Estrada poeirenta, mata seca e xixá
A estrada é um corte estreito
rasgando o coração da mata seca pingada de
árvores, espetadas ao céu, sem folhas, de variadas espécies
caducifólias: aroeira, folha-de-bolo, pau-pereira, caraibinha, imburana,
mutamba, caroba e pingadas de embarés e
paineiras. De verde, só o de juá-de-boi, que resiste a qualquer seca ou o tamboril com as primeiras folhinhas
adiantadas. A paisagem, quase imutável, mostra-se dourada pelo pó levantado do
leito da estrada soprada pelo vento ou
pelo roçar das patas de animais no viageiro. Vislumbra-se, ainda, em plano
inferior, garranchos das vaquetas – esquálidos e desprovidos de folhagem, uma
cortina cinzenta de beleza triste.
Vencendo
curvas, mata-burros e buracos, destampa-se um pequeno povoado. O primeiro
contato é com o humilde cemitério – céu aberto de sol escaldante, de impressão
causar aos olhos de ver fumaça ascendendo aos céus. Ali, meio a toscos túmulos,
debaixo de um pé de mutamba, como era de desejo, o túmulo do mestre Minervino. Reverencio-o
com um pensamento de saudade, lembrando do nosso primeiro encontro em sua
humilde oficina (uma banca) debaixo de um solitária xixá, encostada em um
umbuzeiro. Já o conheci desde o encontro no dia de Bom Jesuys da Lapa, 6 de
agosto de 2002, quando o entrevistei e publiquei notícias no informativo
Carranca da Comissão Mineira de Folclore – foi a porta aberta para sua viagem
além fronteiras – da grota do Surucucu, no Angical para o Brasil com suas
violas e rabecas.
Ganhou até oficina do IPHAN e fez
discípulos. Que continuaram a sua arte.
Subindo um
leve tope, vislumbra-se a igreja do povoado – pequena, singela, mas bonita,
dominando a paisagem.
De
estirão abaixo, chega-se ao ribeirão do Angical. Famoso, no nome e na valentia
passada, onde corria muita água, de grandes cheias, de força tal que foi capaz
de carregar a ponte de madeira ali existente. O que se via, agora, era pó, tauá
e pontas de pedras.
Dali
depois a topografia era outra, bem diferente, nada parecida com os gerais
urucuianos. Inicia-se uma subida, coleando pequenos vales e pedreiras. A
vegetação torna-se mais rala. /chegando a um altiplano as vistas alcançam horizontes
esticados. Curvas, rampas,
pequenas propriedades – umas bem edificadas, bonitas; outras humildes, muito
pequenas, todas porém com dignidade. Rebanhos de bovinos em recantos de pastos.
Vacas com bezerrinhos serelepes, incrivelmente gordos, considerando a seca
brava que assola a região. De repente, uma surpresa, o inusitado – ainda numa
leve subida, com curvas e buracos ou socalcos com pedras pontudas, onde não se
pode rodar o veículo além de 10km/h, surge uma placa de sinalização alertando:
“Velocidade máxima: 40km”. Logo depois, mais duas placas anunciando
quebra-molas – na verdade, dois morrotes. Desnecessárias, todas elas, pois a
estrada não permite imprimir velocidade.
Viagem
à frente e nada de chegar ao destino. O sol já descambava no horizonte,
anunciado a despedida do dia. Surge num amplo terreiro, uma bela casa com cerca
de madeira à frente. Bem à hora para buscar informação, pois já nos
considerávamos perdidos no sertão. O morador, gentilmente, voz mansa, orienta: “aqui fica perto de Lapa do Espírito
Santo. O destino que buscam ficou para trás, coisa de quatro mata-burros
passados. É descer de volta, encontrar uma placa anunciando a estrada para a igreja
da Taboquinha e seguir por ela”. Retrocesso. Depois de bem rodar por uma
estrada cheia de pedras e buracos e sem número de cancelas enfim a Igreja da
Taboquinha. O sol já escorregava rumo ao ocaso, preguiçosamente se deitava sobre a galharia seca, que se
estendia além do de se ver.
Chegamos - eu,
minha filha Rachel e seu noivo Alan, o amigo Dirceu Lelis e a violeira/cantora
são-franciscana Ana Patrícia. O propósito era encontrar o grupo do projeto
“Foliões e Tocadores de Taboquinha da Tapera”, que promovia um encontro com
ternos de folias da região no fechamento de uma etapa do dito projeto. Não os encontramos, estavam percorrendo
caminhos, visitando casas e casas da comunidade, como fazem os foliões nas suas
funções de cantarolia e adoração à lapinha.
O sol caía. O
horizonte cobria-se de dourado esvaindo-se para o plúmbeo – seria noite chegada
breve. Não era possível aguardar os foliões, pois o receio da volta, sem
conhecer a estrada, era grande – preciso era empreender o regresso sem muita
delonga. Contudo, uma esbarrada foi preciso, o convite irrecusável veio de uma
portentosa xixá carregada de frutos. Logo, eu e Dirceu apontamos as lentes de
nossas máquinas para os enormes frutos vermelhos se abrindo. Um, outro e tantos
mais, de beleza a causar emoção, porque no sertão tão áspero, tão seco, eis que
da natureza nos vem raro presente. Buquês de miúdas flores ainda enfeitavam
algumas galhas. No mais eram os frutos vermelhos com suas cápsulas lenhosas, grandes,
também muito vermelhas. Um punhado de frutos estava se abrindo, expondo na parte
interna as sementes negras ainda presas
à placentação. Dezenas delas agarradas às cápsulas como bebês, pelo cordão
umbilical. Passamos à colheita dos frutos para garantir as sementes que, depois
de preparadas, seriam transformadas em deliciosos petiscos. Patrícia atirava
toletes de madeira nas galhas e vibrava com a caída das sementes negras. Alan e
Rachel, subindo na mesa de um carro de bois, agarravam as galhas mais baixas
para alcançar os frutos e, assim, fazer farta colheita. Eu e Dirceu nas fotos
para registrar aquele momento tão raro, incomum na aspereza do sertão
ressequido, mas belo, por ser sertão.
O pé de xixá
pintado de frutos vermelhos, tão enfeitado como rica fantasia; o pasto seco,
tão seco de folhas douradas quietas ao beijo dos raios vermelhos do sol poente;
no fundo, na linha do horizonte, copas de árvores agrupadas, só galhos
abraçados, filtrando o sol. Um quadro incomum, raro e espetacular de despertar emoção
porque revelava uma beleza diferente. Não era tudo. A natureza surpreendeu nossos olhos com um solitário um pé de algodão de seda ou
“vovozinha”, como carinhosamente o chamam os mais antigos. Folhas verdes, sem
abundância, maçãs como as do algodão comum, se abrindo e deixando escorrer
fiapos brancos, leves e meigos como seda, agarrados às minúsculas sementes,
bailando ao suave sopro da brisa vespertina, quase imperceptíveis, como
libélulas em gozo de liberdade. Contrasta a brancura de neve do algodão de seda
com o amarelo do capim e o vermelho encarnado dos frutos do xixá, tudo compondo
uma aquarela de beleza rara.
Momento final:
poses para registrar a despedida do sol. Pôr do sol no alto da serra da
Taboquinha contemplando o horizonte distante, uma linha marcada pela mata seca.
O sol se
despediu, enfim. A noite caiu de vez. Ganhamos a estrada de volta a São
Francisco.
Mais uma vez –
nos gerais ou nas chapadas; na beira de uma vereda ou na barranca do meu rio;
nas matas de galeria ou nas ciliares – o sertão me mostrou a presença do
Criador. É preciso estar em paz de espírito para solver sua divina presença em
nossa vida. Um meio dos mais gratificantes é pela natureza e, claro, no
convívio com o humano que irmãos somos todos nós.