segunda-feira, 31 de julho de 2017

SÃO ROMÃO NINHO DE TRADIÇÃO



Neste ano, enfim, participei da tradicional festa de Nossa Senhora do Rosário em São Romão - muitas vezes ensaiada e agora realizada pelo compromisso firmado com a são-romanense Rita de Cássia, com um motivo especial - sua família se preparava com fé e amor para a festa que, neste ano, teria sua irmã Rosália como rainha. No sábado peguei a estrada tendo André e Guilherme como companheiros. Na chegada um imenso congestionamento na travessia do Rio São Francisco - tanta gente buscando São Romão. Fomos recebidos por duas ex-caiomartinianas: Darluce e Neinha. Outros lá estiveram, antes, mas como atrasamos muito, foram se preparar para a missa, pois já caía a tarde. Fomos instalados na bela e confortável casa de Darluce e Pedro (na fachada da casa afixada uma gentil faixa pelos meus queridos ex-alunos e amigos dando-me as boas-vindas na acolhedora São Romão. Emocionante), na moderna avenida Presidente Tancredo Neves - como São Romão tem crescido e se modernizado! Depois de um breve descanso, com tempo para agradável bate-papo acompanhamos Darluce para o primeiro ofício religioso de nossa participação - o encerramento da novena de Nossa do Rosário. Chegamos ao largo onde foi erguida a igreja de Nossa Senhora do Rosário. Disseram-me que erguida por escravos que têm a Senhora do Rosário como padroeira. A igreja guarda, ainda, muito da arquitetura original, o que se vê em uma parte do telhado - uma parte de telhas e madeiramene antigos, as arcadas dividindo o interior em três naves e um belo altar onde, lá do alto, reina a imagem de Nossa Senhora do Rosário. Fiquei sabendo que o altar original sofreu um sinistro. A missa foi celebrada pelo padre Arimatéia que passou por São Francisco, com participação de um belíssimo e afinado coral. No final da missa a coroação de Nossa Senhora por um grupo de anjinhos com direito ao acompanhamento da banda de música Sete de Setembro com o maestro Mário Torres (Marão).

O CORTEJO DO REI

Veio uma parte muito esperada e emocionante: a coroação da rainha e do rei da festa (Cosmo e Rosália), sob muitos aplausos e vivas. Seguiu-se, depois, o cortejo levando o rei à sua casa. Muita gente e a banda animando a caminhada. Na entrada da casa do rei a guarda paramentada com muita distinção e dignidade, investida na alta autoridade de guardiães da tradição de Nossa Senhora do Rosário. Uma enorme tenda no quintal da casa com duas mesas cobertas fartamente de diversos alimentos. Numa tomaram assento a guarda do rei e, na outra a banda de música que executava de minutos em minutos variados números musicais - dos dobrados à música popular, tudo com muita graça e harmonia. Alcólitos se ocupavam de servir a multidão levando balaios e mais balaios de quitandas acondicionadas em sacolas que eram ali consumidas ou levadas para casa. Fartura satisfazendo a todos. Ficamos ali, eu André e Guilherme vivendo aquele momento mágico.

ALVORADA

Fomos dormir bem tarde, mas isso não impediu que às 4h Darluce desse o primeiro aviso: a alvorada. Levantei-me - o que não fizeram André e Guilherme. Cedo estava, por isso voltei para mais um cochilo. Às 5 h não teve jeito. Lá fomos, eu e Darluce, na fresca manhã sanromanense com o céu ainda apinhado de estrela, para a casa do rei, onde teria início a alvorada puxada pela banda 7 de Setembro. Na grande praça uma multidão ainda participava do show que varara a noite com a apresentação de diversas bandas - comemorava-se o aniversário da cidade, concomitantemente à festa religiosa. Na última banda, vários músicos da banda Sete de Setembro e, por isso, a alvorada ficou prejudicada.
Chamei Guilherme e descemos para a orla do rio para esperar os Caboclinhos que, segundo a tradição, desceriam o rio embarcados em uma lancha. Ali, por bom tempo, contemplamos a beleza do Rio São francisco beijando os barrancos e a ilha Guariba, palco de importantes capítulos da história de São Romão. A chegada dos caboclos estava atrasada e tinha motivo - a lancha estava encalhada em um banco de areia no meio do rio. Enfim ela se aproximou do cais, dela desceram os caboclinhos. O guia à frente puxando duas alas de guerreiros enfeitados com belos cocás e tangas de buriti. Passadas firmes, elegantes, ritmadas e a vibrante música puxada pelo cacique e respondida pelos demais guerreiros.A interessante e muito bonita a coreografia, no ir e vir, como se quisessem buscar o futuro, mas com a necessidade de resgatar o passado. Eles tomaram conta da avenida com sua dança frenética e o canto enchendo o ar. Sumiram a na direção da casa do rei.
Eu e o Guilherme fomos para a casa da rainha, pois por lá chegava a turma do congado comandada pelo Melé, uma figura fantástica, muito pequeno, mas cheio de energia, alegria e simpatia. Tomamos café com eles e, é claro, saboreamos tradicional paçoca de carne seca. Depois, como um bando de codornas espantadas com a chegada do homem, sairam eles depresa, dançando e cantando, avenida acima - foram se juntar aos caboclinhos para conduzir o rei ao palácio da rainha. 
Minutos depois, desceu o cortejo: caboclinhos e congado à frente, um espetáculo de rara beleza, muita graça. Com eles mergulhamos no passado, trazendo a história das gentes de São Romão, desde os índios que habitaram a ilha Guariba, aos negros que levantaram a Igreja Nossa Senhora do Rosário. Uma beleza o movimento deles, como onda do São Francisco tocadas pelo vento. Um grupo avançava contra o outro e se entrelaçavam. Difícil imaginar se daria certo, se não ficariam enroscados - os caboclinhos batendo as preacas em ritmo gostoso, firme, cadenciado e os congadeiros acompanhando a batida dos pandeiros jogando o corpo de um lado para o outro com graça. Misturam-se, de repente. E do que poderia parecer um tumulto avultavam-se os cantos definidos de cada grupo. Alternavam-se nas posições - ora um junto ao séquito do rei, ora o outro. O rei descia tão soberano ao lado do pajem ostentando enorme guarda-sol. Os dois protegidos por uma guarda formada por vários homens paramentados, circunspectos, formando um quadrado com uma armação colorida. Atrás, vibrando os mais ardentes e belos dobrados, a Banda Sete de Setembro, então completa e em uniforme de gala. O cortejo chegou à casa (palácio) da rainha que veio à porta receber o rei, acompanhada de sua inseparável e emocionada mucana e cercada pela família real, tendo à frente a rainha mãe, dona Terezinha, tão empolgada com aquele momento incomum e privilegiado da festa religiosa e cultural de São Romão. Recebeu o rei e todos aplaudiram. A banda festejou com dobrados. Dançaram mais vibrantes os caboclos e congadeiros. A rainha foi levada ao cercado e se juntou ao rei e, dali, seguiram para a igreja Nossa Senhora do Rosário enchendo as estreitas e históricas ruas de São Romão de cores, música e um quê de mistério de coisas guardadas e passadas pelo tempo. O cortejo deslizou entre casario antigo - é a parte mais velha da bela São Romão. Passou pela Igreja do Divino Espírito Santo (matriz), pelo casarão que serviu como cadeia, no passado, e hoje, museu; passou, ainda, pela tradicional escola Afonso Arinos, berço da cultura local e, enfim, chegou à igreja, onde rei e rainha entraram triunfalmente sob aplausos da multidão de fiéis.
Depois do ofício religioso, a recepção na casa da rainha. Uma ala da avenida foi fechada e forrada de mesas para que todos pudessem participar da grandiosa festa regada por cem caixas de cerveja - “apenas” - e uma infinidade de pratos. Afinal, foi um ano de preparação.
Uma festa que fica guardada nos olhos e no coração para sempre.


OS CABOCLINHOS

Escrever sobre os caboclinhos nunca terá a mesma emoção e sensação de que acompanhar o grupo em atividade. Dias atrás eu tive a oportunidade de acompanhar, pela primeira vez, o desempenho do grupo de caboclinhos de São Romão, famoso em toda Minas Gerais, por sua tradição. 
Não tive como conversar com o chefe dos caboclinhos, pois o meu tempo foi curto e eles estavam em plena atividade juntando-se ao congado e banda de música Sete de Setembro para conduzirem o rei e a rainha da festa de Nossa Senhora do Rosário à igreja para a celebração da Missa Festiva, encerrando as atividades em homenagem à santa. Não fiquei sabendo como surgiu o folguedo em São Romão, por isso, nesta página vou mesclar o que ensinam alguns renomados mestres a respeito e o que senti nas horas que passei com o grupo.
Diz o mestre Câmara Cascudo sobre os caboclinhos - que ele denomina como cabocolinhos - “trata-se de grupo fantasiado de índios que percorrem as ruas das cidades do Nordeste do Brasil. Com danças dramatizadas eles representam as lutas entre cabocolinhos e os brancos. Diz mais o mestre: “embora pareçam danças de origem ou aculturação ameríndia, na realidade são de influência africana, correspondendo ao Auto dos Congos, verdadeiros Reisados que, juntamente com o Auto dos Cabocolinhos, deram origem ao Guerreiro”.
Para Ariano Suassuna, o “caboclinho é a expressão da genialidade e miscigenação do povo brasileiro”
Existem outros entendimentos, como o do padre Fernão Cardim no livro Tratado e Terra da Gente Brasil que registrou, pela primeira vez, o folguedo, isto em 1584, dando-o como de origem indígena. Há sentido, pois caboclo significa a mistura de índio com branco e caboclinhos são filhos dos caboclos.
A beleza do folguedo está na coreografia, muito rica, com passos que exigem desenvoltura e excelente forma física, pois dançam e cantam por horas a fio percorrendo as ruas da cidade. A música é leve e ligeira, com os caboclinhos provocando constante som - muito bem ritmado, o estalido seco das preacas - conjunto de arco e flecha (a flecha tem uma saliência na base e a outra parte afulinada e, assim quando ela é arremessada passa quase toda por um orifício aberto no arco, retendo-se no final, com forte estalido, quando a saliência da base vai de encontro ao orifício). O cacique, à frente do grupo vai puxando versos ou loas que são repetidos pelos demais caboclinhos - em São Romão, quando acompanhei o grupo, os versos se referiam ao rei e à rainha do Rosário.
Causou-me muita emoção e alegria foi ver a presença de muitos jovens e crianças compondo o grupo. Isso é garantia do folguedo em São Romão, o que, certamente, já vem de longas eras. Bonito, precioso e emocionante, é o que se pode dizer sobre o grupo de Caboclinhos de São Romão.
Vou aguardar informações que me foram prometidas por minha amiga Darluce, da sua pesquisa de mestrado, para dar mais informações sobre tão significativo trabalho cultural da bela São Romão.

CONGADO EM SÃO ROMÃO

O congado é uma manifestação cultural e religiosa de influência africana adotada em algumas regiões do Brasil. Segundo o mestre Saul Martins o congado, na raia dos folguedos, é a maior ocorrência folclórica em Minas. É do mestre a descrição a seguir: “A festa é de devoção, um ritual sagrado, embora o profano a ela se associe. Entra-se no Ciclo do Rosário no princípio de agosto, mas comemora-se 7 de outubro o dia da padroeira. Abrange, pois, três meses seguidos. Ainda que frequentes, registram-se manifestações fora desse trimestre, como se vê em Serro - final de junho - e em Conceição do Mato Dentro - começo de janeiro para citar só dois exemplos.

Nesse evento, consideram-se quatro partes:
1) Reinado, que se compõe de rei e rainha congos, princesa Isabel, juízes e juízas, dignitários e mucamas, entre outros. De sua constituição devem participar os membros de crença. O papel do reinado é unir as diferentes guardas em um mesmo sentimento de fé em Nossa Senhora do Rosário e manter coesos os de cor. Sua origem se explica principalmente com a fixação de lembranças de época faustosa da rainha Ginga de Angola e de Chico Rei, o lendário animador de Vila Rica. O registro mais antigo da ocorrência em Minas pertence a André João Antonil, que aqui esteve de 1705 a 1706. Em sua obra, publicada em 1711, notícia dessas festas.
2) Embaixadas, que se traduzem em homenagem ou em destemor e valentia. E parte dramática, representada, e inclui a rezinga ou luta de espada entre embaixadores.
3) Guardas, que são em número de sete, menos o candomblé. Cada uma destas possui vestuário próprio e autonomia - é uma unidade rítmica e coreográfica. Segundo o lugar, em vez de guarda, que é a designação mais comum, chamam-lhe a corte (ô), banda, terno, batalhão.
A guarda não terá menos de doze de varsais. Há-as com trinta, quarenta ou mais. Varsal é cada um dos figurantes não graduados de qualquer guarda de Nossa Senhora do Rosário. A palavra, talvez, seja modificação prosódica de vassalo Curioso: em Alencar, Para, ela assume a forma valsar. Cada guarda tem função específica no Congado, bem definida.
4) Todos os figurantes, quer sejam membros do reinado, das embaixadas ou das guardas, pertencem à Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, instituição religiosa que se fundou em Minas Gerais desde os albores do século XVIII, inspirada nas Corporações de Ofício da Idade Média.

Em São Romão o congado é tradicional, está intimamente ligado à festa do Rosário, com inspiração na igreja erguida em honra à Nossa Senhora do Rosário, por negros, segundo os locais. Localizado em um largo, no final de uma das mais antigas ruas da cidade, no limite urbano, apesar de ser uma construção simples, torna-se imponente por sua história e fervor religioso do povo, sempre puxado pelo congado.Deve-se ressaltar, no congado de São Romão, a liderança de Melé que esbanja energia com sua baixa estatura, e, ainda, a presença de muitas crianças, o que garante que a tradição será mantida.
De quando vem o congado de São Romão, passando de pai para filho? É o que faz a sua bela história, para alegria do povo de São Romão e todos os amantes do folclore. É, sem dúvida, um registro histórico e cultural.



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VISTAS DE SÃO ROMÃO



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Fotos: Guilherme e João Naves
Diagramação: Jonas
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