segunda-feira, 31 de julho de 2017

UM GIRO PELO SERTÃO

Estrada poeirenta, mata seca e xixá

        A estrada é um corte estreito rasgando o coração da mata seca pingada de  árvores, espetadas ao céu, sem folhas, de variadas espécies caducifólias: aroeira, folha-de-bolo, pau-pereira, caraibinha, imburana, mutamba, caroba e pingadas de  embarés e paineiras. De verde, só o de juá-de-boi, que resiste a qualquer seca ou o  tamboril com as primeiras folhinhas adiantadas. A paisagem, quase imutável, mostra-se dourada pelo pó levantado do leito da estrada  soprada pelo vento ou pelo roçar das patas de animais no viageiro. Vislumbra-se, ainda, em plano inferior, garranchos das vaquetas – esquálidos e desprovidos de folhagem, uma cortina cinzenta de beleza triste.
            Vencendo curvas, mata-burros e buracos, destampa-se um pequeno povoado. O primeiro contato é com o humilde cemitério – céu aberto de sol escaldante, de impressão causar aos olhos de ver fumaça ascendendo aos céus. Ali, meio a toscos túmulos, debaixo de um pé de mutamba, como era de desejo, o túmulo do mestre Minervino. Reverencio-o com um pensamento de saudade, lembrando do nosso primeiro encontro em sua humilde oficina (uma banca) debaixo de um solitária xixá, encostada em um umbuzeiro. Já o conheci desde o encontro no dia de Bom Jesuys da Lapa, 6 de agosto de 2002, quando o entrevistei e publiquei notícias no informativo Carranca da Comissão Mineira de Folclore – foi a porta aberta para sua viagem além fronteiras – da grota do Surucucu, no Angical para o Brasil com suas violas e rabecas.
Ganhou até oficina do IPHAN e fez discípulos. Que continuaram a sua arte.
            Subindo um leve tope, vislumbra-se a igreja do povoado – pequena, singela, mas bonita, dominando a paisagem.
            De estirão abaixo, chega-se ao ribeirão do Angical. Famoso, no nome e na valentia passada, onde corria muita água, de grandes cheias, de força tal que foi capaz de carregar a ponte de madeira ali existente. O que se via, agora, era pó, tauá e pontas de pedras.
            Dali depois a topografia era outra, bem diferente, nada parecida com os gerais urucuianos. Inicia-se uma subida, coleando pequenos vales e pedreiras. A vegetação torna-se mais rala. /chegando a um altiplano as vistas alcançam horizontes esticados.          Curvas, rampas, pequenas propriedades – umas bem edificadas, bonitas; outras humildes, muito pequenas, todas porém com dignidade. Rebanhos de bovinos em recantos de pastos. Vacas com bezerrinhos serelepes, incrivelmente gordos, considerando a seca brava que assola a região. De repente, uma surpresa, o inusitado – ainda numa leve subida, com curvas e buracos ou socalcos com pedras pontudas, onde não se pode rodar o veículo além de 10km/h, surge uma placa de sinalização alertando: “Velocidade máxima: 40km”. Logo depois, mais duas placas anunciando quebra-molas – na verdade, dois morrotes. Desnecessárias, todas elas, pois a estrada não permite imprimir velocidade.
            Viagem à frente e nada de chegar ao destino. O sol já descambava no horizonte, anunciado a despedida do dia. Surge num amplo terreiro, uma bela casa com cerca de madeira à frente. Bem à hora para buscar informação, pois já nos considerávamos perdidos no sertão. O morador, gentilmente, voz mansa,  orienta: “aqui fica perto de Lapa do Espírito Santo. O destino que buscam ficou para trás, coisa de quatro mata-burros passados. É descer de volta, encontrar uma placa anunciando a estrada para a igreja da Taboquinha e seguir por ela”. Retrocesso. Depois de bem rodar por uma estrada cheia de pedras e buracos e sem número de cancelas enfim a Igreja da Taboquinha. O sol já escorregava rumo ao ocaso, preguiçosamente  se deitava sobre a galharia seca, que se estendia além do de se ver.
Chegamos - eu, minha filha Rachel e seu noivo Alan, o amigo Dirceu Lelis e a violeira/cantora são-franciscana Ana Patrícia. O propósito era encontrar o grupo do projeto “Foliões e Tocadores de Taboquinha da Tapera”, que promovia um encontro com ternos de folias da região no fechamento de uma etapa do dito projeto.  Não os encontramos, estavam percorrendo caminhos, visitando casas e casas da comunidade, como fazem os foliões nas suas funções de cantarolia e adoração à lapinha.
O sol caía. O horizonte cobria-se de dourado esvaindo-se para o plúmbeo – seria noite chegada breve. Não era possível aguardar os foliões, pois o receio da volta, sem conhecer a estrada, era grande – preciso era empreender o regresso sem muita delonga. Contudo, uma esbarrada foi preciso, o convite irrecusável veio de uma portentosa xixá carregada de frutos. Logo, eu e Dirceu apontamos as lentes de nossas máquinas para os enormes frutos vermelhos se abrindo. Um, outro e tantos mais, de beleza a causar emoção, porque no sertão tão áspero, tão seco, eis que da natureza nos vem raro presente. Buquês de miúdas flores ainda enfeitavam algumas galhas. No mais eram os frutos vermelhos com suas cápsulas lenhosas, grandes, também muito vermelhas. Um punhado de frutos estava se abrindo, expondo na parte interna as sementes negras  ainda presas à placentação. Dezenas delas agarradas às cápsulas como bebês, pelo cordão umbilical. Passamos à colheita dos frutos para garantir as sementes que, depois de preparadas, seriam transformadas em deliciosos petiscos. Patrícia atirava toletes de madeira nas galhas e vibrava com a caída das sementes negras. Alan e Rachel, subindo na mesa de um carro de bois, agarravam as galhas mais baixas para alcançar os frutos e, assim, fazer farta colheita. Eu e Dirceu nas fotos para registrar aquele momento tão raro, incomum na aspereza do sertão ressequido, mas belo, por ser sertão.
O pé de xixá pintado de frutos vermelhos, tão enfeitado como rica fantasia; o pasto seco, tão seco de folhas douradas quietas ao beijo dos raios vermelhos do sol poente; no fundo, na linha do horizonte, copas de árvores agrupadas, só galhos abraçados, filtrando o sol. Um quadro incomum, raro e espetacular de despertar emoção porque revelava uma beleza diferente. Não era tudo. A natureza  surpreendeu nossos olhos  com um solitário um pé de algodão de seda ou “vovozinha”, como carinhosamente o chamam os mais antigos. Folhas verdes, sem abundância, maçãs como as do algodão comum, se abrindo e deixando escorrer fiapos brancos, leves e meigos como seda, agarrados às minúsculas sementes, bailando ao suave sopro da brisa vespertina, quase imperceptíveis, como libélulas em gozo de liberdade. Contrasta a brancura de neve do algodão de seda com o amarelo do capim e o vermelho encarnado dos frutos do xixá, tudo compondo uma aquarela de beleza rara.
Momento final: poses para registrar a despedida do sol. Pôr do sol no alto da serra da Taboquinha contemplando o horizonte distante, uma linha marcada pela mata seca.
O sol se despediu, enfim. A noite caiu de vez. Ganhamos a estrada de volta a São Francisco.
Mais uma vez – nos gerais ou nas chapadas; na beira de uma vereda ou na barranca do meu rio; nas matas de galeria ou nas ciliares – o sertão me mostrou a presença do Criador. É preciso estar em paz de espírito para solver sua divina presença em nossa vida. Um meio dos mais gratificantes é pela natureza e, claro, no convívio com o humano que irmãos somos todos nós.
        
          
           








        

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