimunho na minha frente. Ficou ali rodano, rodano e zuano inté qui de dentro dele saiu um vozeirão feio, qui nem gritado de dentro de uma loca: - ‘Tô aqui! O que qui ocê qué de mim?’, perguntô. Quase arriei as perna. Fiquei qui nem boi magro na bera do bebedô, istancado, sem podê movê do lugá. Quase moiei as calça. Os dentes de riba batia nos dibaxo qui nem quexada, a mode pensei qui tava tudo quebrano. Inté meus tifuim arribaram na cabeça. Puis espreita. O ridimunho tinha virado um tocão preto, qui nunca vi iguá, nem nas queimada das mata. E de lá veio de novo o vozeirão, aquele ronco de surubim véio: - ‘Tô aqui...’ É ele, pensei tremeno. É o coisa ruim, o danado. Principiei rezá a Ave-Maria, Padre-Nosso, ladainhas e inté o Credo. O trem-ruim já num era um toco, tinha virado um baita de cupim soltando fogo e fumaça pelos buraco. Intonce ainda lembrei qui tinha de rezá o Credo de trais pra frente. Só fiz lembrá, num tinha cuma rezá se num tava cunsiguino nem de frente pra trais. Só me deu de corrê. Possui força num sei de onde e corri qui nem égua do meio dia. Num sei se foi pelo corredô ou pelos meio do alagadiço dos terrenos do dotô Tarciso. Acho qui foi pelos dois, promode quando cheguei no meu casebre, arrebentando a porta no peito, tava com as perna da calça toda borrada de poeira e os braço e camisa rasgado de espinho. Entrei na casa qui nem um raio. Aticei a viola no baú e enfunei os óio debaixo da coberta. Só vi luz no outro dia, com o sole já alto. Só pode qui fiquei dormente o tempo todo. Oiá, fiquei era sem passá no corredô, inté de dia. A viola só muito tempo adispois eu peguei. Foi quando me acudiu a idéia de arrumá um adevogado pra mim adjutorá. Cê sabe, eu chamei, o pé-redondo, a coisa-ruim, intonce tava com pecado e num é qui o danado podia me cobrá adispois e me levá com ele, espetado naquele garfão. Seu Mané e os home do tempo dele contava qui tinha um tá de pato - se chamava o cão, vendia a alma pra ele. Cruz-credo! Intonce lembrei de São João do carneirinho que Jesus gostava muito e inté respeitava. Fiz uma promessa pra ele - enquanto eu fosse vivo ia saí com uma folia em sua honra. Já faz trinta ano qui sô Imperadô de São João e ele é meu adevogado. Assim fico a salvo do coisa-ruim e ajeito meu cantinho no céu...”.

Pouco tempo depois ‘seu’ Lúcio morreu. Até hoje é lembrado como um dos maiores imperadores da folia de São João, o seu advogado. Deve estar tocando viola para o Santo do Carneirinho.


A NOVILHA

Um casal de muitos anos unido, levado pela rabugice da idade, deu de desatar as embiras viajando para a cidade para cuidar do caso com um “dotô adevogado”. Queria coisa simples e ligeira, tudo no acordo, o que agradou ao causídico contratado - separação consensual não oferece problemas, é só assinar o acordo e levar para o juiz homologar. Horizonte claro à frente, mas ele estava constrangido com a situação, pois, conhecia o casal e, por seu gosto, queria vê-lo junto até o fim da vida. A decisão fora tomada de tempo, era mesmo sem volta. Reunidos os papéis, tudo certo, passou-se à elaboração da partilha. Não era muita coisa e isto facilitaria o trabalho, o parco patrimônio não levantaria cobiça, ou “olho grande”. Ledo engano. Foi aí que a coisa pegou de jeito, começando a via-crucis do advogado. A divisão de uma pequena gleba, com um pouco de ajeito, foi até fácil, mas quando chegou aos utensílios e semoventes, incluindo os galináceos, a separação ficou para lá de litigiosa, ou numa situação de pré-combate ferrenho, com o levantar das intransigências e preferências. A divisão dos pratos, garfos e colheres foi um sacrifício, pois queriam os montes iguais e a soma das unidades era ímpar. Nenhum dos dois resolvia ficar com menos. Vieram as galinhas. Confusão maior não era preciso. As danadas das galinhas eram tratadas por nomes, todas relacionadas afetivamente com a mulher que logo anunciou: “a Rosinha num fica sem a eu. Tomém num quero ficá sem a Pretinha. A Pavuna só come mio na minha mão...”. E o enrustido do marido fechou questão, queria de todo modo receber sua parte, na mesma proporção, sem importar com o nome das aves que sequer ele sabia. Pirraça! Passou-se para o gadinho - a encrenca foi muito maior. Nada. A partilha empacara que nem burro teimoso. Não tinha ajeito que resolvesse. O advogado, sem esperança de dar termo à pendenga, quedara-se em sua cadeira. Foi quando lhe ocorreu uma história que ouvira, quando criança: a história de dois burros atrelados no centro de um pátio. Os dois estavam famintos, depois de um dia de muito trabalho. Em dois pontos extremos do pátio, o dono dos animais havia colocado fartos feixes de capim. No meio do terreiro, os dois burros não esperaram muito para matar a fome brava e, cada qual, pela gana natural, de olho grande, buscou o seu monte de capim. Um puxava para um lado e o outro forçava para o outro. Pescoços esticados, bufando, boca espumando, os dois se debatiam com força descomunal, mas não saiam do lugar Passou tempo, até que por lá retornou o dono dos burros que, sem filosofar coisa alguma sobre aquela pendenga, resolveu pelo mais fácil: tangeu os dois para um só monte de capim. Pachorrentos arrastaram os cascos e se fartaram a valer, sacudindo os rabos, abanando os rabos até acabar com um monte e, depois, sem necessidade de outra pendenga, devoraram o outro monte de capim, com a mesma satisfação. O advogado se encontrou na situação: como a figura do tratador, que entende do comportamento dos burros, precisava de alguém que entendesse da psicologia do homem simples do campo - era o juiz de paz, o conciliador, a autoridade mais respeitada do meio rural, o homem que conseguia tirar água de pedra. Lembrou do velho Zica, lá no sertão urucuiano. Homem sereno, paciente, muito justo e o verdadeiro homem da paz. Escreveu-lhe pedindo um adjutório, e ele compareceu, solícito como sempre fora, para dar termo à pendenga. Reuniu-se ao casal, ao lado do advogado e foi, à base da paciência, compondo a partilha. No caso das galinhas conseguiu que a mulher tivesse preferência por suas “meninas”, deixando para o marido os frangos que não careciam de muitos mimos, pois seu fim era mesmo a panela. Do mesmo modo foi com os utensílios, sempre dando à mulher a preferência pelos objetos delicados. O homem runrunava, mas acabava cedendo. Por fim ficou o pequeno rebanho bovino. Aí pegou de novo. Para azarar a partilha sobrava uma novilha. Nada fazia com que um dos dois abrisse mão da novilha. Todo tipo de artimanha foi engendrado, sem êxito. Deu para sentir, no caso, que não era por sentimentalismo e interesse econômico. Era por pirraça, ranço, mesmo. Tinha que pegar em alguma coisa. Foi aí que o velho Zica, com sua invejável e notória paciência, voz mansa e doce, sabedor daquela pirraça fútil do casal já erado, chegou com sua sábia tirada:
“Seu Antônio, vosmicê num qué deixá a novia pra Dª Fia, num é memo?” Seu Antônio concordou. Virando-se para mulher, num gesto que parecia arrastar anos de malemolência, emendou - "Dª Fia, vosmicê num qué deixá a novia pra seu Antônio, num é memo?”. Ela, também, foi afirmativa.
O velho Zica, então, deu a sua sentença, sereníssima e justíssima sentença: - “Acabo aqui com a pendenga de vosmicês. Eu fico com a novilha”.Acharam justa decisão e assinaram o acordo sem discutir


PESCARIA

O rio Urucuia, sonolento, parecia parado, vomitando densa fumaça que se espalhava pelas praias, carrascos e matas que cobriam suas margens sinuosas. Era madrugada. Tantas estrelas tiritavam no céu distante, teto da planície urucuiana, a sumir horizontes. Brilhava mais a Estrela D’Alva, anunciadora das horas para moedores de cana. Quietude tamanha só interrompida de quando em quando pela orquestração sincronizada, dos grilos e sapos, e pelos uivos distantes de cachorros vigiando as palhoças dos sertanejos.
Num remanso, dos tantos que forma o Urucuia, estendia uma imensa praia. Uma tosca barraca de pescadores de fim de semana quebrava a monotonia do areal. Perto dela crepitava uma fogueira tentando vencer o sereno, restinho só de pequenas línguas, quase morrendo, o que produzia uma fumaça tênue que aquecia brandamente uma trempe velha e fazia suar o espeto preso, pelas pontas, a duas forquilhas. À sua volta, algumas esteiras de buriti. O resto da tralha os pescadores, matreiramente amoitaram nos garranchos deixados pela enchente do rio. O urutau gemia na mata...
O ronco de um motor, de repente, assusta o rio e agita os bichos dormentes agasalhados nos ninhos e tocas, que dão o sinal de desagrado. Encosta um barco. Chega mansinho, respeitoso com o rio que só acorda no levantar de pequenas maretas. Descem dois pescadores - Rui e Toninho, do famigerado grupo de pescadores inveterados: Normaldo, Jorge, Agrimar, Zé Flávio, Arruda, Juracy e outros tantos. Tropeçam de sono e sem peixes. Toninho deixa uma vara presa na secretária do barco, linha iscada, sem recolher, balançando no ar, quase ao rés da areia, no encontro dos beijos das águas do rio. Rui atiça o fogo, distraidamente, atirando uns gravetos na chama modorrenta e cai, como morto na esteira. Toninho faz o mesmo. Ficam ali, barriga para cima, olhos entreabertos, teimando com o sono, a contar estrelas. Vem o sono...
De repente, um enorme estalido que se ampliou no espelho do rio e rebateu no carrasco, tudo em razão da calada da noite. Virou um assobio, sibilino e prolongado. Rui arregalou os olhos, assustado. Toninho pôs-se de pé. Atalaia. O som vinha da direção do barco e para lá acudiu o Rui, percebendo que o molinete do Toninho zunia destrambelhadamente. A linha corria e corria sem parar. Não era outra coisa pensou ele, gritando para o companheiro: “Corre, Toninho, tem pêxe ferrado no seu anzol. Deve ser dos grandes, home, pois tá puxando com vontade e esticando a linha toda”. Toninho, botou mais atenção e ressabiado cutucou os fantasmas: “Que pêxe nada, Rui. A linha tá sumino pru meio do mato. Onde já se viu pêxe no mato!”. Era verdade. Rui assuntou: a linha se perdia no meio da pauzama. Nisso, a carretilha se estanca. Ficam, ali, os dois, com cara de espanto e matutando coisas, sem coragem de dizer, um para o outro, seus tétricos pensamentos, no que são despertados pelo quebrar de galhos e folhas dos passos de alguém chegando. Era outro pescador, de barranco, que buscava o acampamento. Chegou rindo e zombando dos dois, ali ainda estancados com cara de espanto: “Oxente, que pescadores deram vocês! Não estão com nada! Ao invés de pexê tão pescando é cachorro...!”
Rui e Toninho continuaram na mesma, sem entender nada, ao que o companheiro arrematou: “Encontrei ali na frente um cachorrinho magro se debatendo, todo enrolado numa 20. O coitadinho mascava a linha como tivesse roendo um osso, mas nada de se soltar. Tá livre, agora, cortei a linha. Ela tá lá enrolada em tudo quanto é pau no meio da capoeira. Pescadores, cuá!”.


A CAÇADA

Veados saltando na campina, jacus cortando o céu, capivaras correndo para o rio, patos, verdadeiras, um mundo de caça passou pela cabeça do Jandir que alisava a coronha de uma bela Remington, novinha em folha, guardada num estojo de luxo. Um friozinho percorreu-lhe a espinha; o coração bateu forte e os dedos coçavam como acometidos de cafubira. Tinha que armar uma caçada ligeirinho para aproveitar aquela beleza de arma... Mas célere que o pensamento, correu atrás dos amigos de caçada. Ninguém estava disponível. Para não ir sozinho se valeu de Joaquim, um bom companheiro de papo, mas pouco afeito às caçadas. Ajeitaram tudo numa velha rural e se mandaram para os gerais de Serra das Araras e Urucuia. Na viagem, Jandir não fala noutra coisa: era só a Remington, arma moderna, ajustada, novinha em folha e caça, muita caça - veados de todos os tipos, jacus, patos, codornas, capivara, paca e até onça. Aí Joaquim deu sinal, interrompendo os devaneios de Jandir. Dessa parte não gostei, disse ele que tinha verdadeiro pavor de onça. Na verdade, ele não gostava mesmo era de caçada; coisa de pouco conforto, muito mosquito cobra e outros bichos, para ele, tudo perigoso. Lá estava só para agradar o amigo.
Esbarraram no fim da viagem, na pequena choça do sertanejo Catatau, exímio caçador da região, talvez o melhor, mais sagaz e conhecedor de todos os bichos, suas trilhas e costumes. Era um tipo miúdo, meio índio, solitário, de olhos apertados, cara pequena e tez queimada e de pouca conversa - falava mais por sinais ou meneios com a cabeça que trazia sempre coberta por um chapéu de couro de veado. Não gostava de caçar com ninguém, só abria exceção para seu amigo Rui Mendonça ou quem ele mandasse. Desta vez o Jandir, que já era amigo dele.
Excitado, parecendo um centóculo, engolindo o mato de uma só vez, Jandir foi logo tirando a Remington do estojo. Exibiu-a, cheio de orgulho, ao Catatau que dela não fez o menor caso, apertando, por sua vez, o cão corroído de sua velha polveira. Partiram só os dois, Jandir e Catatau, para a primeira jornada. Joaquim, nem pensar, ficou na rural. Adentraram na mata, por um trilha fechada. Pouco andaram, quando Catatau estancou, virando para o Jandir que vinha logo atrás: “Separemo aqui. É mió pra achá caça. A quando o sole tivé deitando no topete da serra Galho Preto a gente se torna. É só mirá no topete da serra que num perde não...” Jandir ficou surpreso sem entender a separação - Catatau era o guia. Medo de se perder ele não tinha, o percurso era curto e a serra era bem visível. Aceitou a idéia, enquanto seguia com os olhos o Catatau que se embrenhava trilha adentro sobre um colchão de folhas e galhos secos. Parecia levitar, nem um estalido, nem um movimento de folhas. Quietude só. Jandir, então, tomou seu rumo. Foi um estrondo. A passarada revoou de espanto, na maior algazarra; outros bichos debandaram-se pelas trilhas diversas sacudindo a mata. Aí Jandir percebeu o porquê da separação.
Suado e frustrado, Jandir voltou ao acampamento. Nada, nadinha de caça: a Remington intacta. Na entrada da clareira, viu Catatau, encostado na Rural, também sem caça. Sentiu-se vingado e confortado, fulminando o guia meio a um sorriso sarcástico: “E aí Catatau, num adiantou separá, né?”. Catatau sacudiu a cabeça, riu matreiramente e falou baixo, do seu costume: “Num é qui num foi, meu santinho. Tava isperano o sinhô pra me ajudá buscá um bichinho ali perto”. Falou e saiu seguido pelo Jandir. Não muito distante chegaram a uma clareira. Jandir quase chorou de tristeza, quando viu pendurado numa galha de ipiúna, três enormes mateiros, já esquartejados. Catatau sentiu a tristeza nos olhos do companheiro e, de presteza sertaneja, cuidou ajeitá-lo na mira de um enorme veado. Jandir, excitado, preparou a Remington, alisou sua coronha com carinho e esmerou na pontaria, sussurrando para o Catatau: “Vai ser bem no coração. Com mira telescópica num tem erro...” Catatau quase nada entendeu, muito menos a tal “mira tescopa”. Estampido seco. O veado tombou na hora, nem mexeu. Jandir pulou como menino travesso e gritando: “Num falei, num falei. Com essa coisinha aqui num tem erro. Vai vê, foi bem no coração”. Catatau foi. Assuntou bem o animal inerte. Levantou as patas, virou e revirou o bicho, nada de sinal da bala. Jandir ficou espantado. Catatau pôs cuidado, assuntando a cabeça do cervo. Percebeu um filete de sangue escorrendo de dentro do ouvido dele. Com uma cara de sonso e um sorrisinho matreiro, passou para o Jandir: “Meu santinho, o coração desse matero tá na zoreia...”. E o Joaquim? Noite caída saíram para mais uma excursão: uma espera em um pequizeiro, com tempo daria para desenterrar algum tatu. Joaquim de noite é que não ia mesmo. Fizeram-lhe uma cama de ramagem, no bagageiro da rural e lá o deixaram batendo os joelhos de medo. Regressaram dia raiando e encontram o Joaquim de pé, dando voltas na rural, se coçando todo, dos pés à cabeça, com o corpo todo encalombado. Esbravejava: “Foi cupim. As folhas que vocês forraram a rural só tinha cupim da cabeça vermelha com ferrões que parecem tesoura. Puxa! as ferradas do danado queimam mais que fogo. Caçada, Jandir, nunca mais, nem que a vaca tussa!”.


SÃO JOÃO, MAMEDE, MANÉ E CAVALOS

Lampiões e lamparinas, dependurados nos caibros roliços e travas da varanda da casa-sede da fazenda, jorravam tênue luz no terreiro, riscando trilhas de luz que alcançavam uma enorme choça, coberta de palha de buriti, onde havia uma intensa movimentação. Bandeirolas coloridas, recortadas de jornais velhos e capas de revistas entrelaçadas por algumas tiras coloridas de papel crepom, imitavam as coberturas das grandes festas juninas da cidade - tinha até um pequeno balão jorrando luz através das folhas de papel de seda nas cores da bandeira do Brasil. Tudo simples, mas muito acolhedor e agradável. Homens, mulheres e muitas crianças se espalhavam pelo terreiro, rodeavam uma crepitante fogueira, armada de um lado, um pouco afastada da barraca. Outro mangote de gente animava o forró no chão batido da barraca, ao som puxado por duas sanfonas, caixas, violões e pandeiros. O mastro de São João, abraçado com seu carneirinho, tremulava na brisa da noite, envolto das estrelinhas que subiam das brasas da fogueira. Num canto da tenda, um cercadinho de pau roliço, a modo de balcão, com caixotes dispostos em várias posições, onde se via maços de cigarro, litros de vinho, licores, groselha, laranjas, latas de balas e muita bugiganga. Ali perto dois homens, de cócoras, faziam contas, catirando. Lá dentro, na cozinha, reboliço de mulheres mexendo panelões de canjica, cuidando do espocar das pipocas, das formas de bolo, pãe-e-queijos e outras quitandas. Uma grande festança principiava.
Mané, um rapaz fagueiro, esperto e namorador, se destacara na organização e preparativo da festa. Ele tinha seus propósitos. Um pouco no adiantado da festa, no entanto, ele não estava nada feliz, enfezado pelos cantos Nisso, um rapaz de nome Avelim se aproximou de um velho que descansava o corpo escorado num moirão da cerca do curral, segredando-lhe: “Assunta, seu Pedro, Mané tá arretado comigo. Num tá quereno conversa e inté tá falano em parti pra briga. Tô veno qui o jeito é eu i simbora inhantes qui a coisa piora. Sinhô num acha, seu Pedro? Vai qui eu infezo tomém e aí fica pió...” Seu Pedro, só resmungou, puxando seu cigarro de palha, com o olhos perdidos na barraca, onde fervia o bate-coxa animado. Para lá também olhava firme o Mané. Parecia ter os olhos em brasa, cismando e esbravejando. Era verdade, ele estava xingando e muito, enquanto seu olhar de fogo acompanhava sua Mariazinha, para quem trabalhara tanto, organizando a festa, só para agradá-la e dançar com ela a noite toda. Pois é, ela estava, naquele momento, nos braços de Mamede, um brutamontes que meteria medo até mesmo em Antônio Dó, se vivo fosse. “Tudo por culpa do Joaquim, aquele incutido besta”, esbravejava Mané, mordido de ciúmes. Bem que ele estava todo feliz enlaçando a cintura fina de sua Mariazinha, quando Joaquim, a modo do lugar, puxou seu ombro e pediu a preferência da vez. Ele, para ser agradável ao amigo deixou, mas preveniu: "Óia, quando uncê fô pará me chama. Num passa Mariazinha pra ninguém. Pra ninguém, tá bão?”. Joaquim sacudiu a cabeça afirmativamente firmando o trato e saiu balançando a menina do Mané. Pouco durou. Veio o bruto do Mamede, aproveitou da hora, meteu medo no Joaquim e tomou Mariazinha em seus braços para não mais largar. Agora estava ali, macambúzio, enfunado e morto de ciúme, o pobre Mané, sem ter coragem de tomar Mariazinha do Mamede, que sacudia que nem um imenso garrote abrindo a roda em sua volta. Parecia soberano no salão. Mané imaginou bater nos ombros dele. Acuou temente. Lembrou o costume do chapéu que era como lei no lugar, mas o danado do Mameme estava dançando com o enorme chapéu de peão que não tirava para nada desse mundo como de tivesse nascido com ele. Tinha jeito não. Pior que se aproximava a hora da quadrilha, o que levava um tempão para acabar. Nossa! Levava horas - “avancê... derriê... vurtiê... tuu... outra vez tuu... óia o tune...”- cada ordem de comando da dança batia na cabeça de Mané como ferro na bigorna. “Meu Deus, tô perdido!” - exasperou-se quase a chorar. “Já maginô minha Mariazinha dançano quadria com aquele besta sem-vergonho?” - se perguntava. Foi quando ouviu o grito, que para ele era de guerra e de morte: “Abre a roda pessoá. Abre a roda. Pega seus par. Tá na hora da quadria”. Mané tremeu. Tremeu de bater os dentes e de sacudir os joelhos. Que fazer? Astuciava, quando viu, quase ao seu lado, os meninos soltando traques e bombas. Teve idéia relâmpago, como aqueles quando se vê diante do bote iminente de uma onça: ou dá uma jeito ou morre. Adulou os meninos, deu agrados e conseguiu um punhado daqueles fogos de artifício. Ajeitou um cordão e fez com eles alguns feixes. Daí, saiu para o rumo de fora, do outro lado da cerca, onde estavam amarrados os cavalos dos foliões. Com muito tato, foi amarrando feixe por feixe nos rabos dos animais... e ateou fogo. Foi aquele bombardeio. Parecia festival do Josafá, o fogueteiro-mor de São Francisco. Os cavalos meio a relinchos, pulos e de-bundas, arrebentaram os cabrestos e saíram em louco galope, cada um procurando o caminho de seu pasto. Lá do terreiro alguém gritou alarmado: “- Os minino atiçaram bomba nos cavalo. Oiá lá, o cavalo do Mamede endoidou!”. Parecia mesmo. Naquela hora, o animal de Mamede, um bravo garanhão, como o dono, se batia para romper a grossa corda que o prendia ao esticador da cerca - tudo no Mamede era exagerado. O animal, depois do espetáculo que deu, rompeu a corda, no exato momento que Mamede acudia... e saíram os dois em debelada carreira dentro da escuridão. Mané achou muito melhor, pois tomou Mariazinha pela cintura e lá foram os dois para o salão, ela rindo candidamente da malineza dos meninos e Mané da sua vingança. As sanfonas tocaram até mais bonito. A dança prosseguiu e, num canto, como estava antes, os dois homens teimavam na catira que não tinha termo. Continuei no meu canto, testemunha de um fato tão divertido, uma história de amor, uma festa de São João tão alegre que até os cavalos dançaram.


VI RETRATOS E TIPOS


Mais ama o povo quem o ama em suas tradições

Alceu Maynard



A Praça / Serra das Araras /

Caminhão do Zé / Pedro Duro / Zé Bambu

Bernardo / Joãozinho Caçote /

Vicente / Agonia do São Francisco



RETRATOS DA PRAÇA

- década de sessenta.


O tempo muda,
como muda o tempo,
mas a vida dica na memória,
nas tinturas das paredes,
nos telhados manchados,
nas portas e janelas de madeira
aberta ao sol.
Quantas histórias tem para contar
a Praça Oscar Caetano:
O casarão do Cel Oscar
- na varanda iluminada,
Dona Alice, “Mãe-dos-pobres”,
segue a vida com seus meigos olhos azuis....
Silvana e Capri, lona descida
- Mário Mendes, sempre inventivo -,
para abrandar o sol causticante.
Aliança Ribeirinha e o seu Viana; 
Dim e Enéas na barafunda que fatura,
Nilceu entre chapéus de palhas,
Leonides alisando o balcão,
Zé enfunado no depósito
e o Odilon correndo rua avexado.
“Francisco G. Mendonça,
não teme concorrentes”.
Meirelles e a boite Alvorada 
- atrações nacionais no palco,
pista de dança lisa e encerada.
Bar do Manoel, briga pela Brahma.
“08, Arnaldo Lima, Posto Kennedy
Democracia nos preços - venda à vista”.

Cafezinho de D. Luzia, máquina nova
revistas e o bota-fora na velha jardineira.
(Jardineira cantada por João Ortiga
no SF que nascia...)
Casa São José - irmãos Ribas.
Bar do Nelson, picolé, sorvete, dos melhores
e as enormes mesas de snooker 
- alegria das manhãs de domingo, depois da missa.
Fulô, negócio de mamona para compra
e de tudo para venda.
Armazém Guarany.
Marcondes - datilógrafos para São Francisco
Correio na casa assombrada, sem fantasmas
- Queridão não deixava espaço para tristeza: 
“E alegria, alegria!”.
Pensão do Hugo.
Hotel de Dona Ana - ponto dos viajantes.
As rosas de D. Emília...
- o cantinho perfurmado.
O jogo de dama na alfaiataria do Necésio,
onde o Félix perdia, se preocupado,
e ganhava, se tranquilo
- ele, sempre preocupado,
e João Canário sempre tranquilo.
O Frigovale - carne da fazenda Renascença.
O Canoas, projeto futurista de Dr. Heráclito,
desfigurado pela pressa e falta de dinheiro.
O correto, palco de serestas.
Ló e Mariinha, Tazinho, João Pio, Helvécio, Sílvio,
Zé Pinto, coma proverbial zoada,
e a meninada tal pai.
A República dos advogados
Pedro Mameluque e João Ortiga
e do contador José Agapito.
Passeio dos namorados.
Como é grande a praça!
Praça Oscar Caetano.


SERRA DAS ARARAS 
- década de sessenta

Encontraram um santinho de barro numa serra bonita,
meio a locas de cascavéis e ninhos de araras,
com um córrego nas cercanias - o Catirina.
Santo Antônio! - anunciou uma rezadeira.
O lugar era muito triste e isolado,
por isso, piedosos cuidaram de levá-lo para cidade.
O santo não gostou. O seu lugar era na serra.
Dizem que voltou a pé, deixando o nicho quentinho
que lhe deram na bonita igreja em São Francisco.
Teve gente que o viu caminhando pelo gerais,
muito suado e puxando o passo,
sem olhar para os passantes.
Lenda ou não, fez-se a vontade do santinho:
uma igrejinha foi erguida nas fraldas da serra
e ele tomou conta do altar
- Santo Antônio de Serra das Araras.
Num encanto, a pequena vila ganhou vida.
Romeiros-serranos foram chegando para ver o santo.
Promessas e muitas promessas para pagar
- muitas moiçolas encalhadas reacenderam a fé.
A Serra foi ganhando fama, muita fama
e os serranos foram crescendo, crescendo,
como formiga, brotando de todas as bandas
na visitação anual ao santo.
Fé, promessas, negócios, namoros, bebedeira,
uma semana no mês de junho no sertão,
sem se importar com o tempo e sem preocupações.
Virou festa religiosa, folclore e comércio.
Anos e mais anos passados e a festa com mais gente
- quem vai uma vez, quase sempre volta no outro ano.
As lembranças ficam marcadas.
As paisagens, gente, coisas e fatos:
Vereda do João
Monte Dois Irmãos
a serra plana e comprida
buracos e escarpas cheios de cascavéis
céu azul e profundo
a igreja erguida num largo gramado,
ruas estreitas,
casas de adobe,
barraca de palha de buriti.
Ponte do Feio
- banho dos pelados.
Areias brancas do Catirina.
Noca velha de 81 anos sem ver a luz
com a irmã surda e com papo.
Zé Maurício, Luiz, Corino e Moisés.
Barracas dos serranos penduradas nos caminhões
e carros-de-bois;
mascates espalhados em trilhas arenosas:
espelhinhos vermelhos, pentes finos e escovas;
canivetes Corneta, esporas, brinquedos, bolas,
sandálias-de-dedo...
Araras de três cores, papagaios faladores e galegos,
perequitos barulhentos;
redes, esteiras, chapéus, cerda e bolo, tudo de buriti;
canela de ema, cabrestos e sela curvelana;
gengibre e iguarias tantas em garrafas ou pacotinhos.
Fotógrafos tirando chapa de fotógrafo e de toda gente
que fica depois brilhando no monóculo.
Centenas de batizados,
noivos chegando acompanhados de sanfona e viola
e os casamentos coletivos, numa roda.
Chegada dos serranos:
três voltas em torno da igreja,
soltando fogos e gritando vivas.
A igrejinha soltando gente pelas portas
nas celebrações das missas;
a procissão gigantesca, levantando poeira
e Santo Antônio sufocado.
Arrasta-pé no pátio da escola - um luxo - 
e nas barracas de baile, no chão molhado.
Barracas pegando fogo,
cachaça, muita cachaça para cortar o frio;
ressaca terrível e muito boldo.
Viagem a pé, a cavalo, carro-de-boi,
e, raríssimos caminhões.
É Serra para quem o serrano canta cheio de saudade
na hora de partir:
“Já fiz prece, fiz promessa,
“para o ano eu pretendo voltar! Adeus!”.



CAMINHÃO DO ZÉ
- Urucuia. Ao amigo Zé Maria Pinto.

Caminhão
bebe gasolina
carrega pedra
carrega feijão
carrega gente
e Zé Frangão
Zé bebe pinga
e come feijão
Caminhão
anda
bebe gasolina
encrenca na esquima
Zé assunta
com emoção
toca a lata
ou fica no chão
Zé bebe pinga
caminhão gasolina 
Zé come feijão
que carrega
no caminhão
Caminhão roda 
Zé ri
Caminhão pára
Zé chora
Zé quer o caminhão 
zunindo no vento
cantando músicas
na estrada
Zé-meninão
Zé Frangão
carregando feijão


PEDRO DURO

Pedro Duro
de família duro
Pedro duro duro
eta Pedro duro
Pedro fieiro
não tem jeito não
aumenta a prole
poque não acreditar em pirla
e faz a vontade de Deus
Pedro pinica-pau
vai para o mato caçar tatu do casco preto
pra tratar da fiarada
e fazer remédio para curar inchação
e dor nas juntas
Pedro-gambá que não tendo tatu
apela pro bicho que primeiro cair
na mira da poeivera
e tratamento de gambá ele sabe fazer
queima o bicho e joga a bolsa fora
e os meninos não precisam saber 
que carne estão comendo, não.
Pedro fura abelha
quando não tem caça
que mel serve para passar os dias
e as ferruadas saram o reumatismo
que ainda não tem
mas vai se prevenindo
Pedro raizeiro caminha léguas
para tirar cavaco de pau-terra
remédio santo para curar empazino da meninada
e traz olhos de aroeira e assa-peixe
para cortar a diarréia que pode vir
Pedro violeiro que pinica o rio abaixo
mas não quer compromisso com o demo
“descendo o rio abaixo, ê, numa canoa furada,
ê, descendo o rio abaixo”.

Pedro que não achando bicho algum
se diverte cantando a sorte:

-“Vô mimbora, ê, vô mimbora,
não vô mimbora, não;
ê, guacho véio,
cê perdeu a madrugada”.


e ri dele mesmo
que perdeu muitas madrugadas
já que não pode chorar a fome do bucho
e a cara triste da meninada
que a cada dia vai aumentando
Pedro é Pedro. É Pedro, sim senhor
que não espera mas vai passando
como muitos Pedros espalhados
por aí sem se danar com a vida.
O tempo vai passando
e a vida dessa gente vira folclore.
Eta Pedro, um dia você ainda caça no paraíso
que de purgatório você tá cheio.

Pedro tatu gambá, arapuá
Pedro pedra
Pedro duro
Pedro pedra
Pedro pedro
Pedro Duro.


ZÉ BAMBU

Zé Bambu
graça permanente
Zé Bambu
cabeça de pequi

Zé Bambu
rico levado a pobre
andando sem rumo
cantando para a namorada

e canta como príncipe
longe da vida olhada
seus sonhos ficam além 
na sua doce namorada

“minha namorate tem a pele fina,
a pele fina como da sereia,
o nome dela fica retrate
e iluminate como a lua cheia”


Zé Bambu foi rico de dinheiro
ficou pobre, tirado
permaneceu rico
no coração apaixonado.


BERNADO

“meu irimão tonho num qué comprá meu alqueire de terra apois que ele fica da outro banda da reá, num tá junto da posse dele. meu outro irimão, môriço, num tem ricurso, apois ele num é vaqueiro nem nada. é pobre chico-rasgado a cuma eu. assuntei. entonces qui cuns meus num vô vendê a minha terrinha. vai ser difíço. de fora quem vai querê comprar um naquinho de terra amuntuado de areia qui num dá mais nem mandioca? tenho que pená meus dias aqui memo, plantado qui nem aroreira no meio das pedras”. assim matutava bernado, estirado num esteira, atacado pela tosse seca da tíssica que minava seus dias de vida. noutra esteira, estendida no chão batido do ranchinho de palha, a mulher, convalecendo do nascimento de mais um filho, perdida da conta de quantos puseram no mundo-cão. no despachar o último filho ela quase partiu, antes do marido que andava por um fio, pois tivera uma hemorragia brava, um trabalhão para as parteiras e rezadeiras. foi salva graças a muitas beberragens e rezas. bernardo pensava na sorte da mulher e dos filhos. tinha que vender a terra e fazer estrada, com todos eles, para “sumpaulo”. lá poderia recuperar a saúde e voltar ao trabalho, o que sabia fazer e com coragem. a tosse atacava e bernardo sonhava com “sumpaulo”. viveu algum tempo, entre a tosse cada vez mais curta, os vômitos e os sonhos, até que embarcou de vez, sem volta. a mulher nem teve tempo de sentir sua falta, pois dez filhos choravam aos seus pés, sem parar: “mãe, tô com fome...” - fome acabou com o sofrimento de muitos deles que sequer conheceram a adolescência. bernardo se foi, mas tantos outros, como ele, vegetam, pior que o próprio vegetal, nas caatingas do nosso sertão, perdidos e sem esperança até mesmo de ir para “sumpaulo”.


JOÃOZINHO

Joãozinho caçote, basquete, caboclo d’água, solitário. Joãozinho que padeceu muito na vida, teve, um dia, uma melhora, quando se encostou na casa do “sargente Calange”. Melhorou tanto que de uma feita foi com ele para as bandas do Urucuia, num jipe pulador, para pedir em casamento uma cabrocha que conhecera de muito. Por causa dela não fora mais adiante, conhecer a tão sonhada Porto de Manga, uma vila pacata, muito bonita, plantada nas barrancas do rio moreno, cheia de encantos e de festas boas. Joãozinho suspirou, mas ficou no caminho mesmo. Seguiu estrada rumo ao rancho da sua morena, precateando caminhos de areia branca que serpenteavam paradisíacas veredas. Seu coração só batia uma doce alegria: “agora vô casá...”. Destampou no rancho, enfim. Teve alegria, não. Sua amada ganhara o mundo. Disse a mãe, sem emoção, não podendo entrar na alma do pobre apaixonado, que dias atrás ela saíra de casa com um carvoeiro pinguço. Dera a notícia com a naturalidade tão própria do sertanejo, garantindo ao Caçote, Joãozinho Basquete, Caboclo d’Água, a mão de outra filha, até mais formosa que aquela ingrata. Joãozinho se arretou. Falou nada. Enfunado, fincou o pé na estrada. Foi se lamentar, muito sol depois, com o sargento, no jipe que pulava quem nem burro bravo. Contou amuado, num dor de cortar o coração, que perdera a viagem, que sua amada fugira com um cachaceiro, mas o que ele mais ficara com raiva não era ter perdido o casamento. Importava mais era com o “prudecimento da moça”. Voltou triste, e jururu ficou uns tempos até sarar a dor. Mas não foi muito o sossego de sua alma. Pouco depois o Basquete estava outra vez só, amuado, sem comer, tão jururu de inspirar dó, pois o “Sargente Calange”, seu amigo do peito, também se arrumava para ir embora. Mais uma vez só, vendo suas coisas tão caras batendo asas como garças, mansamente, sem deixar nem penas para o pobre Caçote, outra vez sozinho no mundo. Começar a vida de novo, mas sem a namorada, sem o amigo “sargente Calange”, sem conhecer a Vila de Porto de Manga e mais pobre de esperanças.


VICENTE

vicente chamou maria e determinou de vez que teria que vender a sua terrinha, pois não mais suportava a secura daquele lugar e até mesmo não suportava o cheiro que seu corpo exalava. lembrava à mulher que era nascido e criado nas barrancas do urucuia e acostumado com a veredas dos gerais, onde vivia, dia todo, mergulhado como sucuri naquela aguada que nem prata e que não seria agora, na velhice, que teria que suportar uma vida de calango. pôs o pé no mundo em busca de comprador; venderia o cercado por qualquer preço. em dois anos seguidos já tinha perdido suas rocinhas de milho e feijão, até a mandioca esturricava, sem folhas. a terra não dava mais nem para a comida. encontrou um amigo e declarou que vendendo a terra iria ficar uns dias mergulhado no são francisco até pubar. iria ficar quem nem jacaré - “é quentano sol no barrnco e esfriano adispois n’água”. depois ia cuidar da vida. talvez voltar para o urucuia ou noutras bandas, onde tivesse água. seguiu para vender a terrinha. achou negócio. não foi bom, mas ficou livre do seu tormento. no rancho ficou apenas o seu cheiro e dois cachorros que entraram no negócio, pois eram valentes e, olha só, gordos. dá para entender: naquela pobreza toda, os cachorros comiam milho e abóbora, tudo graça às rezas do vicente que eram boas para valer, menos para ele, que não conseguia fazer brotar água no seu cercado, nem fazer cair pingos de água do céu. vendeu a terra, mudou-se para a barranca do rio são francisco, mas se desacostumou com a água, virou gato. 


AGONIA DO SÃO FRANCISCO

Apois é o que se conta: o rio São Francisco, o velho Chico, nasce na Zagaia da Canastra, e mergulha virginal na Cascadanta, impregnado do perfume das florzinhas silvestres dos campos altos. Numa nuvem espumante, leve, de gotinhas de cristal que bailam no ar, busca o céu límpido, enquanto a vida que salta tromba nas primeiras pedras. Na fonte apenas o leve soído da vida que brota.
Nas primeiras dobras do caminho, assusta! Dos barrancos remexidos rolam pó e areia, um veio de sangue penetra no filete prateado. Fica aí, não, é só o começo. A bênção do santo-santinho das aves e bichos, dos pobres, amigo do sol e das águas, que seria a veia irrigando a vida no corpo da terra e pujança, brotando verde verdão, com bicho solto pulando e comida farta no sertão, não prosperou. Quis assim não, o homem que se convenceu de ir entupindo a veia da vida. Ali uma barragem, cheia de pose e água devorando sertão, afogando matas, desaninhando bichos e os peixinhos, querendo a vida, quebram as barbatanas e arrebentam escamas no muro, perdem filhotinhos. Mais ali a mata verde-verdona, frescura úmida que cheira gostoso, de folhas banhadas de orvalho rutilante com o beijo matinal do sol; fofura de folhas estralando no passo da capivara e criando vida, é dilacerada por machados e vorazes máquinas serradeiras. Depois a fogueira crepitante, ardente. Onde a folha seca, forrando o chão-vida, um cobertor de cinza azulada que o vento carrega para o céu. A aridez é terrivelmente chocante, triste e macabra. Do céu sisudo, a chuva forte, toda de uma vez, abre o chão enfraquecido e nu, leva presente ruim para o Chico que tudo engole, entupindo-se, sem poder vomitar.
Os gerais ficam mais além, na saída dos vãos às serranias. Veiazinhas formosas, insinuantes, vão brotando, aqui e acolá, nas grotas das sucuris ou nas raízes do buriti e pindaíba, banhando samambaias e banana-de-imbé; abrem caminho, saciando o sertão para buscar o Chico na sua ânsia de ter o mar. Arde o pau-torto, tomba o pau-terra, a cagaita, cabeça-de-nego, o pequizeiro, todo o cerrado é varrido e transformado em comida de usina, quando antes era comida do sertanejo. A vereda vira barro, só um filete d’água, tão pouca até para passarinho bebiricar. O areial supita, vai formando dunas e avançando, escorregando como cobra rumo ao Chico.
O das Velhas, secular tributário do Chico, torna-se ameaçador, porém reluta malinar o companheiro, mas é empurrado pelas sobras das cidades grandes e pelas caldas negras, viscosas e pestilentas das indústrias. O Paracatu e o Urucuia, alimentadores-mor do Chico, que faziam caminho pelos meandros cobertos de densas galhas de frondosas árvores, descendo os gerais em cantiga de sereno, trazem agora os resquícios das matas e a sujeira do que foi sobrando do sertão. Jorram um grosso caldo, tintado de sangue no Chico.
O do Chico esbarra em São Francisco, a cidade que mais ama, nos dizeres de Guimarães Rosa. A leve curva no pontal a montante abre no largo leito que escorrega manso na planície como de vontade fosse correr pelas ruas da cidade, acudindo saudades de passeios pretéritos, mas, de leve esbate no cais, faz burburinhos de espumas brancas, sussurando nas locas das pedras dos angicos, fazendo agrados ao surubim de cabelo, lá no palácio submerso, debaixo da igreja. Vai escorregando, sem quer ir, banhando as pernas das lavadeiras que lhe contam a vida da cidade e, cantando sua música secular, vai sumindo no pontal a jusante. Alegria não leva mais, mesmo com tantos amores, despojado da luxuriante roupagem das margens, nem lhe restou uma, uma, só sombra. 
Foi mais bonito este “caminho-que-anda” que nem cobra comprida , todo de manso e dengoso, carregando barcos com velas surradas e esgarçadas pelo vento, e o pescador orgulhoso, hoje só esperançoso. Velhos vapores iluminados, gemendo e gritando dentro da noite, são apenas saudades. Ficou mais triste. Sem árvores gigantes, aqueles angicos que deram sombra aos caipós e bandeirantes. O barranco do barranqueiro ficou nu, lavado, cortado de trilhas que viraram buracos - só capim navalha e o teimoso do bengo. O leito profundo, vistoso, espremido por bancos de areia, cada ano maiores e sujos, cheios de praga. A esterilidade que se transformou o sertão vai sendo carregada para dentro do Chico.
De tempos, em muitos tempos, agora cada vez mais distante, o Chico grita, responde a tanto aperto. Supita, deixa seu leito, avança pelos barrancos, toma outras trilhas e vai carregando casas, roças pontes. Não faz de maldade maior e precipitada, dá muitos avisos, enquanto se avoluma, não é para machucar ninguém. É só o protesto por tanta dor guardada, sem resposta. O homem continua voraz na vontade de acabar com o sertão e matar o Chico.
Os peixes da fartura na mesa do barranqueiro; os bandos de mergulhões, ariris, jaburus e garças, estão virando lembranças do passado, histórias que os antigos contavam. Folclore. Só a gaivota, solitária, ainda dá o seu grito estridente no entardecer, misturada aos raios mansos e multicoloridos do pôr-do-sol, para se saber colorida e não mostrar sua tristeza e paixão.
O Chico se esvai arrastando a nossa tristeza. Breve, no seu leito, correrão apenas as nossas lágrimas.
O homem morre com o Chico, mas não se dá conta disso, pois à água é-lhe mais importante o dinheiro, na sua irracionalidade e o que é pior, às portas do ano dois mil, na sua eterna ignorância.


VII SÉTIMO

“E criou Deus o homem à sua imagem”.
Gênesis, 1-27



Perscrutar / Paroxismo /Dualismo

Quem és Tu? / Meus Filhos / Pedido / Epílogo




PERSCRUTAR

Respostas ansiadas
podem estar nas trevas perturbadoras
onde os descaminhos são retificados.
No emergir do seio da terra,
a vida nova rutila,
em trêmula luz
- primícias da sétima essência.

Avultam, além dos montes,
Luzeiros tocando sete notas;
caminheiros dos sete dias
à procura dos sete metais,
no duplo universo do ser,
vencendo sete degraus
para saber a VERDADE.

O veneno, a cruz, o fogo e a bala
da ignava gente, consumiram 
luzeiros do mundo...
Mistérios ou desatinos dos homem
emergirão das páginas dobradas,
mas na imersão dos sete círculos,
retificando, ressurge a VERDADE.


PAROXISMO

Eu fui amálgama na construção de seus castelos,
enquanto você apenas contemplava;
o suor que umedeceu sua seara em dias infindáveis,
enquanto você apenas admirava,
sem ter afagando a semente lançada na terra, 
e amar a planta que crescia.

Eu fui sentinela nas vigílias das noites escuras
que ameaçaram nosso campo;
você não se fez presente nos momentos de aflição,
deixando correr os dias de angústia
como quem já cumprira uma missão,
a colher aplausos das primícias.

A juventude entreguei como uma dádiva,
para que se cumprisse um ideal candente;
você, momento algum, foi meu lenitivo,
quando os espinhos dilaceram meu corpo
e penetraram na minha alma,
marcando a longa caminhada.

Meninos abriram o sertão,
vencendo o desespero e incertezas,
consumindo a própria vida, sem promessas,
levantando templos de glórias;
você se vestia de festa e fazia corte ao rei,
colhendo louros regados com lágrimas e sangue.

Você não teve o gozo da alegria,
não experimentou a agudeza da dor,
sublimados na vida que brotava da terra.
Antes da consumação, por ter perdido o tempo,
você condenou rebentos da grande obra 
como prófugos da vida que alimentaram.

Assentou-se em seu Olímpio, como deusa,
de coração empedernido e olhos em brasa,
adorada pela estultícia de mau vezo.
Enfurecida, amaldiçoa os caminheiros,
expondo-lhes aos seus abutres vorazes,
porque, como eles, um ideal que você não acalentou.


Não importa o seu porte de deusa,
se sua face marcada por paroxismo aterrador
revela a penúria que cobre sua alma,
o retrocesso, na predominância das trevas.
Não enganará a história, nem Deus, jamais,
se hoje destrói, o campo que não regou, nem amou.


DUALISMO

Por que a guerra,
quando se busca a paz?
O ódio,
quando se ansia por amor?

Por que só a matéria,
quando se busca o infinito?
O mal,
quando se apraz no bem?

Por que semear a dor,
quando se quer alegrar?
A riqueza,
quando se faz apologia à pobreza?

Por que ferir,
quando se é vulnerável a dor?
Menosprezar,
quando não se pode ser só?

Por que chorar,
quando se tem o prazer do riso?
Matar,
quando se ama a vida?

Por que servir ao diabo,
quando se ama a Deus?
Imprecar,
quando ainda se pode rezar?

Por que se curvar,
quando se quer crescer?
Morrer,
quando se pode ser eterno?


QUEM ÉS TU?

Jesus
Moisés
Buda
Maomé
Príncipes dos homens
a palavra
a eternidade.

(as portas dos templos estão abertas;
os corações dos homens fechados.
Uma réstia de luz teima resplandecer,
mas estão vedando todas as frestas).

Homo sapiens,
quem és tu?
O que afinal buscas
desde o raiar dos tempos?
Se cresces,
dize-o tu mesmo
no assombro do saber.

(o homem voraz, no tempo,
tromba no conhecimento
e nas suas próprias contradições
se auto-destrói e a vida.)

As estrelas 
estão próximas
o universo é engolfado 
nas tuas poderosas lentes
mas tu, ainda, homem,
teimas não olhar para ti mesmo,
o teu mundo fechado.

(das criaturas e seres, o abençoado,
feito à semelhança do próprio Criador.
O que pode cogitar, saber a existência,
e gozar a plenitude da vida).

E o que fazes tu, homem?
Deixa-te dominar pela besta
na defesa de teus propósitos,
libertando instintos animais
porque precisas ser o vencedor
sentir-te um rei,
ainda que só em teu coração.


MEUS FILHOS

Vejo-me em vocês
meu ontem
meu amanhã
somos um universo
fluímos dos séculos
dos espaços infinitos
elos milenares nos fundiram
imagens criadas
fluxos de amor
átomos sem princípio
síntese espírito
somos
sempre somos
a essência do ser
e no SER
ínfimo do VERBO.


PEDIDO

Fim de tarde...Em pouco desce a noite.
Réstias de luz caem sem força sobre o rio
deixando um rastro esmaecido no céu.
A tarde é companheira da tristeza,
fica-se com saudade sem saber de que e porquê,
a angústia invade o peito, roendo.

Estou pensando em você com carinho.
Raramente temos momentos a sós;
não pensamos nisso e a vida passa.
Embora tão pertos, ficamos distantes.
A vida nos separa com seu peso
tudo nos engolfando nas preocupações.

Os dias vão se despedindo...
A cada tarde já não já não somos os mesmos.
Como reconfortante seria viver mais em você,
desfrutar mais intensamente de nossa unidade
e que cada momento fosse realmente nosso,
no gozo do mistério que nos uniu.

É tardinha, o sol se aninha no ocaso.
O mundo se esfria com o passar das horas.
A tristeza me invade nessas horas de tédio
E sinto que necessito muito de você, do seu calor.
Mergulho no passado, cheio de saudade,
para fortalecer as raízes do nosso amor.

Lá está você, no primeiro dia em que a vi:
uma franjinha pueril, no rosto cheio de meiguice;
um sorriso, doce, brejeiro e tão fugaz,
“ave maviosa” da juventude viajada,
e meu coração loucamente, querendo-a .
- foi o átimo da nossa eternidade.

A emoção faz estremecer a alma,
Que ascende aos céus uma prece de alegria,
porque somos um só coração,
com dadivosos frutos ramalhados,
E deles, a vida mais se mostra,
nos estreitando sempre mais, no amor.


EPÍLOGO

A minha alma, abri:
cantei o tanto pude,
Mas restou-me a tristeza,
pois guardo muita dor
em saber que meu canto
mais parece um pranto
em um mundo frio de amor.

Fica sempre a desilusão,
De angustiante cogitar:
Para onde vai o homem?
Da aurora dos tempos,
Aos dias que nos consomem,
é a eterna luta:
o bem contra o mal.


Rebate-me a pergunta,
tão cruciante que me assusta:
qual é a razão da vida?
Guardo-me na humildade
De que visitando o interior da terra,
possa, retificando, descortinar
o que sou e para aonde devo ir.


CONTRA-CAPA

Diogo Mesquita Maia*
A leitura construtiva sempre antepõe uma questão que retorna ao termo dela (leitura), pelo que é intrínseco à comunicação e diz respeito aos propósitos do autor. Qual terá sido o conteúdo mais profundo do livro? Ou quais esses conteúdos? Para chegar à resposta ou às respostas, é necessário identificar uma certa unidade, algo que vá se definindo gradativamente ou algo que um texto em especial ilumina, lançado luzes esclarecedoras sobre o todo.
Por esse ângulo, as variadas formas presentes em “O Homem e suas tempestades” e mesmo a divisão do livro em livros talvez exijam mais de quem se disponha àquela interpretação. Há desde poemas concretos até “causos sertanejos”, passando pela poesia lírica em algumas de suas manifestações, a enfeixar o que se poderia chamar de coletânea.
Se linearmente os textos em versos e em prosa compõem um mosaico de peças pouco harmoniosas entre si à primeira vista, para dar a idéia de um tecido único, e assim não falam de pronto de um projeto urdido na concepção do livro, há neles marcas bastantes eloqüentes de uma visão de mundo, que foi se definindo cronologicamente, as quais configuram aquela unidade.
Essas marcas se revelam pela linguagem cuidadosa, bastante elaborada, demonstrando o total domínio que o autor tem da forma de expressão.
Tomo o poema “O homem e seus dois mundos (Poemas/Processos) para exemplificar esse ponto de vista. Todo o poema é um círculo maior dentro do qual há um quadrado, em que por sua vez está contido um círculo menor. É a realidade quadrada que se superpõe aos ideais do homem, reduzindo-os, esmagando-os.
A realidade social enquadra o homem, subjugando-o, submetendo-o. João Naves mostra a força desse jugo, por exemplo, em Homem/carvão: “Tudo preto: os minguados paus tortos, o mato ralo, a areia e do que parece ser gente só se vê branco os riscos dos dentes e a rodela dos olhos. Homem esquálido, mulher pendurada de bacuris barrigudinhos – galinhos de pau em pé, balançando ao vento”.
O poeta se inconforma e denuncia, e essa paisagem social que o rodeia leva-o a se voltar para a própria vida e a discuti-la em profundidade. Encontra nos níveis da consciência outras peias, relacionadas à condição humana (“e as rotas giram/vã prendendo as idéias/não há escolha do caminho/ e não se pode beber cicuta”), das quais procura – inutilmente – fugir, lançando mão de quimeras (“tentei essa estada meta-física/para ficar perdido na dor-clan/destina que viaja comigo na noite/ e parei num ponto numerado da vida”).
Talvez se possa ler os “causos” do prosador e os tipos humanos neles pintados como uma transigência da realidade social somada à insensibilidade física do homem. Os sonhos são reduzidos, sim, mas continuam, pequenos, a ser sonhos. O aspecto original, pitoresco desses “causos” seria a manifestação das pequenas felicidades que ainda a vida nos permite.


*Diogo, professor de Língua Portuguesa, trabalhou uma boa temporada em São Francisco atuando como editor do jornal Nosso Tempo. Ele, gentilmente, cuidou a revisão deste livro e acompanhou a diagramação e impressão. Sou-lhe eternamente grato pela generosa contribuição e pelas animadoras palavras sobre o livro.


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