No mês passado vivemos o clima
dos festejos juninos. De forma muito especial, grande parte da população
são-franciscana participou da romaria de Santo Antônio de Serra das Araras, uma
tradição que chega perto do segundo centenário. Neste conto, busco um pouco da
beleza, dos mistérios e do tanto que significa a Serra das Araras no campo
religioso, cultural e turístico para nós são-franciscanos.
DESVENDANDO O MUNDO DA SERRA
A Serra das Araras, de qualquer acume
– que são poucos em São Francisco – , pode
ser vista como uma linha destacada no horizonte – ora azulada, ora outra
marronzada e até de cor negra, mas sempre
acima do comum. De junto, em especial em tarde de sol nas costas, ela
resplandece, brilha como um tesouro, tem
coloração diferente, destacada de tudo que a cerca, por baixo e por
cima. Aquele paredão imenso, que sai do vão, atinge os gerais, a grande chapada
que vai muito além, tem um manto verde escuro, todo riscado de vermelho e eril,
coisas feitas com o tempo pela chuva e o vento, furando gargantas nas escarpas.
Tudo muito aprumado de desestimular a subida ao seu tope senão pelas poucas
trilhas – essas mais parecem o lombo de um camaleão, um fio só, escorrendo
perigosamente para os lados sem maneira de se segurar, nem pedra, nem árvore. Do
ponto de mirada, que atraía os aventureiros para ali chegar, ela tinha uma
ponta de se mostrar, como serra, quase caindo na vila, ali tão próxima, que
recebeu seu nome – Serra das Araras. Em linha na direção pela esquerda aponta
para o município de Januária; pela direita estende-se para o chapadão. Uma parede formidável que
segue de linha horizontal, no nível de se ver, até esbarrar nos pequenos picos
brancos, que lembram torres de catedrais, são tantos. Ali dá passagem à
garganta que desemboca nos Buracos, morada de mineiros tradicionais. A
planície, descendo da rodovia – vem ela de mais além, muito longe – é forrada
de capim de ano, miúdos arbustos e muito salteados, tão raros que dá para
correr de carro sobre eles se por precisão. Encosta de chofre no sopé da rampa
e ali acaba. Subindo é outra a vegetação, ou quase nenhum senão o ralo mato.
A Serra das Araras exerce uma
atração muito especial tanto para os romeiros de Santo Antônio como para
pessoas que ali chegavam fora de época, só por gostar daquele mundo tão encantado.
Assim aconteceu com um pequeno grupo de
jovens de cidade alhures – Paulo,
Cláudia, Luís, Robledo, Helena e Sara, talvez namorados. Queriam mergulhar um
pouco naquele universo que vinha de uma lenda ou verdade de quase duzentos anos,
quando ali foi encontrada a imagem de Santo Antônio e, depois da história
contada, de sua ida para cidade e, logo depois, a misteriosa fuga para voltar
ao antigo ninho. Todos mochileiros chegaram à vila com um aparato para caso de
acampar em qualquer ponto. Na vila da Serra contrataram Zé Toco como guia,
conhecedor que era da região, dos melhores, e de tantos “causos” ali contados.
Deixando
a vila como um ponto para trás, o grupo partiu para escalar a serra pela trilha
que tinha pé no barranco da vereda Catirina. Uma trilha cheia de arestas que, com qualquer
descuido, pode causar danos aos pés dos caminhantes. A jornada pelo platô tinha
razão de conhecê-lo e, depois, alcançar os “buracos”, do outro lado. De fato,
pela falas de Zé Toco, os Buracos tem muitos atrativos, não só pela beleza
natural como pela gente que ali montou moradias. Lá no alto tudo muito agreste.
Sinal de vida só do vento sacudindo a
vegetação rala, vento, que ia do cicio ao silvo forte.
Vinte
minutos depois estavam na aba da serra, junto às torres brancas e ali montaram
acampamento. Esperaram a noite.
Paulo ajeitou primeiro seu saco de
dormir, afastando os râmulos frágeis da quaresmeira que tombavam sobre seu
leito permitindo uma boa visão do céu. Porém não ficou ali, foi para junto dos
companheiros à beira da improvisada fogueira onde o guia Zé Toco lhes preparava
o café. Surpresa: haviam esquecido do coador. Somenos valor, acudiu o próprio
Zé Toco, que haveria de cuidar do café a moda antiga: sedimentar o pó na brasa.
Isso fez: colocou o pó na água fervente da chocolateira e deitou-lhe alguns
pedaços de carvão incandescentes. Ouviu o chiar da brasa ao contato da água e,
como imã, o carvão atraindo o pó de café e, aí, foi servir a bebida sem agitar
a vasilha.
Conversavam: Paulo, Cláudia,
Robledo, Helena,Luís e Sara, de lado Zé Toco apenas curiando, dando suas
pitadas na conversa quando lhe cabia emendar alguma coisa com sua sabedoria
sertaneja. De repente um brando sopro, mais um cicio que cortava o vale até
esbarrar nos contrafortes da serra, pelo vale afora – raiar da lua cheia. As
plantas rasteiras, tantas por ali, balançavam de manso, recebendo os primeiros
raios prateados da lua, que levantava no
cume da serra. Um espetáculo de rara beleza: aquela imensa bola branca, tomada de
brilho dando parecer estar se sustentando no platô da araras e de lá aspergindo
gotas de luz sobre o vale.
Os jovens falavam de coisas
diversas, fixando mais na violência urbana até que Zé Toco interferiu, rodando
o paeiro na boca, até ajeitá-lo de lado, quase caindo.
- Cês tão falano de coisa ruim e tão
assustado. Carece não, pois sempre foi assim e nada muda no modo de ser do
home. É tudo pior que bicho, memo, que tem mais beleza e até sê capaiz de falá,
o que os outro num pode.
- O que é isso, Zé? Tá amolado com o
mundo? – quis saber Luís.
Zé, impassível, emendou:
- Assunta só o que matuto qué
endendê. A modo de que Caim matou Abel se eram só dois viventes no mundo além
do pai e da mãe, Adão e Eva? Pouca gente na terra e já cuidavam de matar uns
aos outros. E Adão e Eva num puderam tomém se conter só nos prazer dado pelo
Pai? Pra que foi querê mais arrastando o pecado pra todos nóis?
Zé falava como se perdido no tempo,
com os olhos na lua que já subia coisa de um quarto de céu deixando o platô
para baixo. Na beira da fogueira, como abobalhados, os companheiros ainda
bebiam as palavras de Zé quando ele emendou.
- Essas histórias me contaram dona
Lourdinha, beata da igreja de Santo Antônio, na Serra. Ela falou que é coisa
contada no livro sagrado. A bíblia, sabe? Falou ela que é o livro de Deus. Se é
de Deus intonce é coisa séria de não se duvidá. Eu num sei muita dessas coisa,
pois sou sem letra, male-male escrevo meu nome para podê votá. Aqui se ocê num
votá num recebe os favores dos pulítico. Os danados só te dão uma coisinha se
ocê dé o voto pr´ele. Mais num é isso não. Quero dize prus cês que o homem é
bicho ruim. Intão pregunto: quem foi pió, Antônio Dó ou os soldado da puliça e
da Coluna? No sertão, esse mundão de meu Deus, longe de tudo e esquecido de
todos, pensa que cidadão, inté muié e
minino tinha sussego? Quale que, os home deles matavam pur achá graça, de pura
ruindade e pra se mostrá muito home. O Dó matava fugindo da polícia e vingando
dos pulítico. Até que num fazia muito má pros povo da roça não, só quando
precisasse, caso de traiança e de disconfiança. Cês imagina, ele que matô tanto
gente, tombém teve morte matada, de mão de pilão, justo por parte dos amigo
dele. Amigo? E se num fosse o que haverá de sê? E a Coluna que fazia pió. Até
hoje os mais antigo, deles conhecido quando aqui trilharo, diz em cantiga de
folia: “Quem disse que a Coluna num vem? Ela vem capano os home e as muié
tomem?” E contam que matavam tudo, num deixava um bicho vivente nas fazenda pra
mode num servir de comida, depois, prus soldado do guverno que envinha no
rastro deles. Tinha mais ruindade. Eles chegano numa fazenda, se viam um rapaz
de muita força carregava ele pra servir de sordado da Coluna.
Deu uma paradinha, puxou fundo o
paeiro, que ajeitou o fogo com a unha do polegar e emendou:
- Num é só na cidade qui o home é
ruim não e nem é d´hoje, não...
Falou e quietou em profundo mutismo,
hipnotizado pela lua, expurgidos os aivos pensamentos, ainda que homem simples.
Naquela noite ninguém mais falou,
embora tão encantada pela luz cheia, uma bola de prata que já altaneira,
esparramava luz sobre todo o vale e deixava os paredões da serra tão claros de
se poder ver os buracos, ninhos das araras.
Da fogueira que, Zé Toco
providenciara de acender para passar a noite e, de certo, para espantar os
bichos que quisessem visitar o acampamento, restava apenas teimosa fumaça. Logo
Paulo chamou os companheiros
– Vamos simbora moçada. Vamos dar uma
olhada nas torres brancas.
Sara e Cláudia, esfregando os olhos,
animaram-se com o chamamento da Paulo, pois tinham demonstrado muito interesse
em conhecer as torres brancas.
- Eba! Então agora vamos conhecer as
famosas torres.
Não eram torres e nem famosas. No
extremo oeste da serra das Araras a erosão provocada pela chuva e vento, e quiçá,
de tempos imemoriais observa-se um conjunto de escarpas. Rasgado o corpo da
serra foram surgindo fendas, pequenas cavernas e um trecho de maior
concentração calcária, daí a coloração branca. De fato, visto de longe, os
picos brilham tão diferentemente das outras áreas da serra coberta pelo mato.
As fendas dilacerando o corpo da serra
caprichosamente formam pilares que se assemelham a torres.
O grupo aproximou-se, o quanto pôde do
conjunto, não foi possível escalá-lo, pois considerando o aclive do paredão,
preciso era equipamento apropriado.
– Estou satisfeita, pessoal – disse
Sara. – bati muitas fotos para mostrar aos nossos amigos quando voltarmos.
Seguiram, depois em direção aos Buracos.
Horas caminhadas
seguindo uma trilha que, pelo sinal, parecia ser curraleira, de passagem de
tropa. Iniciaram nova subida, sem sacrifício, pois do caminho cuidaram os
animais com seus cascos e sequer tinha o obstáculo das pedras.
– Cheguemo nos Buraco. – anunciou
Zé. – Ocês deixa a trilha e me acompanha aqui. – Nisso deu uma guinada para a
direita e aprofundou-se no mato. Pouco depois estancou-se. chegaram à rampa descambando para os buracos.
Aos
olhos do magnífico panorama, Paulo
chamou a atenção do grupo:
–
Ei turma, esse vale me leva a um livro que li há muitos anos – Vale Aprazível,
de um escritor americano, Luis Bromfield, um apaixonado pela natureza.
Impressionante como faz bem viajar pelo vale aprazível, dá descanso e nos
aproxima mais do Criador. Lembrando do livro, eu acho que o nome Buracos não
fica bem para este vale aprazível, pois ele não tem nada de buraco, é um vale, é éden.
Lá embaixo um
vale formidável se estendia em rumos distantes, espremido por dois paredões. No
distante era azulado de tão longe, um regalo aos olhos ao contemplá-lo.
Zé Toco
admirado com a fala de Paulo chamou a turma para os gritos.
– Que gritos?
– perguntou Sara.
– Assunta só.
Chega aqui na ponta. – falando isso, Zé Toco deu três gritos bem fortes
– Óia gente!
A voz dele
correu pelo vale, navegou por cima das águas claras do rio Pardo, trespassou as
palmas do buriti e, quando parecia a todos que se perdera, ele voltou com o
mesmo vigor – Óia, gente!
A nitidez do eco é impressionante, chama a atenção.
Zé toco até explicou:
– Quando o
pessoal passa viajando pela estrada, indo para a Chapada, quando chega na ponta
dos Buracos, para só para ficar se divertindo com os gritos.
Do acume,
descendo pelos taludes formados por séculos de sopro e chuva corrida, era de se
passar por trechos forrados de silte brilhando ao reflexo do sol dando parecer
água parada – se fosse noite factível seria de dizer tratar-se de vaga-lumes piscando. Trechos de tauá desmanchando-se em
placas num processo de tantos anos somados no calor e no frio. Descida difícil,
perigosa. Medo não havia, pois o estímulo para a aventura os sufocava, antes e
sempre, empurrava avante e mesmo, no ponto onde estavam, tinham que descer. O mais difícil ainda era
escolher a dala mais segura pois tantos eram os trilhos, certamente sulcados
por reses da solta, porque cabrito ainda não era a preferência de criação
local, embora mais conveniente para a região tão árida e de pouca pastagem.
Tudo é questão de costume, preferência.
Arrastavam-se
com lentidão pela encosta abaixo, examinando cuidadosamente onde colocar o pé.
Demoravam e isso não era bom, pois já prenunciavam sinais da celagem da noite e
se o lusco-fusco, que se prenunciava, os alcançasse na descida, teriam
problemas sérios, na certa. Aí, uns aos outros, como bando de álacres jandaias se
puseram a gritar como maneira de estímulo interior para as forças exteriores.
Foi como um estrondo, de certa maneira surpreendente e belo, o refletir o eco,
de todas as vozes, lá no fim de vale, para voltar-lhes o mesmo encorajamento
gritado. Riram a valer.
No
sopé da serra, entrada do vale, aramaram, outra vez, o acampamento, acenderam a
fogueira e esticaram conversa. Zé Toco, enquanto acendia a fogueira, deu início
às suas histórias.
–
Ocês já ouviro falá do famaliá? – perguntou olhando para as moças.
–
Sabemos da história, não, seu Zé. Conta pra gente – pediu Cláudia.
–
Pois é. Aqui pras nossa banda acontece coisa. Coisa que até Deus duvida, gente.
Aqui, coisa de uns tempo atrás foi conhecido um homem solitário, que ficou
conhecido de seu Gaspar. Não tinha grandes posse, só uma tapera. Ninguém dava
ligança pra ele. Sabe que, de uma hora pra outra ele foi crescendo. O povo diz
que ele não saiu daqui, não catirou nem mascatiou, num tinha nada, intão acuma podia
melhorá de vida? Pois melhorou. Em pouco tempo fez uma fazendona de espichar
pasto para toda banda a sumi de vista. Gado e cavalo é que não faltava. De
repente já era o coroné Gaspar, home de posse e mais posse, muito respeitado.
Deu de muita gente querê sabê daquela mudança. Mistério. Coroné Gaspar tinha um
neguinho, tratado de Expedito, que fazia
serviços para ele em casa. Era só ele. O menino num era de andar muito. Vai que
um dia ele campeando uns animá bateu os olhos numa menina da região, a Chiquinha,
filha de um morador na redondeza da fazenda. Engraçou com ela tanto; e viu e
gostou. Sempre arrumava modos de campear só para ver a menina. E assim começaro
a se falá. Tempo corrido, confiança adquirida, mais amô chegado, o menino foi
se abrindo com a Chiquinha. Foi que num dia ela perguntou intrigada para ele como
o patrão dele que num tinha nada, e de um dia para outro ficou ricão. Expedito ficou no cismejo, mas de tanta Chiquinha, com
todo dengo pedir, ele contou. Falou que
o patrão tinha um capetinha preso numa garrafa. Tudo que ele pedia o capetinha
dava. O menino falou que o coroné conseguiu o capetinha indo nos galinheiro em
busca de ovo de galo, coisa tão difícil, é do tamanho do ovo de juriti. No dia
que achou o ovinho ele levou ele pra casa e esperou a Sexta-feira Santa.
Intonce foi pra uma encruzilhada, botou o ovo debaixo do suvaco e correu pra
casa. Ficou quarenta dias de cama até que nasceu o capetinho. Depressa ele botô
ele numa garrafa e arroiô. Contou o menino que já viu a garrafa muitas vezes,
mas num tocô nela. E daí, quis saber Chiquinha. Daí, contou Expedito que tinha
o lado ruim, e se benzeu com três sinal da cruz. O capetinha leva a alma do
patrão. É o trato deles. Num faço isso por dinheiro nenhum, disse o menino para
Chiquinha. Zé Toco arrematou a história:
–
Já foi muito falada essa história na região. Nunca vi o tá capetinha, mas que
ele existe, existe, e é tratado de Famaliá.
E
a moçada foi dormir espantada. Eta sertão.
Na manhã
seguinte o grupo se despediu do sertão passeando pelo vale aprazível, os
Buracos. Desceram acompanhando uma bela vereda, cabeceira do rio Pardo. Uma
parte da água vinha de locas da serra de onde escorriam como línguas de prata.
Na vereda o córrego tomava mais corpo, era água brotando das raízes dos buritis
e, de pouco já volume maior se fazia ganhando nome de rio, rio Pardo. O grupo
andou bons quilômetros deslizando na água fresca, pés na areia branca, fina. No
alto ouvia a cantiga do vento balançando as palmas dos pés de buritis, tudo
juntado com o canto das araras e outros pássaros. Outros bichos vinham mais de
longe para saciar a sede na água fresca da vereda.
Paulo respirou profundo. Chamou os
amigos para um abraço
– Meus amigos, vamos dar um abraço
na natureza. Este belo vale persiste, mas até quando? O homem vem por fora, vem
rodeando. Aqui e acolá dizima-se o cerrado dando lugar aos pastos, plantio de
soja e eucalipto. Sabe-se que os córregos estão secando. Existem poucos daquela
exuberância de aguada que foi de tempos atrás. Nesse ritmo alucinante de
destruição, o que será das comunidades deste vale aprazível, o que será dos moradores
dos Buracos.
Abraçaram-se comovidos e fizeram uma
prece a São Francisco de Assis, amigo das águas.