ASPECTOS SÓCIO-ECONÔMICO E CULTURAL DA FARINHA DE MANDIOCA
I – INTRODUÇÃO
MANDIOCA – Manihot esculenta Craz - arbusto herbáceo da família das Euforbiáceas, subfamília das Crotonóides, cuja raiz contém importante reserva de amido. Os silvícolas e os caboclos a denominaram de “Pão dos Pobres”; padre Anchieta a batizou como “Pão da Terra”.
A lenda:
Mito indígena da origem da mandioca, versão atribuída a Couto Magalhães (1876): “Em tempos idos apareceu grávida a filha de um chefe selvagem, que residia nas imediações do lugar em que está hoje a cidade de Santarém. O chefe quis punir no autor da desonra de sua filha a ofensa que sofrera seu orgulho e, para saber quem ele era, empregou debalde rogos, ameaças e por fim castigos severos. Tanto diante dos rogos como diante dos castigos a moça permaneceu inflexível, dizendo que nunca tinha tido relação com homem algum. O chefe tinha deliberado matá-la, quando lhe apareceu em sonho um homem branco, que lhe disse que não matasse a moça, porque ela era efetivamente inocente, não tinha tido relação com homem. Passados nove meses ela deu à luz uma menina lindíssima, e branca, causando este último fato a surpresa não só da tribo, como das nações vizinhas, que vieram visitar a criança, para ver aquela nova e desconhecida raça. A criança que teria o nome de Mani, e que andava e falava precocemente, morreu ao cabo de um ano, sem ter adoecido e sem dar mostras de dor. Foi ela enterrada dentro da própria casa, descobrindo-se e regando-se diariamente a sepultura, segundo o costume do povo. Ao cabo de algum tempo brotou da cova uma planta que, por ser inteiramente desconhecida, deixaram de arrancar. Cresceu, floresceu e deu frutos. Os pássaros que comeram do fruto se embriagaram, e este fenômeno desconhecido dos índios, aumentou-lhes a superstição pela planta. A terra afinal fendeu-se; cavaram-na e julgaram reconhecer no fruto que encontraram o corpo de Mani. Comeram-no e assim aprenderam a usar a mandioca. O fruto recebeu o nome de Mani Oca, que quer dizer: casa ou transformação de Mani”.
Características botânicas: a mandioca apresenta-se sob duas espécies do gênero Manihot: a mandioca brava e a mandioca mansa, também chamada aipim ou macaxeira. Com 1,50 a 3 m de altura, possui caule delgado e ramificado, com folhas de hastes longas, palmatilobadas. Tem flores inissexuais, pequenas, amarelas, em cachos terminais, e seus frutos apresentam sementes elipsóides, pretas ou marmorizadas. As raízes são tuberosas, cônicas, polpudas, com casca pardacenta e massa branca, atingindo até 1 m de cumprimento e 22 cm de diâmetro. A seiva da mandioca brava contém o ácido cianídrico e a raiz, por ser altamente venenosa, não pode ser comida em condições naturais.
Exigindo poucos tratos culturais, o plantio de mandioca é intensivamente praticado no Brasil, aproveitando-se os roçados, pois a planta não necessita de matéria orgânica destruída pela queimação e dispensa até mesmo o emprego de adubos. Planta de clima tropical, a mandioca é a cultura que tem o mais longo ciclo vegetativo, variando entre 10 meses a três anos. Apesar de seu amplo cultivo, seu valor nutritivo é considerado baixo, pois sua raiz, embora rica em amido, é pobre em proteínas, gordura e vitaminas.
A mandioca, segundo estudos da EMBRAPA, é originária da Amazônia, desenvolvida de um cipó - “mandioca-mãe” – guadunadró - catalogando-se mais de 450 variedades. É considerada nativa no Nordeste, Centro Oeste e Sul, em especial Santa Catarina. Segundo Nereu do Vale Pereira, “não há, em Santa Catarina, propriedade rural que não mantenha alguma roça de mandioca e, nas estatísticas oficiais todos os municípios registram uma determinada produção anual. Em Minas Gerais, as plantações de mandioca se concentram na margem direita do Alto São Francisco”.
O cultivo da mandioca desenvolveu-se, no Brasil, paralelamente aos cultivos altamente econômicos como a cana-de-açúcar e o café que, desde o período colonial, determinaram a sua entrada na fase produtiva com vistas à exportação, cedendo a Coroa às exigências das nações européias.
Gilberto Freire, em CASA GRANDE E SENZALA, fez um apontamento interessantíssimo:
“Tamanho foi sempre o descuido por outra lavoura exceto a cana-de-açúcar ou o tabaco, que a Bahia, com todo o seu fausto, chegou no século XVIII a sofrer de ‘extraordinária falta de farinha’, pelo que em 1788 em diante mandaram os governantes da capitania incluir nas datas de terra a cláusula de que ficava o proprietário obrigado a plantar ‘mil covas de mandioca por cada escravo que possuísse empregado na cultura da terra’”.
II – ASPECTOS SOCIAL - ECONÔMICO - CULTURAL
A mandioca, como cultura de subsistência, teve um papel muito importante na história do município de São Francisco, sobrepondo-se às do milho, feijão e cana-de-açúcar, porque compreende um complexo com variados tratados –social, cultural, econômico e histórico.
Por muitos anos ela representou um meio de subsistência e agregação de famílias do município, tanto no meio rural quanto na cidade, nesta em menor escala, naturalmente. Desde o preparo da terra até chegar aos produtos ou subprodutos, é significativo o envolvimento de várias famílias no processo do desdobramento da raiz – homens, mulheres e crianças, em todas as fases da atividade, onde, naturalmente, se entrelaçam passado e presente. Avoengos tempos surgem, como por encanto, através da conversa, da música, do exercício do ofício, do conhecimento empírico e da prevalência de costumes com relevos sócio-culturais.
Uma atividade simples, rudimentar que, em alguns aspectos, parece voltar no tempo, aos costumes indígenas, como na fabricação da farinha e na utilização que se dá aos subprodutos.
Não se observa, na fabricação da farinha, o emprego do conhecimento técnico-científico, o que é suprido, de maneira engenhosa e surpreendente pelo conhecimento empírico ou pela tradição, especialmente nas oficinas rudimentares. A modernidade se faz presente em alguns casos em razão do progresso – a eletricidade que avançou pelo meio rural, e a inter-relação do homem do campo com o homem da cidade, facilitada pelo surgimento de estradas e, conseqüentemente, o transporte rodoviário. Contudo, para o homem rural isso não faz muita diferença, pois, na essência, ele fabrica a farinha com o mesmo espírito, satisfação e modos experimentados através dos anos, isto é, no fundo de sua alma a introdução de novos métodos não lhe roubou o prazer de transformar a mandioca em farinha e polvilho, no mesmo sentido de festa.
No aspecto econômico, além de servir ao sustento da família do rurícola, a atividade rende-lhe pequeno lucro, com o que enfrenta as despesas menores. Lucro certo, embora demande uma imensa trabalheira que, se contabilizar, não é viável se levar em conta apenas o ganho econômico. No entanto, é compensadora, levando-se em conta a mão de obra farta, disponível diretamente em sua família e com ajuda de vizinhos, em forma de mutirão, que, se não for ocupada, ficaria ociosa, pois a atividade que demanda mais trabalho – a fabricação de farinha – pode ser desenvolvida no horário noturno, o que acontecia muito antigamente, como na oficina de José Domingos, no Quebra, barro tradicional da cidade de São Francisco..
A oficina é rústica, não exigindo nenhuma peça industrial – tudo o produtor rural pode fabricar no seu quintal, contando, inclusive, com a matéria prima disponível. Assim, o que ele obtém se transforma em lucro. E tem mais, a sua técnica na fabricação de instrumentos e aparelhos que usa é de uma engenhosidade espantosa, o que, normalmente, exigiria estudo de engenharia mecânica - o que o mestre carapina, no entanto, faz por conhecimento empírico, intuição ou tradição.
Aspecto Cultural
“A cultura, segundo Paul Arbousse Bastilde, não pode senão designar um certo desabrochar da inteligência, em virtude do qual se torna o homem mais humano, isto é, mais apto a compreender e a amar os outros homens. A cultura é a parte da inteligência na obra da civilização”.
Fernando Azevedo, leciona:
“Na acepção mais larga, que abrange, sob o termo genérico civilização, a organização material, econômica, política e social, os costumes e a vida espiritual de um povo, a cultura, termo específico de sentido limitado, designa o impulso das letras, das ciências e das artes que, enobrecendo as instituições, enriquecem e fecundam sem cessar a civilização”.
O homem abordado neste trabalho tem a sua cultura elaborada num processo de transferências, assimilações, através dos anos, criando um comportamento grupal comum. Na “cultura da mandioca” tem-se a oportunidade de penetrar na cultura do homem do campo: modo de vida, o ser social, a arte, a ciência (empírica), os costumes, a tradição, o ser no todo. O engenho nato ou adquirido na vivência do tempo empregado na confecção das peças que compõem a “Oficina de Farinha”; os procedimentos criados pela necessidade, melhorando o seu trabalho; a sua poesia, brotada numa inocente inspiração em que se vê, como única fonte, em seu pequeno universo, a natureza; as aves que são evocadas para cantar seus amores e paixões, os bichos para glosar seus desafetos; o tempo para narrar suas esperanças. Tudo isso é repassado com imensa alegria no período em que labuta no campo e fecha no processo da fabricação da farinha, na “Oficina”.
Tem-se, ainda, como fator de observação, o que aponta Roque de Barros Laraia: “O determinismo geográfico considera que as diferenças do ambiente físico condicionam a diversidade cultural”. E, assim, “enobrecendo as instituições, enriquecem e fecundam sem cessar a civilização”.
III – O PLANTIO
A mandioca não exige terras férteis – essas o lavrador reserva para o plantio de milho, feijão, cana-de-açúcar e abóbora - e precipitações regulares de chuva. O preparo do terreno também não demanda muito trabalho ou cuidados, devendo, apenas, ser retirados os tocos ou raízes, o que geralmente não se encontra muito, pois os terrenos mais escolhidos são os sílicos-argilosos para facilitar o desenvolvimento dos tubérculos.
Tendo como fim a fabricação da farinha, planta-se a mandioca- brava, mais rentável, com maior volume de massa, sendo a preferida a “Castelão”. Para o consumo, planta-se a mandioca-mansa, sendo preferida a Cacau – pequena, de massa macia e muito saborosa. A mandioca brava não serve ao consumo humano, nem animal, no estado bruto – a sua ramagem, casca ou a água que sobra da massa, são extremamente tóxicos, quando consumidos in natura. O plantio, então, exige conhecimento da planta. Aos olhos de uma pessoa estranha ao meio, distinguir uma da outra é quase impossível. O homem rural o faz com naturalidade e nunca erra. Dizem: “a mandioca-brava tem os olhos verdes e a mansa os olhos avermelhados”. Pela indicação é fácil conhecer uma e outra, contudo, no meio do mandiocal a lição pouco vale, pois a distinção é sutil e, no mais, sempre vem acompanhada de outros detalhes – formato e grossura do tronco; tipo de folhagem e tantos outros que o roceiro conhece, mas não sabe explicar, eles são possíveis somente aos olhos bem treinados. A distinção mais fácil é o exame do tubérculo: a mandioca mansa solta a casca facilmente, por inteiro. A mandioca brava não solta a casca, senão em fragmentos. Esse, contudo, não é o método mais recomendável, pois exigiria arrancar a mandioca do solo, primeiro, para saber se é mansa ou brava, depois.
O rurícola guarda as ramas da mandioca – a que dá o nome de manaiva ou manaiba - após a colheita, para o plantio no ano seguinte. Geralmente ficam encoivaradas no campo, debaixo de árvores – enfeixadas e colocadas em pé, com as partes finas (cabeça) para cima. No plantio, de outubro a novembro (planta-se, também, em agosto, na terra seca, ou no pó, como dizem, aguardando a chegada das primeiras chuvas, com o que se evita o apodrecimento da maniva), as ramas são cortadas em pedaços (toletes) de até 20 cm, geralmente com 4 olhos, de onde brotarão as novas plantas. Os toletes são plantados em covas que têm a largura de acordo com o tamanho da enxada – abre-se a cova com apenas um golpe da enxada. Assim, a profundidade, da mesma forma, é de acordo com o terreno – se mais macio, ela é mais funda. A distância de uma cova a outra está em relação ao tamanho do cabo da enxada – o plantador põe o pé numa cova e lança a enxada para frente, na distância que o cabo alcançar, deixando-a cair com força sobre o solo; no ato de puxá-la abre-se a cova, e assim vai repetindo até ao fim do eito.
IV – TRATOS CULTURAIS
São feitas três limpas (capinas). A primeira no preparo da terra e as seguintes no desenvolvimento da planta, o que exige cuidados especiais para não feri-la, quando tenras e não afetar as culturas consorciadas - feijão catador e abóbora -, pois é preciso aproveitar o terreno e o trabalho. A limpa é feita pela família, se o mandiocal é pequeno. Caso seja uma lavoura maior, consorciada com milho e feijão, exige-se a troca de dia. Na limpa, o processo empregado explica porque a cova não precisa ser funda: à medida que procedem à capina, puxam a terra solta e o capim, juntando tudo em volta da plantinha (cobertura morta).
Sendo propício de estação chuvosa, com um ano pode-se iniciar a colheita. Nas estações de poucas águas ela se dá com mais de um ano.
Geralmente não se planta grandes mandiocais. Com o pouco que se planta – um hectare ou pouco mais – dá para o rurícola fazer farinha suficiente para seu sustento. Acontece, no entanto, em alguns casos, quando maiores são as posses, que se faça plantio muito grande, consorciado com milho e feijão. No caso, a capina (a limpa da roça) transforma-se num acontecimento social, integrando o trabalho à festa, reunindo muitos homens no sistema de mutirão. O dono da roça convida os vizinhos da região. Não há pagamento em dinheiro, apenas a comida farta, muita pinga e festa no fim do dia. São famosos os mutirões no município de São Francisco. Geralmente neles são reunidos de 80 a 100 homens.
Às sete horas os roceiros já estão na cabeceira do eito, cada qual com a sua enxada – de 2 a 2 ½ libras, com cabo de pau pereiro, invariavelmente. O enxadeiro que toma posição numa ponta do eito tem o nome de cortador. Do outro lado fica o beirador. Os meeiros capinam por dentro, como indica o nome.
Dado o sinal, começa a capina. Na frente o “cortador” canta alto, animando os companheiros:
“Você fala pela prima, patrão,
Eu falo pelo bordão, patrão”
O “beirador” responde, com os “meeiros” com as vozes segunda e semitonada, ocorrendo, ainda, a tenuta:
“Eu acho você bonito, patrão,
Com a garrafa e o copo na mão.”
E vão jogando versos:
“Eu quero beber cachaça, patrão,
Nem se for numa colher, patrão”.
“E dá nóis uma cachaça, patrão,
Pelo amor de sua mulher, patrão”
Na beira da cerca são dispostas leiteiras com cachaça que vai sendo servida aos trabalhadores por meninos. Quanto mais bebem, mais cantam.
É comum, a certa altura da capina, o “cortador” rumar o corte do eito para o meio da roça, acontecendo o mesmo com o “beirador”, ao mesmo tempo – é que cortando firme e avançando sempre o eito, para que o serviço seja completado o mais cedo possível, que alguns meeiros fiquem para trás. Então acontece a “remada”: “cortador” e “beirador”, geralmente os melhores homens do eito, voltam, capinando no sentido onde estão os atrasados, “sungam eles e jogam eles para frente, pois tão afogado no mato”.
Às dez horas esbarram o serviço, é hora do almoço. Mulheres e crianças depositam enormes gamelas debaixo de árvores frondosas. O cardápio é forte, capaz de muita energia: arroz, carne de porco, feijão – sempre com pedaços de miúdos, pele e orelha de porco - e muita farinha. Em cada gamela comem até oito trabalhadores, com muito respeito ao “cercado” do companheiro. Se forem muitos os roceiros, o dono da roça manda abater um boi que é consumido no mesmo dia.
Às duas horas é servido um lanche: biscoitos, café, leite adoçado e rapadura.
Ao pôr-do-sol, o serviço está feito. Acontece de acabar antes. É servido, então o jantar, com o mesmo cardápio do almoço.
Enquanto os trabalhadores descansam dá para ouvir os gemidos do “pé-de-bode”, acompanhado dos acordes de chorosos violões, volteios de apaixonadas violas, repiques de caixas e o tilintar de pandeiros – está sendo armada a dança. Chegam as mulheres convidadas ou sabedoras do movimento - e a festa para comemorar o fim do mutirão avança na noite.
Noutra semana, o mutirão acontece na roça de outro companheiro e assim vão se alternando até limpar todas as roças, sem desânimo e favorecendo a todos, até aos mais fraquinhos que, sozinhos, nunca conseguiriam limpar seus eitos.
V – A COLHEITA
Geralmente a colheita da mandioca começa no mês de agosto. É um trabalho desgastante, pesado e rústico. Homens, mulheres e crianças se entregam à tarefa. Os homens agarram com suas mãos fortes o tronco da planta, balançando de um lado para o outro, até fofar a superfície de terra que cobre os tubérculos e, depois, em redobrados golpes, com muita força, puxam o pé para cima, fazendo despontar as primeiras raízes que vão rasgando a terra e vêm presas ao tronco em forma de touceira – umas grandes, outras médias e umas pequeninas, como filhotes. Acontece, às vezes, de se encontrar uma parte de terreno mais duro e, nisso, é comum as raízes se partirem ou se soltarem do tronco, o que obriga o roceiro a um esforço extra: cavar em volta, com um enxadão, com todo cuidado, para tirar as raízes, uma por uma. As mulheres e as crianças são incumbidas de carregar, em balaios, a mandioca arrancada até a uma praça. O transporte, depois, é feito em carro-de-bois que pega, por comum, 16 arroubas.
Na média um pé de mandioca produz 5 kg de tubérculos, podendo, chegar a muito mais, conforme o terreno. Se for plantada em terra fértil, na beira do rio ou na vazante (rio São Francisco), pode passar de 10 kg e há até caso de um só tubérculo chegar a esse peso – o que não é nenhuma vantagem para a fabricação da farinha.
Um hectare de mandioca produz 10 mil quilos de mandioca que, transformados, produzem 2.500 kg de farinha e 500 kg de polvilho – a sobra fica entre a crueira, casca e água.
VI - A OFICINA DE FARINHA
A “oficina de farinha”, geralmente, é uma pequena cobertura de palha - as mais antigas - ou de telhas comuns, fabricadas na roça mesmo. O conjunto da Oficina é composto por ralador (rodinha e molinete), a prensa, jirau e o forno. Por comum apenas o forno fica sob a cobertura, mas existem oficinas que abrigam todo o conjunto, principalmente as de Associações Comunitárias. Ali se reúnem homens e mulheres, na boca da noite. As mulheres vão raspando as raízes e os homens triturando-as no molinete. A mandioca não é descascada, raspa-se apenas a “pele”, tirando mais a sujeira, pois a casca é indispensável à fabricação da goma - é nela, segundo o rurícola, que está a riqueza da raiz. Alguns, no entanto tiram a parte fina da casca.
Usa-se a “rodinha”, comumente, para triturar a mandioca. Ela se compõe uma roda de madeira, com mais ou menos 1,20 m de circunferência, presa a um eixo; de cada lado ela tem uma manivela – munheca ou “manica” - na mesma posição; na superfície da roda (na circunferência), há um friso por onde corre uma correia feita de couro de boi, amaciada com sebo, para ganhar resistência. Essa correia, do outro lado, a uma distância de três metros, é passada numa polia de 30 cm de circunferência, também de madeira que, na relação de força transmitida, chega a uma grande velocidade. A polia é presa à ponta de um cilindro de madeira com serrilhas engastadas, ficando este dentro de um compartimento (caixote) fechado dos lados, tendo o fundo aberto, por onde cai a mandioca ralada e uma pequena boca, de um lado, onde vai sendo colocada a mandioca inteira – acima dessa boca, tem um protetor, confeccionado de lata, para aparar as partículas de mandioca desprendidas na trituração, evitando atingir os olhos do operador – essa peça recebe o nome de molinete (ralador).
O processo de trituração da mandioca exige treino e muito cuidado, o que, é sempre feito pelos homens - qualquer descuido lá se vão os dedos – muitos homens há que têm as mãos aleijadas, com vários dedos dilacerados pelas serrilhas do molinete - lâminas com dentes curtos, muito afiados e quase unidos que são encontradas no comércio. O processo de afixar as serrilhas no eixo feito de madeira exige conhecimentos – saber passado e experiências -, o que têm os mestres carapinas, adquiridos dos mais antigos ou por pura intuição – como fazem os contadores de moendas de engenho e os de raios de roda de carroções: observa-se uma relação de distância entre cada lâmina que deve ser precisa para evitar o embuchamento do molinete, ou que fique pesada a roda que, quanto mais distante estiver do molinete, mais leve será para girá-la. Nela, dois homens ficam de um lado e dois do outro, postados vis-à-vis, no ponto de mover as manivelas, em movimento igual, contínuo – se perder o ritmo pode levar uma forte pancada sujeita a quebrar o braço ou abrir buraco na cabeça, pois os movimentos que fazem os obrigam a abaixar o corpo num balanço que lembra uma dança, pois eles usam, alternadamente, as duas mãos para facilitar ao companheiro pegar a munheca no espaço vazio, evitando-se o encontro de mãos, o que seria desastroso. Esse movimento exige-lhes a troca de pés, no ponto de sustentação, e a dobrarem o corpo para alcançar a munheca, o que os leva a uma movimentação dinâmica e constante.
Debaixo do molinete é colocada a masseira – ou cocho - que vai aparando a mandioca ralada, já transformada em massa.
Os raladores têm que enfrentar, ainda, o cheiro forte da mandioca brava, exalado quando ela é triturada, o que lhes chega a provocar tontura e vômitos. Para resistir e poder passar a noite ralando, eles acabam fazendo um espetáculo bonito: cantam para a rodinha, ou melhor, entoam o canto da ralação da mandioca, que sai da oficina e ganha os ares, invadindo as casas da redondeza, no parado da noite. Se a oficina é na cidade, dá para saber que estão fabricando farinha na casa de fulano ou sicrano, quando se ouve a música da ralação, um canto choroso – lúgubre, para as mulheres grávidas - sem parar, no embalo da rodinha.
De um lado dois homens puxam o canto:
“Eu queria beber cachaça
Até eu cair no chão;
Me dá um bocadinho, rodinha,
Pra vê se eu caio ou não.
Dois respondem:
“Pra vê se eu caio
Ou se não caio não.
Roda de ralar mandioca,
E forno de torrar farinha,
Amanhã por essas horas
Tem beiju e tem farinha”
“Eu queria ser candeeiro.
Candeeiro tem bom gosto,
De dia tá na parede,
De noite nas mãos das moça”.
“Quando eu saí de casa
Minha mãe me recomendou:
Meu filho, ocê não apanha
Que seu pai nunca apanhou
Se eu topasse um nego macho
Eu batia o corredor”.
Versos e mais versos varando a noite. Pinga, muita pinga, esquentando o ânimo e a mandioca ralada enchendo a masseira.
VII - A PRENSA
A massa é recolhida assim que completa uma masseira, sendo colocada na prensa: um caixote com furos nas laterais e uma tampa móvel. A masseira mais rústica era feita do tronco de uma árvore com maior diâmetro possível, como um cocho – era de pouca capacidade. Veio a evolução. A prensa passou a ser fabricada usando-se pranchões com espessura de até três centímetros, unidos pelas laterais, em forma de um caixote retangular. Eles eram pregados em quatro esteios, um em cada canto do caixote e enterrados em grande profundidade para resistir o deslocamento causado pela prensa. Mais recentemente, com o uso da ferragem, fabrica-se masseira com os pranchões presos por parafusos ou com réguas que são afixadas verticalmente, deixando ínfimo espaço para escorrer a água da massa.
O sistema de prensar, mais antigo, era muito rústico, engenhoso e perigoso. Um varal, com mais de três metros de comprimento, feito de madeira fornida, era afixado num buraco aberto, a uma altura de 1,50m, num tronco de árvore ou esteio fincado junto à prensa; entre o esteio e a prensa era colocado um espeque (cepo), de mais ou menos 60 cm, aprumado. No início da operação o varejão ficava com o extremo livre a uma altura de quase dois metros; depois de encher a prensa e tampá-la, a operação seguinte era colocar pesos sobre o varejão. A primeira era a de cruzar dois paus no alto do varejão da prensa e sobre ele ir colocando os pesos – eixo de carro, tocos e até pedras. O desfazimento da arapuca era extremamente perigoso podendo causar acidentes. No mesmo sistema, era comum amarrar um pau na base das duas peças, formando um triângulo. Era mais seguro, pois o peso era colocado de cumprido, de uma base à outra. À medida que os pesos eram colocados a tampa da prensa descia apertando a massa, enquanto a água escorria pelos orifícios. Em processo tão arcaico a produção era pequena, considerando que a prensa não poderia ser grande, cabia, no máximo a massa relativa a uma arroba de farinha.
Existem prensas mais evoluídas, mas, como as anteriores, fabricadas nas roças mesmo, pelos mestres carapinas. Numa delas, o sistema para prensar é mais seguro e fácil, conservando-se, no entanto, o antigo, qual seja, do varejão afixado no esteio e apertando o espeque aprumado na ponta da masseira. O sistema mudou apenas no modo de prensar que é feito através de uma corda forte, amarrada no extremo do varejão, enrolando a outra ponta da corda num cilindro de madeira que vai sendo girado através de uma manivela, também de madeira, tipo sarilho de cisterna. Mais modernas são as prensas que dispensam o varejão.
Uma: o cepo que aperta a tampa tem na extremidade superior um fuso que é conjugado com uma rosca incrustada na peça de madeira que passa, longitudinalmente sobre a prensa fixada em dois esteios laterais. O cepo tem vários buracos aonde vão sendo colocadas pequenas alavancas para fazê-lo girar gradativamente, fazendo a peça subir ou descer, arrochando a massa.
Outra, mais moderna ainda e de enorme capacidade: sobre a tampa é colocada uma pequena peça de madeira que serve como base de um macaco hidráulico. A haste do macaco, recolhida, é encostada numa travessa de madeira que, por sua vez, é travada, nos extremos, em esteios laterais. À medida que o macaco é acionado, de maneira inversa, ele vai empurrando a tampa da prensa para baixo.
A operação de colocar a massa na prensa exige ciência: ela não pode ser acondicionada num todo, só a massa, de forma compacta, o que não permitiria uma boa prensagem, levando mais tempo para apurar o resultado. A engenhosidade veio da necessidade: a disposição da massa foi feita a modo impedir que ela se compactasse, colocando-a em pequenas camadas, separadas por folhas de vegetais, especialmente os mais porosos e que não deixam gosto e colorido na massa. O mais usado é o “açoita-cavalo” – planta rasteira, de folhas largas e sedosas. Hodiernamente usam-se peças cortadas de saco plástico, especialmente na cidade, onde se torna difícil encontrar o “açoita-cavalo”.
VIII -SECAGEM
De manhã a massa é retirada da prensa. Cessada em peneiras feitas de taboca (cana-brava). No final da operação a massa fina volta para a masseira para ser lavada e a grossa (crueira) vai para o jirau, secar-se ao sol.
Na gamela a massa é coberta de água e bem mexida. Depois, aos poucos, ela vai sendo retirada em pequenas porções e colocadas numa bandeira de pano onde é torcida – ou então espremida num coador. A massa apertada vai para o forno e a água grossa coada fica depositada numa masseira, onde passa uma noite sedimentando. No outro dia, escorre-se a água da parte de cima, deixando a camada sedimentada que se assemelha a um creme. Geralmente ela se apresenta com uma fina camada amarelada – é a catirina ou margarina, como dizem os farinheiros. Se a camada for grossa, ela é retirada cuidadosamente, com uma colher de pau. Se a camada for fina, ela é removida, suavemente, com um pano molhado ou com as mãos, de sobreleve, jogando água. A massa sedimentada é retirada em pedaços, cortada com uma faca, levada, depois, para secagem no jirau. À medida que o sol vai esquentando, ela vai se desintegrando, “como pedra de cal no forno”, transformando-se num pó alvíssimo e fino. É o polvilho, tapioca ou goma, alimento apreciadíssimo em qualquer camada social. Da catirina se prepara um bolo “que só dotô pode comê”.
A massa, em tempos mais afastados, era espremida em rede feita de olhos de buriti (cerda finíssima), a que deram o nome de tapiti.
IX - OS FORNOS
Na verdade trata-se de apenas um forno, com duas bocas de alimentação à lenha – é o único local da cobertura que é fechado com paredes – quase sempre de pau a pique ou de adobe. Do lado de fora as duas bocas de alimentação; do lado de dentro, uma superfície plana, ocupando uma área de 6 m2 – 3x2 – com duas pedras enormes ou chapas, geralmente, em caso de fornos menores, feitas de fundos de tambor. As pedras vêm da Bahia e são próprias para torrar farinha – mantêm a temperatura e não sujam a massa como pode acontecer com os latões, em razão de resíduos do metal superaquecido. Do lado das pedras são deixados espaços para colocar a massa – de um forno para o outro ou a farinha torrada, saindo do segundo forno. Numa pedra a massa é cozida, ou melhor, passa-se por um processo de cozimento ou secagem. Daí é levada para outra pedra, onde vai ser torrada. No processo, para cada fornada leva-se 35 minutos, em média – 10 a 15 minutos para cozinhar e de 15 a 20 minutos para torrar, dependendo do tipo de farinha – mais seca ou crua; mais fina ou mais grossa. A torração, geralmente, fica por conta das mulheres - conforme o tamanho do forno elas trabalham em dupla, em cada pedra. Durante a atividade, cantam modinhas, contam causos do cotidiano ou rebuscam histórias antigas envolvendo pessoas da vida da cidade; embrenham pelo mundo das lendas locais, entre benzeções, ou trocam informações sobre a medicina caseira, enquanto vão mexendo a massa com enormes rodos de madeira.Falam do caboclo d’água, que muitos garantem que o marido já viu (nas farinhadas, como elemento agregador social, é comum a presença de mulheres de pescadores, que ao final da fabricação, levam para casa farinha e tapioca – compensação pelo serviço prestado).
“O Zé saiu isturdia pra pescá. Ele falou que tava indo tudo sereno, quando deu de esbarrá num remanso. Parô pouco, apois num demandô tempo ele viu uma coisa saino do esconso. Num era gente e nem era pexe - era um bicho dos zoio arregalado, com uma bocarra enorme, de dentes pontudo e o corpo todo cabeludo. Aquela coisa medonha gritô pro Zé – “Quero fumo! Quero cachaça!” O Zé num tinha nenhuma coisa e nem outra. Intonce o bicho começô dá rabanada pra todo lado, enchendo a canoa do Zé de água e ispantano os pexe. Zé vortô sem nada pra casa. Desse dia indiante ele nunca vortô pra pescaria sem levá um litro de cachaça e uns pedaços de fumo de rolo. Era só o bicho aparecê que ele fazia os agrados e num vortô mais pra casa sem pexe”.
Outras contam as histórias do Famaliá, do Romãozinho, do Surubim de Cabelo que vive num palácio encantado, feito numa gruta debaixo da igreja, onde nunca ninguém conseguiu entrar; e desfiam outras lendas ou mitos envolvendo entidades e fatos que povoam a crença local que, para elas é verdade pura, por isso que contam, cada caso, se benzendo.
Outras vezes falam sobre a medicina caseira e sobre as benzeções, trocam informações e destacam o valor milagroso de certas raízes que compõem as garrafadas que não podem fazer falta em cada casa, mais presentes que os remédios de farmácia.
Mexendo com rodo para lá e para cá, matutando a vida, uma mulher, displicentemente ensina receita para cuidar de amarelão dos bacuris:
“Assunta: manda arrancá umas raízes de poaia nos tabuleiro. Põe ela pra secá e adispois torra ela, faz um pó que pode ser dado misturado na farinha ou faz chá pro minino tomá todos os dias. Em pouco tempo o bacuri fica bão, corado e gordo”.
Falando de vermes, as mulheres lembram da papaconha, um excelente purgante. Para dor de dente, feridas e reumatismo, o melhor remédio é o doreto, arbusto do tabuleiro. Ele é aplicado na forma de ungüento preparado à base de pó da raiz misturado à banha, com o que se cobre as feridas ou é friccionado nas juntas, em caso de reumatismo. Quanto à dor de dente usa-se o pó diretamente na cárie ou na água, através de bochechos. Para reumatismo, ainda, toma-se o pó misturado na cachaça.
X – PUBA
Ao tempo em que fabricam a farinha, não se esquecem da puba que é muito apreciada e não pode faltar em casa – preparo de bolos. Mandiocas raspadas, levemente, são colocadas em gamelas, masseiras ou latas cheias de água para curtir por alguns dias. Se for para ter um resultado mais rápido, cobrir com água quente. A mandioca fica ali, pubando (curtindo) debaixo d´água, soltando uma espuma que é removida com uma cuia furada. Ao final de três dias ela retirada, apresentando-se com a massa mole. O processo seguinte é amassá-la com as mãos e passá-la na peneira para retirar o miolo da mandioca que é duro e não se dissolve. A seguir lava-se a massa colocando-a num saco que é dependurado num pau para escorrer a água.
Com a massa enxuta são feitas as bolas e, a seguir, levadas a secar, no jirau. A massa pode ser secada também, em forma de farelo.
Antigamente a puba era sinônimo de dinheiro – elemento de troca. Por isso era comum dizer-se de alguém endinheirado – “fulano está cheio da puba”.
XI – UTILIZAÇÃO
As raízes tuberosas são aproveitadas na alimentação humana – cozida, assada ou frita; empregadas também na fabricação de álcool anidro, tiquira (aguardente apreciada na Amazônia e no Maranhão) e cauim (bebida fermentada do indígena) e como ração para animais. Igualmente os brotos novos são utilizados como ração para animais: porco, gado vacum e galináceos, depois do processo de secagem. Se o gado comer a rama, in natura, e for tangido, morre intoxicado.
Os talos e as folhas são ricos em cálcio, ferro, vitamina e proteína,
A utilização da fécula oferece uma extensa lista: conhecida como polvilho tem intensa utilidade na alimentação humana; é empregada para lubrificar as brocas na mineração e na limpeza de minérios; na fabricação de papel para computadores (evita os borrões), na indústria têxtil; pode, ainda, ser usada como explosivo; fabricação de goma e na engomadura de roupas.
Pesquisas da EMBRAPA da Amazonas indicam grande utilidade na fabricação de remédios para combater a catarata, vistas cansadas, prevenção de câncer da próstata, entre outros.
Subprodutos da mandioca:
Farinha fina: (mais torrada) consumo normal - misturada na comida, ou como farofa de carne ou ovos e paçoca-de-carne; faz-se a jacuba – misturada com rapadura ralada e água, que serve como remédio para curar a ressaca do caboclo que se apresenta com indisposição para o trabalho, depois de uma noite de festa e bebedeira.
A farinha é um alimento indispensável ao trabalhador do campo e ao barranqueiro que a consomem de modos variados: com leite, café ou rapadura – dá “sustança” para o trabalho pesado -, com o caldo de galinha (um pirão saboroso, se caipira, com muita gordura) – e até misturada no macarrão. Essas combinações são muito interessantes, pois compensam a deficiência da mandioca quanto às vitaminas e proteínas.
Farinha grossa – apreciada para fazer o pirão de peixe, um dos pratos mais apreciados e difundidos na região. Não há quem resista a um pirão de pacumã ou de curimatá gorda.
Polvilho (tapioca, goma): pão de queijo, biscoito de goma, peta, biscoito doce, biscoito de sal, bolos, ginete, mingau e o beiju (O beiju é preparado de diversas maneiras - o casadinho, com massa e goma, feito no forno; o de pano, com a goma pura – é sequinho e dobrado como um lenço; molhado, feito na manteiga de garrafa; com sal ou doce e, ainda, com queijo ralado). É utilizada, ainda, para engomar roupas e fazer grude (cola).
Crueira: mingau para criança, sopa, bolo e ração para galinha e gado vacum ou suíno.
Puba: fabricação de bolo.
Ramas (maniva) e folhas: deixadas em repouso, por 24 horas, são levadas ao desintegrador, transformando-se em ração de primeira qualidade para vacas leiteiras. Está comprovado o aumento da produção de leite. Tem sido usada também na criação de galinhas.
É também utilizada em programas sociais, como da Pastoral da Criança de São Francisco, como multi-mistura para combater a subnutrição infantil obtendo-se ótimos resultados.
Raspa de mandioca: ração para gado
Destaca-se, ainda a produção do álcool anídrico, onde, segundo pesquisas da EMBRAPA, EPAMIG e ESAL foram catalogadas 103 variedades de mandiocas.
XII - AS DIFICULDADES
Nos dias atuais a atividade não tem a mesma influência e representação de alguns anos atrás em nosso município. São tantos os fatores, podendo-se citar como mais destacados: o êxodo rural, a carência de mão de obra barata e familiar – os jovens se deslocam para o meio urbano em busca do estudo e raramente voltam para o meio rural. Assim, já não se vê as Oficinas de farinha na cidade e no meio rural elas estão se reduzindo consideravelmente. Na cidade as dificuldades são muitas: não existem mais terras disponíveis para o plantio, tomadas que foram pela urbanização; não existe mais lenha para alimentar os fornos e já não tem gente com disposição para o trabalho tão duro.
Não fica aí, contudo, para quem tenta resistir: aquela mão de obra fácil, em que trabalhar era uma festa, como nos mutirões e nas noitadas de fabricação de farinha, tornou-se quase escassa. Os poucos trabalhadores que ficaram no campo, de quando em quando são seduzidos pelo trabalho nas grandes fazendas, fora do município – “vão trabalhar nas firmas”.
E tem mais: as “oficinas de farinha” enfrentam hoje uma concorrência muito desigual – a produção industrial que chega ao consumidor em embalagens higiênicas e bonitas e, às vezes, mais barata. E o consumidor, cada dia mais cosmopolita, não faz questão do gosto, salvo os tradicionais.
As Oficinas de Farinha vão se transformando em peças de museu. Os homens deixam transparecer em sua fala, quando tocam no assunto, uma profunda tristeza, enquanto não podendo enfrentar a nova realidade, ficam, a cada dia, mais pobres e abandonados.
XIII – CONCLUSÃO
O complexo da mandioca teve o seu tempo áureo, muito importante na vida do município – nos bairros afastados, da cidade e no meio rural – ressaltando-se os aspectos econômicos, da subsistência familiar, a manifestação cultural – com prevalência do folclore – e o seu papel como agente integrador, aproximando as famílias e vizinhos em uma região.
A atividade não tem, nos tempos atuais, a mesma exuberância, mas não perdeu o seu papel e importância – a mandioca é ainda, a única fonte de renda para muitos campesinos, que guardam velhos costumes em todo o seu processo.
Há, também, um aspecto novo e bastante significativo – o surgimento das fabriquetas, através de associações comunitárias. Nelas o associado desdobra sua plantação de mandioca em farinha; mói o seu canavial, produzindo rapadura e cachaça, repartindo-se o lucro, proporcionalmente, no final. É tudo mais moderno, mas algumas etapas do processo ainda são rudimentares, empregando-se a mão de obra familiar e o mutirão. Na fabriqueta, quase sempre, o trabalho é comum e por isso há oportunidade para a preservação de costumes, da cultura popular e o fortalecimento de uma sociedade.
UMA NOTA
Este manual é fruto das minhas andanças pelo município de São Francisco, visitando comunidade para fundar associações, para recolher dados para pesquisas folclóricas ou para rever amigos. .
Em cada canto visitado, em quase todos os cantos do município, fui me interessando por uma atividade comum: a fabricação da farinha. Não foi coisa pensada, foi chegada.
A curiosidade veio de longe e não foi propriamente o processo da fabricação da farinha e os passos dados pelo agricultor até chegar ao desfecho final. Foi mesmo no final: a fabriqueta. Eu tinha lá no fundo dos guardados de coisas sentidas, as cantigas de rodinha na fabriqueta do velho amigo José Domingos dos Santos, morador da última casa da rua do Quebra, quase na entrada da unidade da Escola Caio Martins, onde ele trabalhava desde os tempos de Campo de Semente. Ali, nas noites de fabricação de farinha, os homens cantavam e cantavam, fazendo girar a rodinha. Era um canto triste, nostálgico, vozes espichadas no final dos versos como quisessem penetrar na alma de gente distante. De amor sofrido ou paixão guardada. Eu simplesmente achava bonito, embora nostálgico, mas minha esposa, Vilma, grávida de Ricardo, nosso primeiro filho, naturalmente num estado emocional alterado, era tomada por aquela mensagem pelo lado mais triste e profundamente nostálgico. Aquilo a deixava extremamente debilitada, chegando ao pranto triste, incontido.
Ficou a lembrança e a vontade de acompanhar a fabricação da farinha.
O tempo passou... passou muito tempo até que, em minhas viagens, fizesse contato com as rodinhas, prensas e masseiras, tudo despertando o velho interesse, isso mais recente, na década de 90.
Primeiro visitei a oficina de Arnaldo (muito bem instalada na cidade) que desdobrara o mandiocal que plantei em um sítio, com o meu sócio Waldemar Queiroz (na verdade resto de mandiocal, pois os amigos do alheio, antes, fizeram a primeira colheita capando todos os pés (retirar alguns raízes sem arrancar o tronco).
Depois acompanhei um mutirão de capina de lavoura de mandioca e milho na comunidade de Ribeirão (e comi na gamela). O outro contato foi com uma velha rodinha num terreiro de uma casinha na comunidade de Buriti do Meio. Outros contatos vieram, esses programados: comunidade de Mocambo, na oficina da Associação; fabriquetas na Ilha do Lajedo e na fazenda de José Ribeiro de Queiroz (Dé), onde acompanhei a ralação e torrefação.
Das anotações fiz este manual porque entendi que ele poderia ter alguma utilidade como referência cultural e histórica e poderia mais, servir como registro do que foi uma importante atividade na economia do município, marcando o comportamento social de uma época de nossa gente no meio rural.
Tendo concluída esta pesquisa, circunstancialmente, conheci a comunidade de São Luiz Gonzaga, no distrito do Morro, onde conheci uma bela fabriqueta com maravilhoso trabalho de farinheiros.
No final de uma tortuosa estrada que vara o cerrado no platô do Morro, cortando grotas e passando meio a belas pedreiras que se erguem como castelos, chega-se à casa de Luiz Rodrigues Pereira (Luiz Mangaba). Na verdade chega-se à pé, pois a estrada termina antes.
O sertão está ressequido. Nem um ramo verde. Aqui e acolá ensaia o tamboril, quando suas raízes alcançam algum benfazejo veio de água. No mais só varas secas se esticando para o céu sem a graça das folhas. Um exército de cambitos. Sertão cinzento
A casa do sr. Luiz fica no meio a um suave aclive. Na parte do alto o carrasco permeando as pedreiras e, escorrendo, alcança o vale por onde corre o córrego Canabrava – um fiapo de água nesta quadra do ano, mas um vale fértil, dádiva de Deus, para os moradores da comunidade que ali plantam hortaliças e grãos.
Encontramos o terreiro em verdadeira azáfama, tomado, entre a casa de morada e a casa da oficina de farinha, por senhoras, moças e meninas. Algumas sentadas no chão cascavam mandiocas, forrando todo o piso de espesso tapete; outras, de pé, rodeavam uma enorme gamela no exercício de espremer a massa da mandioca em sacos plásticos que, depois, era passada para outra masseira. De quando em quando, assim que retirada a massa, elas transportavam, em baldes, a água grossa que ficava na gamela, para outro recipiente, sendo, antes, coada. Mais tarde ela seria deixada em repouso em imensas gamelas, transformando-se, depois de sedimentada, na deliciosa tapioca. Na entrada da oficina, o ralador de mandioca. A velha rodinha de madeira impulsionado pelos braços dos homens, foram substituída por ralador com motor elétrico. Mais atrás, num espaço maior, o forno feito com pedras importadas da Bahia. No fundo da oficina a prensa da massa – uma engenhoca totalmente inovada, criada por eles mesmos e que chegou a me surpreender, posto que conheço vários e vários tipos, não daquela, feita usando-se um tambor de latão como recipiente e maçado hidráulico para prensagem. FOTO
Ao lado dos homens e mulheres, em plena atividades, as crianças. A doce inocência de quem inaugurava a vida, dava os primeiros passos e descobriam o mundo, ali, acompanhando o alarido dos adultos, ora cantando, ora proseando, mas sempre barulhando. Esperavam, enquanto isso, a hora do beiju. Umas cochilavam com um pedaço de beiju na mãozinha. Eram mais de trinta pessoas, todos membros da Associação Comunitária São Luiz Gonzaga, uma dissidência da Associação Comunitária Canabrava, ali encostada.
Mariano, o presidente da associação, ao lado do Luiz Mangaba e José Inácio, falavam com imenso orgulho do seu trabalho, estilo de vida e união das famílias. Todo seu trabalho é feito em mutirão. Uns ajudando aos outros. No vale, plantam de tudo e todos juntos. Na farinha, de cada vez, desmancham o mandiocal de um deles. Todo o produto vai para o dono do mandiocal, que, noutra oportunidade, vai trabalhar, da mesma forma e sem nada ganhar, para outro associado. Segundo José Inácio são de 200 a 300 quilos de farinha e de 100 a 200 quilos de tapioca, em cada desmanche. A comida, na fabricação da farinha, fica por conta do dono do serviço; no mutirão da roça, cada um leva a sua comida, mas a cachaças fica por conta do dono da roça.
Na comunidade São Luiz Gonzaga ainda colhi duas informações interessantes. Uma para enriquecer a minha pesquisa sobre a fabricação de farinha e a outra para trazer à lembrança duas figuras muito queridas na região. Vamos falar um pouco de cada uma.
No capítulo que tratei sobre a prensa de farinha mostrei vários tipos, desde a primitiva, feita de um tronco de árvore, como um cocho com sistema rude de prensagem até às mais modernas. Agora, a que vi na fabriqueta da comunidade de São Luiz Gonzaga foi uma inovação e diferente de todas. Tomaram um tambor de latão de 200 litros, fizeram um corte longitudinal, tirando mais ou menos um quarto em seu tamanho; depois fizeram vários furos, de cima abaixo. A massa vai sendo colocada nesse enorme recipiente (prensa) acondicionadas em sacos – um por um são ajeitados de modo aproveitar muito bem o espaço – colocando e apertando até chegar à parte de cima. Aí, então, são colocadas duas peças grossas de madeira, em forma de meia lua, tampando o tambor e, por cima um macaco hidráulico com a haste presa a uma peça transversal, na parte de cima, travada em dois esteios; em pouco tempo grande quantidde de massa é prensada. (foto).
Outro fato são as benzedeiras Clara e Maria (foto), já falecidas – a clara aos 107 anos. Segundo José, elas eram respeitadas e procuradas por todo mundo da região para tratar de febre, quebranto, mal olhado, dor de dente, picada de cobra e para tratar das bicheiras dos animais. Ninguém benzia e curava como elas. Elas morreram e não deixaram herdeiros e, assim, para a casinha delas não virar tapera, tiveram uma feliz idéia, transformaram-na no posto de saúde. A própria comunidade (como costumam fazer, de comum) cuidou de melhorar a construção transformada no posto que recebe a visita de um médico, uma vez por mês, ou de uma enfermeira que, a exemplo das duas benzedeiras, cuidam do povo da região – é claro que com a medicina e remédios modernos, muito distante da fé. Contudo, eles acreditam que a lembrança das benzedeiras ainda ajuda muito. É tanto verdade que guardam um retrato delas, bem exposto na parede do posto.
Meio à conversa a fumaça subiu na boca do forno. A pedra foi ligeiramente aquecida e, logo, duas mulheres chegaram com a massa. Num trato delicado, formando bolinhos ou dispondo em leves camadas foram dando forma aos beijus – com sal, queijo e açúcar, ao gosto. Uma jarra com limonada servida na sombra de um pé de laranja da terra onde descansava um antigo serrotão que já tirou muitos caibros e linhas para construção das antigas casas – sem uso, hoje, pois já não existem mais madeira de lei. Chegaram logo os beijus, quentinhos, saborosos, sem igual – maná dos céus, para o bom apreciador da iguaria.
Feitas as despedidas, deixamos aquela bela comunidade. Muitas famílias distribuídas nas terras deixadas pelo sr. Raimundo Pereira, avô de Luiz Mangaba. Não se sabe ao certo a área total da gleba – talvez 4 alqueires. O certo que, pelo que contam, o suficiente para viverem e trabalharem. E mesmo que esteja tudo seco em volta – um sertão danado de esturricado pelo efeito da seca, mas alegria daquela gente parecia superar a aspereza da natureza. E mais: suas casas são boas, bem construídas – de tijolos, cobertas de telhas coloniais, servidas de água e com energia elétrica e, em muitas delas, de lado, a antena parabólica que já invadiu o sertão. Sobraria tempo para viola? Isso não vi, pois a visita foi durante o dia e em pleno dia de atividade.
Fecho esta pesquisa. Espero que ela tenha utilidade para as escolas, às quais a dedico.
São Francisco 2004.
FONTES DE CONSULTA:
1. Comunidades de Buriti do Meio, Ribeirão, Associação dos Pequenos Produtores do Mocambo; Arnaldo, cidade, José Ribeiro de Queiroz, fazenda Boa Vista, e Ilha do Lajedo - São Francisco - MG.
2. Escritório da EMATER-MG de São Francisco – Engenheiro Agrônomo Luiz Gandra Bittencourt Filho, técnico em agropecuária Marcos Sebastião Veloso.
O engenheiro agrônomo Jadson Viana, do escritório local da Emater, solicitamente, fez a revisão deste manual.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala – Editora Universidade de Brasília
AZEVEDO, Fernando. A Cultura Brasileira -Editora Universidade de Brasília
LARAIA, Roque de Barros. Cultura, um conceito antropológico – Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro
PEREIRA, Nereu do Vale. Mandioca e Tradição, Santa Catarina.
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