José
Fanto, enquanto servidor público, ao receber e a atender as pessoas, dava muita
importância ao seu cargo. Ia além do necessário para mostrar-se senhor da
situação e expor mais conhecimento do que guardava. No entanto, era bem quisto,
embora alguns colegas fizessem pilherias sobre sua quase arrogância. Na verdade
não era arrogância, era mais jactância – ele se orgulhava de si mesmo, e
quanto.
Enquanto trabalhava, foi previdente.
Aos pouco foi construindo sua moradia, e quando se aposentou pôde sair do
aluguel e pousar em seu, e de seu, lar. Ao aposentar-se ainda teve que enfrentar
umas dívidas relativas à construção da casa. Por isso, montou um escritório de
assessoria na área que atendia na administração pública – nisso era competente.
Acontece que, assim que saldou as dívidas, resolveu refestelar-se na condição
de aposentado. Indagado sobre o fato de fechar seu escritório, dizia:
–
Vou curtir minha vida de aposentado. Tenho o direito.
Então fez isso no melhor estilo
daqueles que optam pela sombra e água fresca. A aposentadoria, ainda que não
fosse lá grande coisa, dava para sua subsistência de sua família – ele e a
mulher – sem atropelos. Outras despesas imediatas, não tinha, senão água e
energia elétrica, que não eram de taxas elevadas. Assim, enfiou-se em uma
bermuda de brim, que raramente trocava, uma camiseta regata e saía pelas ruas
bem cedo, levando um porrete na mão tendo um cachorro vira-lata sempre ao lado.
Media as ruas da cidade, parava na porta dos botecos, contava causos, mentia e
seguia caminho. Todos os dias a mesma rotina – como diz o povo da terra “o mesmo
Mané-Maria”.
José Fanto tornara-se folclórico.
Todos dele sabiam e falavam – “um sem o que fazer”, uma pena. Mas ele não se
importava, vivia como queria, um aposentado.
Paulo Santos era seu amigo de
trabalho. De quando em quando se encontravam, depois que Fanto deixou o
serviço. E foi ele que registrou dois fatos interessantes envolvendo-o. É o que
conta.
– Tempos atrás, quando a cidade era
menor, mais pacata e eram guardados velhos costumes, com todo respeito da
população, a padaria da cidade fazia a entrega de pães a domicílio, bem
cedinho. O entregador pedalava uma bicicleta bagageira com enorme cesta na
frente cheia de sacolas com pães. Passa à porta do freguês e pendurava a sacola
com pães em um gancho do portão e gritava bem alto avisando:
– Padeiro! Olha o pão! – e seguia
rumo a outra casa.
– Numa feita, a dona Zuita, moradora
de uma casa quase vizinha à do Fanto atrasou-se
para recolher os pães – não foi coisa de muito tempo, a voz do
entregador ainda estava no ar. Abriu o portão, olhou o gancho e cadê a sacola
com os pães? Nisso viu o José Fanto
saindo, todo serelepe, sacudindo uma sacola com pães. Como foi no ato, ela gritou:
– Seu Fanto, esse pão que o senhor
está levando é aqui de casa.
– Sem demonstrar qualquer surpresa,
por ter sido pego “com a boca na botija”, no ato da rapinagem, ele se
justificou:
– Ora dona Zuíta, eu não sabia que
essa sacola era da senhora. Eu tava passando e vi o pacote jogado na calçada,
meio longe do seu portão. Imaginei ter caído da cesta do padeiro que não deu
por fé do caso. Então pensei que se ficasse ali ia ser comido pelos cachorros.
Foi por isso que peguei a sacola. – dito isso, entregou a sacola para dona
Zuíta e escorregou-se rua afora como se nada tivesse acontecido.
A dona Zuíta não o reprimiu alto,
mas resmungou indignada:
– Sei! Cachorro! Cachorro é você
safado ladrão de pão.
Doutra feito Paulo se encontrou com
Fanto que chorava a vida, reclamando sem razão, já que tinha uma boa casa e uma
esposa muito dedicada. Coisas que pareciam ser poucas para ele, medidor de rua.
Fanto, mirando a casa levantada ao lado da sua disse para o companheiro:
– Paulo, como é que a Ângela conseguiu fazer uma casa como essa? De onde
tirou dinheiro para fazer um palacete como esse?
Ora, a casa de Ângela, uma jovem desquitada,
não tinha nada de especial. Era pouco maior e melhor que a do Fanto. Bem
construída, com jardim à frente e uma vista agradável, mas nada de especial. O
que chamara atenção do Fanto, possivelmente não era a casa em si, mas o fato de
Ângela, uma jovem desquitada ter dado conta de construir uma casa, o que ele só
depois de aposentado conseguiu terminar.
O problema é que Fanto não olhava para dentro de si, mas sempre para os
lados, para o que tinham os outros, era um invejoso que sempre queria ser o
melhor.
Paulo, enfim, mirando Fanto, lembrou
de um pensamento de Arthur Schopenhauer
que diz “Ninguém é realmente digno de inveja e tantos são dignos de lástima”. E
balbuciou: – É, o Fanto é uma lástima, como é invejoso. E dirigiu-se a ele.
– Fanto, você não tem motivo algum
que justifique sua fala. Ora, a Ângela é uma mulher dedicada ao trabalho sério,
pesado. Fora do emprego, assim como você teve o seu, ela faz muitos serviços
extras de acordo com sua profissão. Trabalha dia e noite, domingos e feriados.
Faz tudo para manter sua família com muita honradez e seriedade. A casa é
simples fruto do seu trabalho. Ela não para. E você, Fanto, o que faz a não ser
medir rua? E digo mais para você. A melhor casa é a nossa. Nenhum palacete é
melhor que a nossa casa, onde temos nossa vida, o fruto do nosso suor, dos
nossos anseios e trabalho. A casa do vizinho nunca poderá ser melhor que a
nossa, pois ela não tem a nossa alma. Você tem uma boa casa. Agradeça ao seu
trabalho, o seu esforço e a Deus que o protegeu. E tem mais. Se você acha pouco
e que a vizinha tem coisa melhor, deixe essa vida de passeador, essa vida de
andarilho sem ter o que fazer, jogando o tempo fora, arrume um trabalho, pois
você é novo e é capaz. Plante um jardim na frente de sua casa, plante umas
fruteiras e, assim, vai sentir o renascer da vida. Entregue-se a uma tarefa.
Fanto fechou a cara e deixou Paulo
sem ouvir o final de sua fala...
– O
invejoso é covarde, não suporta a verdade. Isso é uma falha de caráter.