segunda-feira, 12 de agosto de 2019

VIVÊNCIAS – CONTOS

TAPERA DO FELIPE
Bons tempos esvaídos nas brumas do passado chegam ao desconhecido e inóspito sertão urucuiano. Um jovem desgarrado viajava  montado em garboso burro ruão de viageiro macio. Não se provia de muitos apetrechos. Levava apenas uma capoteira com uma capa, uma  rede e um cobertor. Indo de lado – e às vezes disparando na frente do burro – um cão perdigueiro. Burro e cachorro não tinham nomes. Eram três em um só. O jovem atendia pelo nome de Felipe – Felipe só, não adiantava o nome da família e lá tinha seus motivos. Viajava escoteiro e isso não causava espanto, pois na região sempre aparecia cavaleiro solitário – a serviço ou fugitivo da polícia.
            O sol descambava no horizonte tingindo o céu de suave vermelho esbatendo para o dourado, quando Felipe despontou em um limpo, que dava entrada a uma vereda. Pouco trotado divisou um rancho ali aprumado. Era pequeno, mas bem cuidado, de aspecto agradável. O terreiro da frente era cercado por paus roliços. Não tinha mato nele, apenas   um pé de bouganville coberto de flores vermelhas. No fundo outro cercado com um pequeno mandiocal, alguns pés de algodão crioulo, dois jiraus  tomados pelo verde da cebolinha de cheiro, coentro e couve; pés de limão rosa, mamão e touceiras de bananeiras. No meio do mato, algumas galinhas, vigiadas por um galo, ciscavam em busca de vermes para o bando de pintainhos que a seguiam com avidez. Nada mais havia.
            Felipe chegou-se à beira da cerca e, sem apear da montaria, chamou sem dar alarde – Ô de casa!
            Esperou um pouco e repetiu o chamado, um pouco mais alto.
            Logo depois despontou na portinhola do rancho, entreaberta, a figura de um homem magro, estatura mediana. Trajava com simplicidade, mas com decência, tanta a calça quanto a camisa pareciam ser tecidas de algodão. Factível de ser por obra de sua mulher que cultivava algodão crioulo no quintal e que, por certo deveria possuir um tear.
              Pois sim, viajante. Tardes. E quem é o moço?
            Felipe adiantou a montaria mais próxima da cerca sem forçar o contato e se anunciou:
            – Sô de fora. Tô de chegada no sertão e preciso de ter notícia de umas terras da minha gente. Preciso também de sua serventia de um pouco de água e um breve descanso. E se não incomodar o senhor, um ponto para esticar a rede e descansar.
            O morador, então, ultrapassou a porta do rancho e se adiantou até a cerca e anunciou ao forasteiro – Eu sou Mané Tercilo. Moro aqui desde menino. O moço apeia. É bem-vindo. – falando isso, afastou os paus da tronqueira para dar entrada ao visitante com sua montaria.
            – Prazer, seu Mané Tercilo. Desculpe-me estar incomodando – disse Felipe apeando do burro.
            Mané, muito solícito, como um bom urucuiano, apressou em convidar Felipe para chegar ao seu rancho: – Vamos adentrar no rancho, seu Felipe. É pequeno, mas cabe nós dois e mais, pois é de bom grado receber os amigos.
            Dito isso, Mané abriu a porta do rancho para a entrada de Felipe a uma sala, muito pequena, iluminada apenas pela luz passada pela porta, sem janelas que era. Uma tosca mesa com três tamboretes de tálamo de buriti compunha o mobiliário humilde. Em um canto, numa pequena armação, encontrava-se um pote coberto de pano branco bordado, com dois copos de alumínio disposto numa travessa. Era só.
            À vista do pote, Felipe pediu ao Mané que o servisse de um gole d´água e foi prontamente atendido.
            – Toma, seu Felipe, que é pura e fresquinha. É da vereda. – Emendou, depois – Então, o que traz o senhor a esse fim de mundo?
            Felipe, com serenidade colocou o chapéu de lado, alisou os fartos cabelos e fitando seu Mané, relatou:
            – Olha, seu Mané, eu viajo meio sem rumo. Procuro uma fazenda que foi do meu avô. Ela está abandonada há muitos e muitos anos, nem sei como pode estar nos dias de hoje. Meu avô vivia nela, era muito rica em criação e produção. Sucedeu que, meu pai viajou para a cidade e não mais voltou, foi estudar. Depois, tempo depois, minha vó morreu. Meu avô sozinho naquela fazenda não aguentou a solidão. Deixou a fazenda nas mãos de empregados e foi atrás de meu pai. Eu era pequeno quando ele chegou em nossa casa. Lembro da conversa dos dois. Pouca coisa, pois era menino. Vô pedia para meu pai voltar e tomar conta da fazenda. Meu pai não cedeu ao pedido dele. Vô, todas as tardes insistia com meu pai dizendo que seu destino era aquela fazenda, fazenda de raiz da família. E o dois ficaram lá na cidade sempre repetindo a mesma história. Tempo foi passando até que meu avô se despediu desse mundo sem ver meu pai atender seu pedido. Morreu guardando tanta tristeza.
            – Ouvindo aquele relato, Mané deu um suspiro profundo e gemeu – Que história triste, seu Felipe.
            – Pois é, seu  Mané. Depois chegou a vez do meu pai. Também ele se foi. Esqueci daquela história até que um dia, bateu em mim um chamado. Não sei se era em sonho ou se eram vozes mesmos. Dizia que eu tinha de tomar conta da fazenda e que ela era o encanto da nossa geração. Não entendi. Mas o sonho se repetia e as vozes também. Resolvi então atender o chamado e aventurar pelo sertão em procura das terras de meu avô. Pode ser que a encontre, pode ser que não, pois tem tanta gente invadindo até terra produtiva, imagina uma esquecida.
            – Qual é o rumo dessas terras, seu Felipe? – perguntou Mané.
            - Não sei muito bem, seu Mané. Lembro vagamente do meu pai comentando com um amigo dele que meu avô abandonara uma grande fazenda na mão de capatazes nas bandas de um rio chamado Vazante, nas fraldas de uma serra de nome Constantino. Dizia que era um vale muito bonito, verde-verde de pastagens, um mundo novo.
Nisso, Felipe estancou a fala, ficou a modo de pensar. De repente, como num estalido, como se achasse uma coisa preciosa, gritou:
            – Seu Mané, é isso, o nome da fazenda é Mundo Novo!
Mané socorreu-o de imediato – Seu Felipe, pera aí. Sei donde fica essa fazenda. Não é longe, coisas de 10 e poucas léguas indo para o rumo de Goiás. Tá lá no Mundo Novo. Sei só que a tal fazenda é tratada, hoje, como a Tapera. Não foi tomada e ninguém vai lá.  Não é que seja assombrada, pelo que sei. Mas o povo tem medo dela.
            Felipe se agitou. A emoção palpitou em seus olhos e na face ruborizada. Depressa perguntou – Então, onde fica a terra, seu Mané?
            Mané Tercilo, chamou Felipe no terreiro e fez um desenho no chão, um mapa dando os rumos da viagem para chegar ao Mundo Novo. – O senhor vai deixar essa chapada e buscar o vão até encontrar o rio Manso. Vai acompanhar sua descida, sempre margeando. De um lado vai ter, quase sempre, as encostas da serra Taboão. Não tem de errar. – apontou no chão o risco dizendo  – É aqui o rio Manso. Oia aqui! Nesse ponto tem um ribeirão entrando no Manso. É o chamado Parado. Aí o senhor vai subindo por ele, vai ganhar de novo a chapada. Na cabeceira desse córrego, passado uma grande cachoeira, vai dar numa grande vereda. Segue por ela, sempre e lá no final, virando para a direita, o senhor vai ver um grande vale  verde. É o Mundo Novo. Lá está sua fazenda.
            No outro dia, ainda com a Estrela D´Alva no céu, Felipe arreou o ruão, agradeceu o adjutoro do seu Mané, chamou o cão e ganhou a trilha. Viajou o dia inteiro até chegar ao córrego Parado. Fez pouso nas suas margens. Peou o ruão deixando-o pastar na verde grama das margens do córrego e, debaixo de portentoso pau d´óleo, armou a rede, acendeu uma fogueira e pôs-se a matutar seus rumos. Pensava o que faria, depois de encontrar a fazenda. Abandonada estava como dizia o seu Mané. Como iria aprumá-la se recursos não tinha. Nada nadinha mesmo, senão sua coragem. Saiu de casa nas pressas só para atender um chamado que mal entendia. A noite passou sem dormir ouvindo o pio das corujas, uivos de lobos e até o canto do urutau, o que lhe desgostou.
            No dia seguinte, bem cedo, retomou a jornada. Pôs o ruão na estrada subindo pelo Parado. Ganhou a chapada e encontrou a vereda descrita no mapa do seu Mané. Foi contornando-a com admiração tanta por sua beleza. Era tão verde com as palmeiras enfileiradas, as palmas balançando no sopro da brisa dos gerais. Dava para perceber o bando de araras descendo em suas copas para saborear um fruto vermelho, o buriti. Mais próximo passando dava de ouvir o murmurar das águas brotando de locas e dançando no meio da raizama. Eis que, na cabeceira da vereda, virando-se para o lado direito, deparou com um belo vão, um vale verde, verde como jardim. – É aqui! –  suspirou Felipe, direcionando o ruão pela trilha que dava rumo ao vale. Em pouco tempo estava na planície. Não muito cavalgado, meio à entrada de um bosque fechado de aroeiras e pau d´óleo, encontrou a casa da fazenda – de fato, uma tapera. Seu coração disparou. Eis que, de repente, ele vislumbrou, na janela, seus avós acenando para ele com alegria. Assustou-se com a visão. E não foi só ele. O ruão estancou-se e levantou as orelhas querendo entender algum sinal do que não entendia e o cachorro ganiu ao invés de latir. Foi uma cena de arrepiar. Felipe não teve medo. Esporou o ruão que teimava em ficar estancado. Relutante seguiu, mas com passos medidos. Foram se aproximando... aproximando. Felipe de olhar fito na janela ainda divisando a sombra de seus avós. Ruão já trotava mais solto e o cachorro corria de um lado para o outro latindo, latindo como seu buscasse uma inhambu.
Incrível! O que parecia ser uma tapera, como atingida por um jato de luz, forte, fortíssimo, despencado de uma estrela, transformou-se numa casa reluzente. A casa ganhou vida. Sem medo, Felipe avançou pela porteira até encontrar a escadaria que levava ao alpendre. Desceu do ruão que não teve cuidado de amarrar e ele, sequer, aluiu do lugar. Degrau a degrau atingiu o patamar superior da escada e assim que pisou na varanda a porta da fazenda abriu de par a par. No interior da sala resplandecia uma luz suave, translúcida. Cristais bailavam no ar como pirilampos pareciam diamantes. Os janelões da sala abriram-se e mais luz iluminou o ambiente, mas era uma luz incomum, não do ambiente natural, do sol... No lado oposto à entrada Felipe divisou um corredor que parecia chamá-lo. Foi até lá, passo a passo. Atravessou o umbral da porta e adentrou no corredor e percebeu, então, que ele não tinha fim, como um raio de luz prolongado se afunilava e, a cada passo que dava, mais longe ele ia.
            Felipe avançou, avançou como uma pena a flutuar, nem sentia o chão sob seus pés. Aí, uma voz muito suave, doce como uma carícia, balbuciou aos seus ouvidos:
            – Você veio, meu filho. Você veio.
            Felipe se encantou na casa. Do lado de fora o ruão e o cachorro não deixaram o local esperando Felipe... esperando.
            E a tapera continuou mais tapera que nunca.
            Contaram essa história para o Mané Tercilo, que havia mencionado para algumas pessoas sobre a passagem do viajante Felipe em busca da fazenda Mundo Novo. Assim que soube do destino do burro Ruão e do cachorro, e ninguém falando do Felipe, ele imaginou o que acontecera e se benzeu:
            – Louvado seja o Pai do Céu. A tapera era o destino do seu Felipe.

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