sexta-feira, 28 de junho de 2019

VIVÊNCIAS – CONTOS

ESQUISITICE



UM RECADO

Há muito tenho planejado aventurar na senda dos contos. Não havia, antes, escrito nada nesta linha, tendo passado pela poesia, folclore, pesquisas e memórias. Tomei gosto pelo conto depois de leituras mais acuradas de autores que se dedicaram ao ramo. Não tento imitá-los, nem poderia. Mas quero, também, guardar minhas vivências – do antes e do presente. Por isso, busquei um título para o livro que irei publicar reunindo todos os contos que tenho prontos, – VIVÊNCIAS. Sim, é um mergulho em fatos que vivi ou que me inspiraram a divagar, sonhar e até ter o que não consegui.
O primeiro conto – conforme prometi – é dedicado ao meu amigo/irmão Walter de Oliveira, rememorando o tempo em que ele viveu  e trabalhou como professor/diretor da Escola Antônio Ortiga no Núcleo Colonial do Carinhanha das Escolas Caio Martins. Certa vez, ele me agraciou com uma carta. Tomei um susto danado, pois pouco entendi o que ele dizia e fui obrigado a recorrer ao dicionário – ele se esmerara na erudição. Foi divertido, tão divertido que jamais me esqueci da carta.
Neste conto não abusei muito no esmero do vernáculo, apenas ensaiei algumas extravagância, tão somente para lembrar do amigo.





         Ossázio e Chico Fuísca escorregaram das bandas da serra Preta por uma trilha comprida cheia de voltas para se livrar dos troncos das aroeiras. Batiam precatas a modo levantar poeira, grãozinhos despropositados que ganhavam pouca altura para voltar ao chão - se bem que o céu quisessem para modo ver mais longe e de ter pureza só, e não aquele chão seco, rachado, pisado e mijado pelos animais. Destampando numa clareira natural esbarraram num ranchinho, ou mais certo de ser uma tapera: era um monte de palhas de buriti atadas em paus roliços. Palhas secas, acinzentadas, carcomidas pelo tempo, que até imitavam cabelo despenteado com as pontas  espetando o aranhol ali armado por dezenas de aranhas de velho, dando ao quadro o jeito de bruxaria.
            Na soprada do vento da celagem da noite, que era a hora da chegada deles, vindo de dentro da tapera, a inhaca arrepiava os cabelos do nariz e uma terrível aca insuportável. Bicho morto não podia ser pior. Ossázio suspirou desanimado e já virava o corpo com propósito de outro rumo, de jeito definitivo rejeitando ir mais perto da tapera quando, de inopino, surge uma figura arrredando as palhas que pareciam servir de porta da tapera. Meio claro, meio escuro, mas dava para perceber: tinha aparência de uma taioca e era por ver mais perto, quando de estranho se via na sua cara uma enorme berruga dependurada. Se balbuciou qualquer coisa, os chegantes não ouviram, mas viram a profunda caverna, quase a chegar na garganta, tudo breu só, sem proteção de brancura de marfim.
            Eramá! Ocorreu ao Ossázio. Que pudera ter feito no dia, acudiu-lhe ainda o pensamento quase em desespero já buscando saída, para ali estar naquela hora? Mas foi atalhado por um cutucão esticado pelo Chico Fuísca, que lhe soprava na cova da orelha direita: “é a safada que um dia me acertou. A bandida deve prus home e pra Deus. Num presta”. De fato, o Chico, teve caso com uma mulher de tempos muitos passados, que com um golpe de facão deixou-lhe um profundo gilvaz na cara, quase uma avenida. Chico prometera vingança e agora viu na velha a figura da mulher que o afrontara. Assaz agitado criou mundo de história na orelha de Ossázio que podia mais que ele e era merecedor de respeito por parte das autoridades. Quis, Chico, implicar a velha. Falou coisas dela. Ossázio, mais para dar satisfação ao companheiro adiantou passos para as bandas da velha que se postara  na soleira da tapera. Passo dado pisou em galhos de mamoneira provocando estranho ruído no esfregar de bagos espalhados como tapete no chão, por certo, ou de doença sofrida no campo por vez das secas havidas. O óleo escorreu na ponta da precata e ele segurou o passo. Mirou mais a velha e de ver melhor seu cariz estremeceu lembrando o mote da região: “muié de bigode nem o capeta pode” – a velha ostentava vistoso bigode preto; não de deixar cair as pontas, mas alongado de ponto de se ver bem. “Que coisa e que coice”, segurou Ossázio. Aquele bigode parecia urubu despencado do céu em voo siado. Credo! Sentiu arrepio correndo pelo espinhaço de ver que o modo da velha encarar os dois era de esgar. E ela era e não era, pois de modos lúbricos ela vinha sem deixar se prender até mesmo pelo olhar. Ossázio, pensava mais, falar ela não precisava, pois não iria libar na suas palavras – se as tivesse, e possível até que não, pois parecia coelho emergido de profunda e escura lura, para não pensar no pior, lembrando de tantas entidades que vagueiam ou habitam o sertão, em toda parte – nas taperas abandonadas, nas galhas escuras das gameleiras gemedeiras, detrás dos troncos dos tinguis e amoitada nos cemitérios. Ficou ali inerme. Era o que pensava dela conduzido pelos dizeres do Chico tão influenciador.
            Chico Fuísca, cabra taimado, queria que queria acertar a velha, expurgi-la de vez, como fumaça no vento. “Se desse pra ela suvertê ficava cum suas coisas, de pouco que fosse, mais ficava pra pagá o qui me fez isturdia” – era o que dizia, sem convicção, mas fazia Ossázio acreditar de tão insinuante, como cobra má que se fazia. Era pouco mesmo o que ocorria servir aos desidérios de Chico – adir aos seus parcos recursos a pouca fortuna da velha: uns pobres asnos, que urravam por ali perto, talvez só usados para buscar água em algum tanque ou córrego. No mais só a tapera, que mais precisava era de fogo.
            Ossázio avançou mais um passo. Era de intenção de resolver o caso, falar com a velha sobre o que se dera no passado entre ela e o Chico. Avançou. Nisso, a velha estendeu a mão mostrando uma gamelinha com uns bolinhos  de bró, no que falou macio: “qui o moço que chega no pobre rancho deve tá devera com fome, pois tarde é, se vê. Num tem comida de mais grandeza, só mesmo o cozido de raiz de umbu, o que resta no sertão. E tem garapa de fedegoso pra acompanhá. Dô de bom grado. Qui o moço se sirva. Tá limpo”.
            O coração de Ossázio estremeceu no susto do gesto.  O peito estremeceu e subiu-lhe, palpitando, o sentimento de amiseração. Perdeu a fala.
            De repente, melhor olhando, viu que a velha era muito bonita e iluminada. Viu, enfim, pelo coração no sopro da solidariedade e gesto de amor que dela se desprenderam.
            Ao contrário de Eupompus de Aldous Huxley, viu no revirar da insanidade de Chico que a razão pode melhor esclarecer os fatos e o bem é um caminho dos melhores.