João Naves de Melo*
Pois é o que conto, não por inferência do saber de livros ou de conselhos de entendidos, mas por ter morejado no sertão: a vida bucólica é modo do homem ser natureza e da natureza ser homem, um continuado e descontinuado do outro conforme o sopro dos ventos. Não queira precisar indagações biológicas. A certeza tem pousada na simplicidade que brota do ambiente onde o espírito tem mais profundeza que a matéria, a gosto, poderia se dizer, dos fisiocratas de tantos anos idos. É que muito do homem permaneceu, no costume de vida que teve – ele é ontem pelo atavismo de seus modos e viver; ele é hoje, pelo modo de romper a vida, como o correr dos rios, volteando e volteando, sem necessidade das retas; ele é amanhã, no modo amoletado de gostar da natureza e de se deixar por ela ser envolvido naturalmente, demoradamente, dolentemente, eternamente....
Homem-terra; terra-homem – é preciso a interação para que subsistam ambos.
O tempo correu desleixado... Arre! Um entendimento nasceu nas fontes das sabedorias de livros e teorias: preciso era socorrer o homem da letargia, do esquecimento, do abandono em que se encontrava no campo, à margem das grandes conquistas levantadas por revoluções e evoluções. Sim, imaginaram, com boa vontade – ou não – que ele se encontrava à margem de um novo tempo inaugurado. Quebraram-se os elos e, no aplicar de doutrinas avançadas, acabou-se por violentar um estado de vida natural, podendo-se dizer que o avanço dado contrariou uma ordem natural, mudando o rumo de uma vida sedimentada ao longo de séculos. Daí, sem nunca ter pisado, descalço, no chão, arrebentando o dedão do pé num toco, ou tomado banho pelado num córrego cheio de bagres e traíras; sem sentir o orvalho da madrugada escorrendo na pele e a brisa fresca cantando nas cavernas das orelhas; sem apertar as tetas de uma vaca e dobrar a valentia de um potro, querer mudar o rumo da história é capaz de provocar um desastre humano!
Taí, o sertanejo, o pelejador no campo, é, antes de tudo, uma extensão da terra e dela não se desassocia – ela é verdadeiramente a sua vida, a sua mãe. Cortar esse cordão, essa ligadura, é roubar-lhe a essência do viver. Vira zumbim....
De guardar tantas recordações e de gostar do que vi, faço este pálido registro, contrariando o que muito se fala e diz, quando se separa a alma do material – para dar mais valor a este. Vou lembrar, enquanto ainda é tempo de confirmar, umas coisinhas de nada do que vi e vivi no sertão do homem-terra. Depois, sei, uma ruma de coisas mudaram de vez....
O CORPO
De como o homem do campo cuida da saúde é ciência empírica que vem dos tempos perdidos nas noites seculares. É comparação grosseira dizer, mas faz sentido por ser natural: a maneira do cachorro cuidar dos incômodos gástricos, passando de carnívoro a herbívoro; também o gato tem seus dias de capim; o boi nas precisões do organismo lambe barro para saber do sal, tudo leva à relação íntima do ser com a natureza, é o instinto que leva à preservação. Com o homem, da necessidade vem a repetição do ato e, com os tempos vira conhecimento. O homem compreendeu a natureza e a sabença foi escorrendo de descendência em descendência.
Surgiram, então, as figuras do curador e do raizeiro, que conhecem cada planta e animal do sertão, relacionando-os com as doenças que vem de padecer. Até os menos entendidos conhecem do trivial no tratamento dos incômodos contumazes: febres, dor de barriga, úlceras, gripe e outros mais comuns. De um pouco para cada um é repartido o entendimento, pois o homem é natureza.
Lá no seu rancho, na entrada de um tabuleiro e saída de um cerrado, ele dispõe de sua imensa farmácia: raízes, cascas, folhas, flores, frutos, sementes e, na fauna, outro tanto de ingredientes para seus cozidos, xaropes (garrafadas), unguentos, emplastos, banhos, pós...
Zé Guedes, raizeiro de fama, tem catalogado mais de duzentas plantas das quais faz seus remédios salvadores. Deles, alguns:
Sambaíba: a resina da casca - usada para enxaqueca, sinusite e dores de cabeça. O chá das flores para dores de estômago e resfriado. A chá da raiz é utilizado para dores pulmonares.
Assa-peixe: o chá da planta inteira - para gripe e, externamente, para machucados.
Barbatimão: dos mais famosos e usados – chá para problemas intestinais, gastrites e úlceras estomacais e dores em geral. É usado externamente como cicatrizante.
Batata-de-purga: chá - para prisão de ventre e como purgativo (depurar o sangue).
Cagaita: o chá da flor - para problemas dos rins e bexiga. O chá da casca como regulador menstrual.
Carapiá: o chá da raiz é para resfriado e febre alta. O pó da raiz para desobstrução das vias respiratórias.
Grão-de-galo: chá da raiz e casca - como vermífugo.
Jatobá – chá da resina e da casca é para problemas respiratórios. A casca na cachaça é usada como estimulador do apetite.
Miroró: o chá é para emagrecimento. Curiosidade: o uso de seus ramos para açoitar animal é vedado, pois pode levá-lo à morte por secamento das carnes.
Papaconha: o chá da raiz é utilizado como purgativo para febre e resfriado
Pau-santo: a casca curtida em água fria é utilizada externamente para irritação dos olhos.
Poaia: chá da planta inteira para febre, resfriado. A raiz seca, reduzida a pó, é usada como purgante.
Sucupira-preta: casca, usada contra sífilis e diabetes; raiz antirreumática e depurativa.
Vergateza: o chá da raiz - afrodisíaco masculino e feminino.
Lagartixa: cozida viva, serve-se o chá para curar sarampo.
Banha de sucuri – serve para dores reumáticas.
Oléo de capivara – também para dores reumáticas e doenças respiratórias.
Banha de galinha – serve para inflamações respiratórias, atua como descongestionante.
Casco de tatu preto: adicionar o pó do casco, torrado, à cachaça para doenças do fígado, inchações nas juntas e pernas.
O ESPÍRITO
O padecimento pode ser do espírito. Então há de se valer dos conhecimentos vindos dos antes, com toda sabedoria, certeza e aceitação, por ser de tão correto e factível de curas profundas.
As benzeduras em primeiro lugar. Não tem quem quebre a fé que se tem num bom rezador ou numa senhora rezadeira ou benzedeira. Eles sabem o mistério de penetrar na alma da pessoa e, lá do fundo, arrancar os amuos para por na pessoa a vontade de viver de novo, a querência de se abrir para o mundo, quando se está tomado de incômodos ruins, coisas de mal olhado, de infuncas do "coisa-ruim", despeito e até mesmo fraqueza da cabeça.
Pode-se, ainda, prevenir, antes do acometimento dos males, valendo-se das simpatias, pois cada um, na medida de sua crença pode fechar o corpo contra os malefícios que rondam o homem por fruto das invejas, cobiças e maldades tantas e até mesmo contra faca e bala. Para fazer suas simpatias ele usa: pé-de-lobo, chocalho de cascável, semente de mucunã, palha de milho, amuletos, patuás e um tantão de coisas.
O curador é uma figura respeitadíssima ... e temida. A vida do sertanejo gravita em torno do curador. O curador pode curar, mas pode, também, atrapalhar a vida da pessoa, se quiser.
O SABER
À vista o homem do campo pode parecer simplório. Não se dá nada por ele, aquele tipinho, desmilinguido recolhido, cabeça baixa encimada por um chapeuzinho de palha ou couro, roupa de algodão grosso, precata de couro cru e o pito de palha na boca ou atrás da orelha, de pouco papo e jeito abestalhado.
Qual o quê! Fica perto dele umas quadras para se surpreender e logo ver que se está diante de um ser todo especial: contemplativo, espiritual, supersticioso, solidário, sábio no seu universo, como ninguém. O seu conhecimento da natureza é espantoso, formidável, inda mais considerando-se que sua fonte vem da observação e das experiências acumuladas, passadas por seus ancestrais. Cada detalhe captado é um rumo para as suas decisões; nada fica despercebido e, por isso, numa inter-relação constante ele se faz parte da natureza, um ser integrante, um galho da vida.
Eis alguns casos comprovados: ele é doutor em meteorologia. Anuncia com muita antecedência se o ano da próxima cultura será bom ou ruim de chuva, tendo como informações as "marcas de São João" e o comportamento de animais: jacaré e tartarugas nas estradas, longe dos cursos d´água ou lagoas - sinal de grande enchente; a correção de formiga ou cupins, traz o mesmo anúncio. De olho na flora, capta sinais registrados pela experiência: a produção de frutos silvestres – pequi, cabeça-de-nego e outros, quando é abundante, anuncia a carência de chuva – a natureza compensa a perda das roças com frutos naturais. Ele prevê a chegada das chuvas, também, pela velocidade do vento. Como? Só a experiência explica.
Conhecimento da matemática e física é visto na construção dos engenhos de cana, oficinas de farinha, carro-de-boi e outros instrumentos. Como explicar seu conhecimento para chegar à perfeição na construção das peças do engenho – as três moendas rodam à perfeição, sem travar os dentes, sob a pressão das canas introduzidas; a balança que move a moenda principal, puxada por bois, de uma leveza espantosa – o princípio da alavanca aplicado. O mesmo se vê na colocação das serrilhas nos molinetes da fábrica de farinha – a distribuição e a distância entre elas devem ser precisas para que não ocorra o travamento do eixo. Como ele chegou ao entendimento da contagem milimétrica sem qualquer instrumento de medição? O artesão dos instrumentos musicais (ele fabrica todos instrumentos musicais para seus folguedos, especialmente as folias: violão, viola, rabeca, caixas, pandeiros, balainhos, reco-reco...) Fazer um instrumento tão delicado como uma rabeca não é ofício facilitado, não é só juntar peças de madeira - existem parâmetros que devem ser observados com relação ao som que ela deve produzir. O mesmo se diz do violão, viola e caixas – há uma relação entre todos, quanto à sonoridade, a afinação, o que se vê, com surpresa e em especial, nas caixas (é afinada com a viola). Como se explica esse conhecimento para quem sequer tem o curso primário?
A ARTE
Na arte a sua alma mergulha na simplicidade e alça, depois, voos levando as imagens que buscou no coração da terra para nos mostrar suas coisas - é de riqueza de inexcedível singeleza.
A música é agradável, simples e pura. A inspiração está na própria natureza - o canto das aves: sabiá, canarinho, inhauma; os piados do ariri; os guinchos da gaivota; a graça e leveza da garça e a placitude do jaburu; o comportamento do guacho; a sutileza da raposa; a utilidade do gambá; o abraço do tamanduá e a graça dos peixes, entre tantos animais que fazem parte de sua vida. Tudo serve de motivo para suas décimas, pasquins e guaianas, em que conta histórias, envolvendo as pessoas do seu relacionamento ou para as danças do quatro, catira, lundu, onde as pessoas, com suas paixões são mescladas aos bichos e à natureza, com graça e simplicidade.
"Canarim preso na gaiola / que tristeza não será"
"Coitadim do ariri / ele vai fazê seu ninho / na gaia do pau mais alto/ lá na beira do caminho / "vai-tum, vai-tum, ariri / vai fazê seu ninho"
"Guacho véio tava dormino / acordô com a cachorrada / Ei! guacho véio / Cê perdeu a madrugada".
"Olerê carneiro dê! / Olará carneiro dá / Quem quisé carneiro manso / manda vaqueiro amansá".
Nas folias ele mergulha a sua alma, a sua vida, por extenso, na nostalgia que o prende às vidas passadas e o alça ao amanhã, com que não se preocupa, pois lhe basta o vivido, mas que ele passa com sua história. Nas noites caminhadas pelas trilhas, recebendo chuva ou o orvalho, nas madrugadas, indo de rancho em rancho para saudar presépio e cantar com os "compadres", ele escreve a história de sua gente. É o telúrico que se manifesta nos atávicos folguedos.
No artesanato - da seda ou palha do buriti; da taboca, do barro, do couro, da madeira macia como a imburana vermelha ou o duríssimo pau ferro ou jatobá - em tudo ou para tudo, ele transporta parte da sua alma, em traços leves, meigos e ricos, fazendo nascer objetos que vão compor seu dia a dia. A relação dele com determinadas plantas é por total dependência, do nascer ao morrer, como o buriti - dele faz sua casa, seu berço, sua cama, mesa e cadeiras, o chapéu (indefectível e inseparável chapéu, pois lá, quem anda sem ele é considerado doido, o que vale dizer tratar-se de mais um exemplo de sabedoria no trato da saúde que recomenda ao homem manter os pés quentes e a cabeça fresca), a capa (carocha), cordas, laços, cestos, balaios, gaiola, brinquedos, a rede que vai levá-lo à última morada e a cruz que vai marcar seu leito eterno. O buriti ainda lhe dá o fruto saboroso para licores e doces.
AS LENDAS
Estão internalizadas no homem como um sentido de vida. Nelas ele encontra explicações para muitos fatos que o envolve e que servem de freio para muitas de suas intenções. O fazendeiro que virou rico da noite para o dia, é logo denunciado de ter feito "pacto com o famaliá"*. O Romãozinho* é invocado para por freio em menino traquina. O caboclo d´água entra nas histórias dos pescadores para mostrar os perigos do rio e os cuidados que devem ser tomados, pois, grande parte deles não sabe nadar e de como ter – ou não – fartura de peixes numa pescaria; a décima do Rio Abaixo, o temor arraigado do "coisa-ruim", uma bela melodia, uma história interessante, evitada com o sinal da cruz.
No campo da crendice, deve-se considerar a simplicidade, a alma pura e a bondade do homem do campo que se sacia com a verdade que conheceu, que lhe foi repassada, sem querer saber além do necessário ou refleti-la, buscando extrair outra compreensão. Basta o que seus avós e seus pais lhes passaram. Aí tudo se torna mais simples e a vida flui com maior naturalidade, sem grandes indagações ou complicações.
O TRABALHO
O homem do campo, além desse salutar convívio direto e permanente com a natureza, acrescenta em sua vida outros tantos fatores que o levam à mais perfeita união com a terra e com a natureza. Come-se pobremente, mas jamais passava fome, nunca. Na terra busca o sustento sem grandes avexamentos, preocupações ou neuroses – é o plantar com sabedoria, no tempo certo, aquilo que precisa para seu sustento imediato, na quantidade que pode cuidar, prevendo a sobra para a catira a fim de se suprir daquilo que não produz – querosene e sal. Feijão (geralmente o catador que não tem como perder, fava ou guandu), mandioca (uma variedade de alimentos dela oriundos: in natura, farinha, tapioca, croeira, puba, margarina...), milho, arroz; a mamona para comercializar (uns chegam usá-la para extrair o óleo combustível para os candeeiros), algodão (alguns têm um tear rude numa tenda rústica, no quintal, onde cuidam de preparar seus panos para costurar calças, camisas, saias e cobertas); um cercado de cana, para fazer a rapadura ou a garapa para adoçar o café da meninada; alguns pés de laranja, limão, mamão, caju, a nunca ausente pinha, e moitas de bananeiras. Alguns pés de fumo para suprir seus pitos; moitas de capim santo e erva cidreira; gamelas ou cochos nos jiraus (para evitar os bicos das galinhas) com salsinha, coentro, hortelã, malvão. Um poleiro mal enjambrado para o pouso das galinhas que passam o dia catando bichinhos no quintal, sempre vigiadas para evitar as garras do gavião ou ataques de raposas e saruês; o cercadinho para engorda dos leitões... De quando em quando é abatido um capado. É fartura oportuna para descansar do gosto do ovo e da galinha. O toucinho é salgado; os pernis pendurados à fumaça do fogão num processo lento de defumação; os pedaços menores são cozidos na banha e guardados em latas para serem conservados o tempo que for preciso. Quando a colheita de milho e mandioca é boa, aumenta-se a criação de porco e galinha. Se é fraca, diminui-se os porcos e as galinhas – tudo tem que ser de conforme as posses É comum dar dias de trabalhos para os vizinhos, os compadres – é o mutirão de tanto apreciamento, pois é oportunidade de conversar suas coisas guardadas, tomar umas branquinhas, cantar no eito, comer diferente e, ainda, de ocasiões, até dançar baile. É tempo para reunir e manter os laços tradicionais, segurar as amizades e fazer compadrios que se confirmam em volta das fogueiras de São João. Não trabalha à exaustão, só o suficiente. Guarda uma grande quantidade de dias santos, mas isso não faz falta à sua subsistência.
Uns lidam no campo, com animais, para um patrão rico: vaquejando ou tirando leite; domando animais, castrando ou viajando com tropas.
AS FESTAS
Como se diverte? Fácil, barato e salutar ao corpo e ao espírito. As tradicionais festas dos Santos Reis, no solstício de verão: saudação à lapinha, com todo respeito e amor, de fincar o joelho no chão até doer e dar dormência; as danças de agrado para o dono da casa: quatro e lundu, quase sempre, podendo sair uma catira. É um contentamento. São Sebastião, merece agrado com sua folia. De tal modo vem as do solstício de inverno, a tríade Santo Antônio, São João e São Pedro – deles o mais predileto é o do carneirinho, por ter cara tão meiga. Agosto não passa sem a folia de Bom Jesus da Lapa que enche os corações dos fiéis da beirada do rio até sumir nos gerais, entrando em todo ranchinho perdido no mundéu e, de igual modo, com o mesmo fervor, a de sua mãe, Nossa Senhora Aparecida. Nas datas móveis tem a do Divino Espírito Santo – já foi de grande querência, caindo quase ao desuso em razão do refreamento dos padres; em dezembro, antes dos Reis, tem que ser adorada e muito cantada a Santa Luzia.
Acompanhar uma folia é uma emoção, tem um fluido que arrasta para dentro de um mundo de sons que parecem hipnotizar a alma: a rabeca repete as vozes, quase chorando, numa doçura de embalar; as violas traçam acordes e volteios, acompanhadas de violões que marcam seu passeio por dentro da alma e de fundo, numa suavidade fascinante, as caixas, apenas dizendo, num toque de saudade distante, muito distante, que estão ali, num tum-tum de chamar os santos para receber as oferendas dos corações embevecidos de foliões e acompanhantes. Um concerto que traz as notícias de muitas noites e história milenar, porque é arrancado da alma dos homens, fluindo por seus dedos até às cordas que nos transmitem, então, a vida.
Esfogueia a Catira:
"Companheiro é minha vez/ me ajude um bocadinho? Destá, destá ingrata / Um dia há de se arrependê"
Sacode o Quatro: "Canarim ganhou solto / que alegria não será / Canarim, passarim bonitinho? foi pra rua passeá"
No gemido das violas e com o repicar das palmas, sapateam e tocam as barrigas os pares repetindo: Vô mimbora/ num vô mimbora não/ pois vi duas roxa chorano / debaixo do laranjá. Fazeno qui vô mimbora / meu coração num vai imbora não/ pois vi duas roxa chorano / debaixo da laranjá.
A FAMÍLIA
O regime familiar é o patriarcal. Mulheres e crianças são submissos, não têm voz ativa e pouco se manifestam, dando tudo como muito bem sob a proteção do "senhor meu marido", ou do "senhor meu pai".
Por comum é numerosa e se explica: não há recursos para contratar serviços e tocar os trabalhos da pequena propriedade, o que necessariamente envolvem o homem, a mulher e os filhos. A cada ano aumenta a prole (que faz lembrar um tipo popular dessa região, Pedro Duro: "aumenta a prole porque num acredita em pirla e faz a vontade de Deus") e assim vai até a mulher se exaurir de vez, quando não falece, antes, de parto, muito comum, pois são sempre feitos por parteiras – mulheres veneradas, também chamadas de "mãe de apanhação".
Não há muita preocupação com a educação escolar dos filhos. Primeiro porque seu trabalho na lavoura é indispensável; segundo porque as escolas são poucas e distantes – em certas regiões sequer existem.
O jantar é servido com o sol ainda alto. A noite não tem vida. Dorme-se com as galinhas e acorda-se com a Estrela D´Alva.
Respeita-se, religiosamente, os mais velhos, que sempre têm a derradeira palavra.
VÍCIOS
Nem se pode dizer que seja um vício o costume antigo de "pitá" e tomar uns golos. É de tradição, pois, como se diz no sertão: "de mamano a caducano todo mundo pinta e bebe pinga". Raros são os bêbados contumazes, que aborrecem e criam problemas. Bebe-se nas folias, nas festas e nos fins de semana, quando permite o dinheiro, pois não são muitas e próximas as vendas, por isso, para beber fora das ocasiões de festas é preciso comprar um litro ou uma meia, e isso nem todos podem.
O pito é de fumo de rolo, da plantação do quintal ou de um morador da região – é o paeiro que ele tem quase sempre na boca ou atrás da orelha, o tempo todo. Paeiro e homem parecem companheiros. As paradas na limpa das roças são constantes para pitar e como é demorado acender o paeiro com a binga (geralmente muito rústica: um recipiente feito de chifre de boi, onde fica uma mecha de algodão seco que é aceso através de fagulhas provocadas por um pedaço de ferro - "fuzive" - friccionado numa pedra de fogo). A mulher não é de muito pitá. Sua preferência – e isso é comum – é mascar fumo. Dizem que é bom para clarear os dentes.
O fumo, assim como a cachaça, são muito usados em remédios: para curar picadas de insetos e até de cobra. A cachaça vai em quase tudo que é raizada, o que acaba sendo uma boa desculpa para sempre tê-la em casa.
O RESPEITO
Deus, em primeiro lugar, depois o padre e, seguindo, os mais velhos. Deus lá no alto, mas aqui na terra ninguém tem mais prestígio e respeito do que o padre. Dele é o melhor lugar na mesa, a melhor comida, os melhores pedaços da galinha, os doces, a cama e forros especiais. Ele é tão especial que a água em que toma banho não é jogada fora: vai para as garrafas, pois existem muitas simpatias apontando suas excelências medicinais e para o espírito. Seguindo a linha vem o pai, a mãe e os irmãos mais velhos. As pessoas de fora também são muito respeitadas - são recebidas com reverência e, pelos meninos, com o pedido de bênção.
O homem do campo, em seu território sabe tudo, domina tudo, fala com propriedade do seu universo – dos bichos, das plantas, dos remédios, do regime de chuva, do tratamento de animais, da caça e de tudo que lhe cerca. Fora do seu universo ele olha, invariavelmente, para baixo quando fala com as autoridades – prefeito, juiz, delegado, polícia (dos quais tem verdadeiro pavor) ou comerciante rico. Interessante anotar, no caso, que embora abaixe a cabeça, não é comum tirar o chapéu, nem quando adentra numa casa, só o faz na igreja, quando participa das rezas ou nas folias, quando é beijado o Menino Jesus. O chapéu é parte do seu corpo, continuação de sua personalidade. Todos usam, desde o pequenino, ao mais idoso – quem não o usa é tido como doido. As mulheres preferem o pano prendendo os cabelos, descendo as pontas nas costas. De hábito o homem fala pouco, muito pouco mesmo. Costuma-se dizer que é monossilábico – "Inhor sim; inhor não". É tão resumido que muitos deles respondem o cumprimento de bom dia e boa noite, simplesmente com um"dia" ou "noite". De comum fala mesmo quando é perguntado e não estica conversa. "Quem conversa muito dá mio pru bode"! Pior as mulheres que sequer fazem parte das rodadas, das conversas, ficam sempre à parte, de longe, só comparecendo se chamadas.
ANIMAIS SILVESTRES
Só abate o extremamente necessário à sua sobrevivência: veado, tatu, teiu, inhambu, codorna, verdadeira e outros. A carne, o couro, o chifre, a pata, os testículos, a bolsa (gambá), tudo tem utilidade prática e indispensável à sua sobrevivência.
ÁGUA E TERRA
Não se encontra um rancho perdido no meio do cerrado, se uma fumacinha subiu de uma chaminé é possível logo deduzir que, por perto, tem água e uma tira de terra boa. O homem não se instala longe da água: córrego, vereda ou onde pode abrir uma cisterna. Ele tem métodos e noções para saber da boa localização de um bom lençol d´água - uso da forquilha, de um arbusto (com ela rastreia o chão – a ponta da forquilha pende, quando localizado um veio d´água) e a observação das plantas que só crescem onde há fartura de água no subsolo: quaresmeira, pimenta de macaco e outras. Não carece de ser muita água, pois pouco ele usa: é para comida e animais. Vasilha para lavar são poucas; roupa lava-se com raridade, pois geralmente ele usa a mesma muda por tempo indeterminado, no trabalho. Vestir roupa limpa, passadinha, só por ocasião de missa ou culto na comunidade, ou quando das idas à cidade. O banho também não é exigência diária. Quando tem córrego ou vereda por perto ele é de meio corpo, da cintura para cima – os homens – as partes de baixo, as mulheres. Banho de cabeça e tudo, só de quando em quando....
Ele precisa da terra, de onde tira todo seu alimento, mas a prática do cultivo é arcaica, como lhe veio dos anos passados e das farturas de terras, imensidões de matas e campos virgens. Entende que a queimada é necessária para matar os bichos ruins da terra e que, na cinza, a produção é maior. Faz sentido em um ano, nos outros a terra enfraquecida produz menos. Aí ele repete o processo e vê que, na cinza, dá-se mais e não aparecem "imundiças". Porém, fora as áreas para cultivo, ele não estraga a terra, não procede derrubadas, senão por absoluta necessidade: "furar abelha", tirar uns postes para fazer cercas, madeira para casa e por aí afora.
DOS TEMPOS IDOS
Lá se foram os tempos. Do meu primeiro contato com os gerais urucuianos até à entrada deste milênio, muita água brotou no cerrado, muita areia foi arrastada para o Velho Chico e muita, mas muita coisa mesmo mudou no sertão. Hoje a vida do sertanejo não é um arremedo da que vi, vivi e aqui contei, só de lembranças e por achar, por experiência, que apesar da aparente pobreza, vida solitária e coisas mais que ele vivia, segundo a crença criada pela sociedade preocupada com ele, sua vida era melhor... Antes, muito antes, acontecera o mesmo com os índios. Criaturas ímpias, precisavam de uma religião; "ignorantes", precisavam de escola e saber da leitura; selvagem, precisavam ser civilizado. Com o tempo muitos povos que nada tinham de selvagem – a não ser aos olhos dos pretensos civilizados – ficaram sem identidade: não conservaram seu estado natural nem foram transformados em "civilizados"; perderam suas raízes, não sabiam mais das suas coisas e jeito de viver e não aprenderam nada do branco. Ficaram no meio ou sem meio e, para completar, sem-terra, sem tradição, viciados e doentes, muito doentes.
Quanto à vida no sertão, de como vi e vivi, não tenho autoridade para dizer se era melhor, só do meu gosto, da minha emoção, mas posso garantir que a transformação ocorrida foi para pior, em todos os aspectos, pois nela não se observou a relação do homem com o meio, com a natureza. Levou-o a uma vida diferente em que ele, de repente, passou a ser um acessório, desligado da natureza que lhe provia de bens materiais e espirituais. Pode-se dizer, sem medo de estar enganado, que ele foi prostituído.
A vida mudou demais, muito mesmo. O sertão está virando cidade. Tem luz elétrica, escolas e igrejas de todos os credos por todo lado – de repente, daquela relação ingênua, pura e simplista que ele tinha com Deus, quase fetichista, ele foi informado que para ganhar o céu era preciso dar dinheiro, dinheiro que ele não tem, mas tem que conseguir, senão...-. Abriram estradas largas para os automóveis; tem televisão por todo canto – antenas comuns e enormes bacias das parabólicas; telefone fixo; motos e bicicletas rodando por onde antes trotavam garbosos cavalos e burros. A meninada se veste como os jovens urbanos, das capitais (muitos deles se aventuraram por São Paulo e Brasília-DF em busca de dinheiro) onde, quase todos adquiriram hábitos estranhos e, quase sempre, vícios perniciosos. Quando voltam ao sertão, é uma festa, pois chegam coloridos, trajando imensas bermudas, camisões, bonés e tênis grossos; rádios e máquinas penduradas no pescoço; um palavreado ininteligível e quase sempre – com ar urbano e importante – desejando saber o nome de coisas que foram parte de sua vida num passado recente. Manifestam estranheza quando veem um grupo de foliões e não se identificam mais com as danças do quatro e lundu, com o batuque das caixas – só sabem como rebolar ao som estridente da onda, que repete à exaustão em seus gravadores – uns do tamanho de uma geladeira para mostrar importância.
Não foi tudo. Veio o êxodo rural. As grandes empresas ocuparam espaços, apertaram os campesinos e muitos se viram obrigados a deixar o campo – por bem ou por mal. Era preciso espaço para o plantio extensivo de pastos, soja e eucalipto. Depois, o Governo com a pretensão de melhorar a vida do campesino e assegurar-lhe direitos civis, paradoxalmente, prejudicou-lhes, atrapalhou a sua vida, com a instituição do Estatuto da Terra e estendendo a Legislação Trabalhista ao meio rural. A relação que havia entre o pequeno agricultor ou agregado com os fazendeiros se deteriorou. Não existe mais lugar para eles nas fazendas. Quando necessário, o fazendeiro contrata trabalhadores "boia-fria". Veio mais: a loucura que foi construir complexos de casas populares para abrigar, na cidade, a população rural, alegando questões sociais, quando a assistência deveria ser levada a ele, no campo. São Francisco tem um bairro, com mais de 10 mil pessoas, a grande maioria do meio rural. Muitos vieram atraídos pela fantasia, pelas luzes, pela ilusão, considerando, é claro, a dificuldade em que viviam, especialmente pela falta de água, em algumas regiões. Programas posteriores mostraram que o rumo era outro, a assistência foi chegando ao campo através de associações comunitárias e a abertura de poços tubulares comunitários (antes eram coisa de política, só para o fazendeiro); energia elétrica, instalação de escolas, transporte... Para muitos já era tarde, o mal já havia sido feito.
As mudanças... tudo contribuiu para empurrar o homem para a cidade ao invés de levar-lhe o conforto e assistência no campo. Tanto fizeram que ele veio para a cidade, com uma mão na frente e outra atrás. Deixou seu universo escorraçado pelos fazendeiros que não podiam mais ter agregados ou premidos pelas grandes empresas de reflorestamentos ou carvoejamento, ou enganados por tutaméias de dinheiros por suas propriedades. Deixaram seu universo por um mísero espaço de 50 m2 (casa popular) na cidade: sem quintal. Não tem onde criar uma galinha, o porquinho, plantar sua rocinha ou uma moita de cana. Não tem serviço. Não tem nada, senão a caridade do padre Vicente que muitos condenam por estar viciando os pobres. De repente seu mundo desmorona de vez: ele perde a alegria e a dignidade, vai à rua, cabisbaixo, para pedir uma esmola – ele o forte e valente sertanejo. Seus filhos seguem-lhe o caminho da dor e humilhação – "uma esmola pelo amor de Deus". Suas filhas vendem o corpo: meninas de quinze anos começam a parir e parir filhos, para aumentar o tamanho da dor e da miséria. Um consolo, para uns, como se fosse uma loteria: o benefício do INSS, quando chega a idade. Ou ter de viver na dependência da cesta-básica, na humilhação de cadastramentos, quase sempre políticos, e enfrentando filas públicas, servido à execração – "vagabundos, porque não vão trabalhar".
Imagino as noites desse homem. Será como fica seus corações, quando veem uma lua cheia, quando chega as quadras das folias? Para onde vai seu coração que era acostumado com os gemidos de uma viola ou rabeca; ele que cantava as coisas bonitas da vida e do sertão. O que teria, agora, para cantar e contar?
A vida do homem ainda está na natureza...
* Membro da Comissão Mineira de Folclore
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